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segunda-feira, junho 06, 2011

Aula 51 do Curso Intensivo de Rock: Lou Reed


Nova York, 1959. Louis Allan Reed tem 17 anos e anda agindo de modo estranho.

Ele tem tendências homossexuais.

Alarmados, seus pais, judeus conservadores da classe média, mandaram o filho fazer terapia de eletrochoque, muito em moda na época.

Por dois meses, três vezes por semana, o rapaz precisava ir ao hospital psiquiátrico para tomar uma dose de alta-voltagem.

Hoje, quando olhamos para Lou Reed do alto dos seus 60 anos e encaramos aqueles seus olhos de jacaré dopado, ficamos pensando se aquelas 24 sessões de eletrochoque foram suficientes para amansar o animal.

Dê uma olhada no cara: jaqueta de couro, camiseta e jeans pretos, óculos escuros.

Ponha um disco dele pra tocar e ouça ele cantar sobre travestis, heroína, sadismo.

Tem uma mensagem aí.

Elton John e David Bowie mostraram que não tem problema nenhum em ser aceito como um roqueiro gay, mas Lou Reed pegou pesado.

Ele achava que devia ser durão, mesmo usando rímel.

Não pediu pra ser aceito.

Ele não queria ser aceito.

Será que os gregos tinham algum deus da decadência?

Alguma divindade transviada cujo lema fosse “que se foda”?

Claro que não.

Mas Reed poderia ser esse deus – e para muitos ele é mesmo.


Nova York, de novo. Desta vez o ano é 1966.

Nos mapas da emergente revolução da flor, da paz e do amor, a cidade não ocupa o foco central.

Nem capital da “music business” ela é mais.

São Francisco, na Califórnia, acumula agora essas duas posições.

Digamos que o mês é fevereiro e o endereço, o número 125, no lado oeste da rua 41, no coração de Manhattan.

Lá você vai encontrar uma cinemateca de cineastas.

Por alguns trocados, você pode presenciar um momento histórico, o show “Andy Warhol, Up-Tight”.


Filmes e slides produzidos por Warhol e Paul Morrisey, iluminação de Danny Williams, mostrando os dançarinos Gerard Malanga e Edie Sedgwick (musa-mártir da troupe de Warhol, modelo-atriz longilínea e serpenteante, misto de Afrodite e Ofélia movida a anfetaminas, que morreu alguns anos depois, de overdose).

Encerrando a esbórnia, show de rock com uma banda semi-anônima chamada Velvet Underground.

Algum tempo depois, Marshall McLuhan colocaria em seu livro (“O Meio é a Mensagem”) esse evento como pioneiro da cena multimídia, mas esta é a noite de estréia e nem você, nem ninguém, ainda sabe disso.

Depois do filme “Lupe” (estrelando Edie, claro), a banda escondida na semi-escuridão, toda de preto e de óculos escuros, começa a afinar seus instrumentos.

A tela é tomada por uma versão muda de “Vynil” (a interpretação warholiana de “Laranja Mecânica”) e um segundo projetor joga no fundo do palco um close de Nico cantando “I’ll Keep It With Mine”.


Outra modelo-atriz, esta uma valquíria dos Balcãs, transferida da Europa com um filho de Alain Delon e uma ponta no filme “La Dolce Vita”.

A Nico de carne e osso é iluminada e inicia um dueto consigo mesma.

Quando termina, o Velvet Underground desfere sua adaptação para o rock’n’roll hipereletrificado da “Vênus das Peles”, de Sacher-Masoch.

Os dançarinos entram em cena rodopiando como dois peões, equipados de chicote e botas de couro preto.

Uma garota (Barbara Rubin) percorre os corredores entre os espectadores fazendo perguntas como “O seu pênis é grande o suficiente?”, “Você goza pela bunda?” e “Ele te chupa por inteira?”.

Na terceira música, o vocalista/guitarrista e principal compositor chamado Lou Reed narra delírios épicos de um viciado em heroína, enquanto Malanga simula o ritual de dissolver o pó numa colher aquecida e injetá-lo no braço com uma seringa descartável.

O show permaneceria em cartaz mais algumas semanas e viajaria pelo país de costa a costa – muitas vezes com Nico cheia de benzendrina no volante do microônibus – rebatizado de “The Exploding Plastic Inevitable”.


Tudo começou em janeiro de 66.

Quando Andy Warhol afundou Café Bizarre adentro, para mais uma de suas usuais badalações no jet-set nova-iorquino, topou com um presente dos céus.

Ou, mais propriamente, dos infernos.

Pois ele sabia que aquela história de que a publicidade pode fazer qualquer coisa, e que no futuro qualquer um seria famoso – por quinze minutos – era apenas meia verdade.

A mitificação precisa de matéria prima.

Já passava da metade da década de sessenta e Andy, finalmente, tinha encontrado a peça chave de suas armações multimídia: a vida, podre como ela é, em forma de música.

Ele nunca havia ouvido um “dirty rock” (“rock sujo”) com toda aquela ferocidade e ficou fascinado.

Os quatro esquisitos em questão formavam um grupo que havia estreado em novembro do ano anterior.

The Velvet Underground (“O Subterrâneo de Veludo”), tirado de uma obscura brochura sadomasoquista, era o seu nome.


As formas simples (ainda que eventualmente frenéticas) da música que faziam não denunciava, a não ser na segurança com que tocavam, a formação sofisticada de seus membros.

O baixista John Cale (atuando também na viola) tinha sido discípulo do compositor avant-engagé Cornelius Cardew em sua Inglaterra natal, e do minimalista La Monte Young já em Nova Iorque.

Sterling Morrison, o guitarrista com jeito de vaqueiro, era muito bom.

Mo Tucker, baterista, ainda que também o fosse, nem precisaria sê-lo: já bastava ser garota tocando um instrumento de macho.

O diabo eram as letras que aquele sujeito, Lou Reed (estudado em piano clássico), meio falava, à maneira de Bob Dylan.

E que letras – drogas, perversões sexuais diversas, suicídios, as mortes mais lentas e as mais rápidas.

O curioso é que até ali drogas e perversão eram o cotidiano dos artistas, mas mandava o bom senso evitá-las com tema.

Para Lou não era esse o caso – se ele tinha que se consumir, o público que preparasse o estômago e testemunhasse tudo.

Nada do vampirismo sutil e hipócrita, era hora do banho de sangue.

Um crítico definiria o Velvet Underground com sendo o produto do casamento secreto entre Bob Dylan e o Marquês de Sade.


Warhol se interessou pelo grupo e passou a patrocinar seus concertos e gravações.

Chamava-os para tocar nas festas que dava.

Graças a Warhol, eles ficaram célebres no mundo artístico.

Freqüentavam a The Factory, o quartel general da fauna multiforme que cercava Warhol naqueles anos mutantes.

Mergulharam na contracultura da década de 60.

Warhol fez deles o centro de sua extravagância de mix-mídia e montou, em torno deles, o espetáculo-happening já citado.


Ele também produziu o primeiro álbum do grupo, que apresentava a gélida alemã Nico (nascida Christa Paffgen) dividindo os vocais com Reed.

Warhol até desenhou a capa, com uma banana que podia ser descascada, e promoveu o disco. Colou.

Eles mantiveram o espírito do rock sujo-branco-azedo no segundo disco, no ano seguinte (68), mas já sem Nico e o anjo da guarda Warhol.

No terceiro disco (69), foi a vez de Cale cair fora, substituído por Doug Yule.

Na verdade esse foi um período confuso, de troca de gravadoras, e o Velvet acabou ficando dois anos longe dos estúdios, antes de um último disco com Lou Reed (que partiria para a carreira solo).

O Velvet trouxe a atonalidade para o rock, assumindo uma postura avant-garde ao colocar uma mulher na bateria, promover o casamento do rock urbano com a pop-art e fazer nas letras elegias às drogas pesadas e ao sexo pervertido – quando todo mundo em volta pregava o flower power, “o paz e amor, bicho!”.

De David Bowie e Roxy Music até Sonic Youth e Jesus & Mary Chain, passando pelo New York Dolls e Talking Heads, quase tudo de bom que surgiu depois de 1970 deve algo ao Velvet Underground.


Intercalando belas canções de quatro acordes e experimentos com distorção e improviso em busca da rima perfeita entre inteligência e delinqüência, a banda rendeu admiração apenas entre um restrito círculo de pessoas, de gente mais ligada à vanguarda do que ao rock.

Nem grupos contemporâneos prafrentex como o MC5 chegaram a entender o que o Velvet representava na época (1965-70).

O primeiro disco, The Velvet Underground and Nico, por exemplo, atingiu uma irônica 171ª posição na parada americana – sadomasoquismo, paranóia e heroína não vendiam tanto em 1966.


O artista plástico Andy Warhol era uma figura santificada na pop-art americana devido sua carreira bem “american dream” (“sonho americano”): o filho de imigrantes checos, nascido no interior da Pensilvânia numa família de miseráveis, que vence na grande metrópole e vira celebridade internacional pintando rótulos das sopas Campbell.

Lou Reed o apelidara de Drella, uma brincadeira entre Drácula e Cinderela, aludindo à palidez impressionante de Warhol, figura de noite, e ao seu homossexualismo desvairado.

O hoje cultuado cineasta Paul Morrisey ficou conhecido durante os anos 60 e 70 trabalhando como assistente e câmera de Andy Warhol na gigantesca The Factory (“A Fábrica”), na rua 47, o reduto mais importante do underground novaiorquino.

Warhol se dedicava a produizr os filmes de Morrisey e até em filmar, como fez em “Sleep”.

A extensa família da Factory reunia nomes famosos e o local funcionava como ateliê, escritório, set de filmagens e residência permanente para os atores Joe Dallessandro e Ultra Violet e a milionária Brigid Berlin.

Depois que Warhol sofreu um atentado que quase o matou – a feminista Valerie Solanas atirou nele nas dependências da Factory –, a “família” se mudou para a rua 33.


Centro da efervescência cultural americana, foi graças a Factory que Warhol se transformou no principal expoente da arte pop no século 20, exportando para o mundo as suas garrafas de Coca-Cola e as sopas Campbell’s estilizadas e as decupagens sobre o rosto de Marilyn Monroe e Mickey Mouse.

Quando Warhol adotou o Velvet Underground no começo da carreira, tratou logo de plantar nele a deusa teutônica Nico, uma modelo supergostava que tinha no currículo uma ponta naquele clássico filme de Fellini e um single produzido por um ex-namorado chamado Jimmy Page.

Michelangelo Antonioni queria contratar a turma para fazer o mais que badalado “Blow Up”, mas ficou bem mais em conta usar os Yardbirds.

Nico só participou do álbum de estréia e saiu depois de colidir seu estrelismo com o recalcado Lou Reed (que, desprezado, havia antes lhe escrito “Femme Fatale”).

Aliás, de Brian Jones a Iggy Pop, passando por Jim Morrison e Eric Clapton, muita cara legal andou dormindo com ela.

Leonard Cohen e Bob Dylan até lhe dedicaram canções (respectivamente, “Joan Of Arc” e “I’ll Keep It With Mine”).

A mais que gostosíssima Nico morreu de parada cardíaca, em 1989, após sofrer um acidente de moto em Ibiza.


O segundo disco da banda, “White Light, White Heat”, traz régua e compasso pra qualquer grupo que ousar uma incursão pela “noise”, cortesia de John Cale (outro que não resistiu à elefantíase de ego de Lou Reed).

O terceiro, sem título e sem a viola do galês, tem as melhores e mais sombrias canções.

O quarto, “Loaded”, tem o baixista substituto Doug Youle botando as asinhas de fora em folk rocks falidos de alto nível.

O Velvet Underground não vendeu muitos discos, mas diz-se que quem comprou pelo menos um formou uma banda.

Television, Dream Syndicate, Fall, Joy Division e Echo and The Bunnymen jamais teriam existido se não fosse a influência velveteana.


Um verdadeiro milagre, no entanto, foi que Lou Reed tenha sobrevivido a seu tempo, já que esteve sempre à beira de acabar com a carreira e com a vida.

Ele nasceu em Freeport, Long Island (Nova York), em 2 de março de 1943, e aos 17 anos foi enviado pelos pais (Toby e Sidney) para um hospital psiquiátrico.

Era demasiado rebelde.

Durante oito semanas, foi tratado com choques elétricos.

Depois, saiu, estudou jornalismo e letras na Syracuse University – onde conheceu um dos seus mentores intelectuais, o poeta Delmore Schwartz – e passou a tocar numa bandinha adolescente chamada The Shades.

Depois, fundou uma banda-projeto que forneceu as bases para boa parte do rock que se seguiu, o Velvet Underground.

Passou a freqüentar as vanguardas nova-iorquinas, tornou-se amigo de Andy Warhol e tocou em sessões históricas no extinto Max’s Kansas City em Nova York.

Após o fim do Velvet, em 1970, ele passou grande parte da década perambulando, drogado, pálido e esquelético, incapaz de achar sua própria guitarra.

Quando iniciou sua carreira-solo em 71, com seu primeiro álbum, a imprensa não deu muita bola.


Porém, a partir de “Transformer” (72), Reed foi descoberto e proclamado o guru da androginia e da barra pesada.

O clássico “Walk On The Wild Side” realmente virou a cabeça de muita gente.

Para os que conheciam o underground, o contato de Reed com o “wild side” não era novidade alguma, mas para os puritanos isso foi um baque.

Lou Reed, que na época vivia maritalmente com um travesti escultural chamado Raquel, transava esse lado mais por uma questão de fascinação que propriamente por estilo de vida.

Em observação como essa é que reside a chave de sua personalidade e de sua trajetória.

Em 73, com o álbum “Berlin”, quando todos esperavam novas poetizações de romances beatniks, ressacas e personagens do submundo, Reed dá outro golpe.

Utilizando um casal de freaks como tema, ele resolve retratar de maneira fria e introspectiva, o vazio dos anos 70.

A imprensa arranjou outro rótulo, “o esteta da decadência”.

Provavelmente Reed gostou da história e como gostava de drogas decidiu mergulhar nos paraísos artificiais.

Uniu sua verdade ao sensacionalismo buscando a auto-afirmação, o sucesso ou simplesmente curtindo com a cara de todo mundo.

Declarou que as drogas eram tudo para ele e que era impossível conviver no espaço urbano sem pesadas viagens.


A panorâmica em 74 culmina quando num belo show (“Rock’s Roll Animal”, que viraria um álbum ao vivo gravado em Nova York) toma um pico de heroína no meio do palco.

Pronto, foi preso e foi laureado pela geração stoned.

O anti-herói de verdade, diziam.

Ele ficava calado e adorava confundir os bobos dizendo “as coisas não são bem assim”.

Para embasbacar ainda mais, em 76 lança “Sally Can’t Dance”, dois álbuns ao vivo que resumem seu drug period e o insuportável “Metal Machine Music”, um álbum duplo só com ruídos e mal gravado.

A imprensa acha o máximo da vanguarda e Reed, ironicamente, pede desculpas por ter posto o disco à venda, pois o houvera feito apenas como lazer.

Não levando em conta que, desde o Velvet, Reed vinha mudando de cara, em 76 ele volta a deixar os cabelos crescerem, lima a tintura e confessa ser um mercenário que sabe exatamente quanto ganha e quanto gasta.

As pessoas ficam perdidas.

Mas não era ele o anjo de Jean Genet? O homossexual pervertido? O apologista das drogas? O retratista da estética dos jovens decadentes?


Em meio a indagações, Lou Reed lança em 76 dois discos, os confessionais “Coney Island Baby” e “Rock’n’roll Heart”, nos quais passa a admitir de forma mais clara suas dúvidas e dores pessoais.

Aliás, ele sempre havia feito isso, só que desmembrava em estorietas kafkianas.

A imprensa dá mais um atestado de burrice e o rotula como neo-existencialista.

No período compreendido de 78 a 79, datas dos álbuns “Street Hassle” e “The Bells”, Reed que desde o Velvet resguardava todos os requisitos referente ao punk, explicitou adereços punksters, o que lhe valeu muito prestígio entre os menores de 18 anos.

Por um ângulo foi um belo golpe promocional, coisa de safado mesmo, mas por outro não deixava de ser a sua própria sonoridade revestida apenas por um pouco mais de energia, ou seja, ele jogou, mas não traiu.

Como ninguém é de ferro em 80 com “Growing Up In Public”, dá uma leve derrapada e anuncia sua preocupação com a corrupção social.

Os tontos jornalistas estranham e procuram entender, mas esquecem que no álbum “Transformer” ele já havia adentrado quadros sociais, apenas disfarçados em atmosferas caricaturais.

Alguns acham o máximo essa sua nova cabeça.

Ele não dá a mínima e se retira do frontside.


Reaparece em 82 com o magnífico “Blue Mask”, um álbum que além de radiografar a miséria do contexto social-político expõe todo seu lado de pisciano romântico e sonhador.

Muitas mais besteiras são escritas.

Dizem que Reed inaugurou o novo romantismo no rock, porém não perceberam que em todos os seus discos anteriores, embora de maneira disfarçada, Reed sempre foi um romântico por excelência.

O álbum seguinte “Legendary Hearts” foi apenas o complemento singelo de “Mask”, mas cooperou em reafirmar sua posição de homem sereno, casado, crítico e, sobretudo, romântico.

Reed aproveitando todas aquelas calúnias e loucuras de seu passado que pareciam não terem sido registradas, decide assumir tal postura.

Passa a usar uns óculos de intelectual, faz comerciais de TV, fala mal das drogas e defende a instituição do casamento.

Como sempre deu uma exageradazinha, fez umas poses, mas estava vivendo uma situação quase assim.

Mais uma vez não mentiu, mas a maioria dos antigos fãs não conseguiu engolir o seu novo look caretão.

Enquanto uns se irritavam, outros, aqueles que consumem todas as regras da pasteurização, o idolatravam.

Ele começou a ganhar alguns cifrões a mais.

A situação de boa vida (claro que nunca se despiu da sua acidez crítica) parece que não lhe fez muito bem.

De “New Sensations” (84) a “Mistrial” (86), Reed viveu sua primeira e única entressafra criativa.

Parecia ser um pouco de tudo o que fora e não chegava a nada. Claro que, mais que ninguém, sabia que teria de dar uma guinada.

Neste misto de renascimento é que faz o seu comeback ao vinil com o álbum “New York” (89), um exame sarcástico da vida urbana nas megalópolis, considerado por absolutamente toda a crítica como o seu melhor trabalho em muitos e muitos anos.

A impressão geral foi de que Reed havia mudado radicalmente.

Na verdade, ele não falava nada de novo, não apresentava soluções e nem queria a parte do problema que quase arruinou a cabeça de Bob Dylan.

Reed limitava-se a comentar o terror da aids, a devastação ecológica, a ditadura de Reagan, o fantochismo de Bush e as catástrofes nucleares, ou seja, ele era o que sempre foi, uma esponja que refletia o universo à sua volta.

Simples e genial como uma iluminação de Rimbaud.


Em 1989, Lou Reed e John Cale, quebrando um gelo que já durava mais de vinte anos, voltaram a compor juntos e lançaram, em 1990, o álbum “Songs For Drella – A Fiction”, trilha sonora de um espetáculo que haviam montado no ano anterior em homenagens ao velho amigo e mentor Andy Warhol.

Os dois não gostavam de chamar o espetáculo de ópera ou opereta. Nem teatro.

Menos ainda ciclo de canções, evocação dos anos 60, ou nem sequer réquiem para Warhol, que havia morrido alguns anos antes.

“Nosso showzinho é um punhado de canções sobre Andy”, explicou Reed. “Chamamos de ficção porque, mesmo que muita coisa seja parte verdade, as outras verdades são parte ficção. Andy teria entendido e teria preferido assim”.

“Eu odeio Lou Reed cada vez mais”, escreveu Warhol em seu diário, em setembro de 1986.

Ele morreu em fevereiro de 1987 de complicações renais, depois de uma séria operação de emergência.

Em janeiro de 89, na elegia para comemorar o aniversário de morte do artista, na igreja de St. Ann, no Brooklin, Lou Reed e John Cale retrataram Warhol como uma figura santificada, patrono das artes.

Não tinham lido ainda os diários, que só seriam publicados meses depois.

As canções carinhosas falavam de saudade.

No altar da igreja, Reed na guitarra elétrica e Cale na viola, contritos.

A voz suave de Reed finalizou com uma canção de ninar: “Alô, Andy, sou eu! Não te vejo há tanto tempo. Gostaria de ter-te falado mais quando você estava vivo”.

Muita gente chorou. E Warhol não era chegado a sentimentalismo.


Cientes do diário, em que há vários outros insultos a Reed, ele e Cale tiraram Warhol do pedestal de santo e reescreveram as canções.

Acrescentaram mais três, nas quais se referem a incidentes citados por Warhol nos diários, e criaram para o espetáculo a seqüência onírica perturbadora em que Warhol se queixa que Reed não telefona mais, agora que está famoso.

Para essa parte, Reed e Cale se inspiraram nas palavras de Warhol no diário: ele se queixa de não ter sido convidado para o casamento de Reed (“será que ele achou que eu ia levar muita gente?”), sugere que não ganhou dinheiro suficiente com o primeiro LP do Velvet Underground (“mas eu produzi isso”), analisa maldosamente as novas preferências sexuais de Reed (vivendo, finalmente, um casamento normal com a artista plástica Sylvia Morales), e a nova carreira com o elepê “Mistral”, que praticamente refez sua vida.


Em 1993, vinte e cinco anos depois de seu último show, o Velvet Underground começou a saborear o sucesso.

Todos os ingressos para a turnê européia da banda foram esgotados com antecedência.

E os cambistas deviam estar se perguntando de onde saíra este grupo que era uma verdadeira mina de ouro: um ingresso de US$ 17 acabou valendo mais de US$ 100 no câmbio negro.

O Velvet pegou todo mundo de surpresa.

Esperava-se de tudo na leva dos revivals que assolaram os angustiados anos 90, menos o pop com cérebro, niilista e avesso a jogadas comerciais do VU.

Por que diabos o Velvet resolveu se reunir em torno da formação original (Reed, Cale, Mo Tucker e Moss) para uma série de shows mais de 20 anos após a separação?

“A única raison dêtre desta turnê européia é diversão. Tocar pelo barato de tocar juntos. Não tem nada a ver com a grana”, respondeu Lou Reed à imprensa inglesa.

Os quatros membros do Velvet estão mais velhos, mais bronzeados, mais saudáveis, “mais sábios”, ainda segundo Reed.

E parece que a alquimia entre eles continuou funcionando, apesar das relações terem azedado no final da carreira do grupo.

O show que abriu a turnê do grupo em Edimburgo, numa noite chuvosa, teve uma platéia de três mil pessoas – bem mais do que o grupo havia conseguido atrair quando estava no auge.

É possível que uns poucos contemporâneos da banda estivessem ali para cantar em coro os maiores sucessos do VU.

Mas a maior parte do público pagante muito provavelmente aprendeu sobre a lenda VU através de enciclopédias especializadas.

“A multidão foi literalmente à loucura”, disse a manchete do jornal The Independent, na crítica do show de Edimburgo.

A lista das velhas favoritas foi repassada de alto a baixo (“Sweet Jane”, “White Light, White Heat”, “Rock’n’roll Animal”, “Waiting For My Man”, “Heroin”), e Lou Reed foi, sem sombra de dúvidas, a estrela maior da noite.

Tudo muito bonitinho e previsível, mas, segundo The Times, “este show não produziu nenhuma sensação dejà vu, mas sim a impressão de que após 25 anos, o resto do mundo vem simplesmente tentando alcançar o Velvet Underground”.


Alguns dos melhores álbuns da carreira individual de Lou Reed trataram de amor (“The Blue Mask”), da vida urbana e da política (“New York”) e do envelhecimento (“Magic And Loss”).

Em “Set The Twilight Reeling”, lançado em 96, ele combinou esses temas e acabou fazendo um álbum que, depois de muitas peças repetidas, superava sua evidente trivialidade (com canções como “Egg Cream”, que lembra os restaurantes do Brooklyn na época de sua juventude, “NYC Man”, sobre ele mesmo, e “Hooky Wooky”, que fala de seu novo amor, Laurie Anderson).

A identificação dos álbuns de Lou Reed, muitos deles com olhares voyerísticos sobre sua vida, é geralmente uma declaração dogmática do cantor sobre sua nova identidade (seja como heterossexual ou homossexual, um viciado desesperado ou um observador reformado, um amante ou um simplório).

Em “Set The Twillight Reeling”, ele é apenas um simples morador de Manhattan, consumidor de creme de ovo que subitamente é pego pelo amor.

Numa apresentação pungente da faixa-título do álbum, também dedicada a Ms. Anderson, Reed afirma gentilmente sua última (e estranhamente sólida) reencarnação: “Um novo ser nasceu”.

Lançado em 1992, “Magic And Loss” foi uma profunda meditação a respeito da morte de alguns de seus amigos íntimos.


Mas, quatro anos depois, seu ânimo estava mais elevado, graças em parte à sua nova ligação romântica com Laurie Anderson e em parte também à introdução da banda Velvet Underground no Hall da Fama do Rock-and-Roll, depois de um longo adiamento (muito embora o brilho dessa ocasião tenha sido empanado pela morte em 1995 de um dos membros da banda original, Sterling Morrison, derrotado pelo câncer).

“Para mim foi uma confirmação, um reconhecimento do que a Velvet Underground fez e também da fé que o patrocinador, Andy Warhol, depositou em nós”, recordou ele. “Essas canções e eu mesmo recebemos durante muito tempo uma reação tão negativa. É bonito ver seus colegas dizerem: ‘Isso vale realmente a pena’. Quero dizer: eu sempre tive certeza de que valia a pena. Mas sinto-me muito triste por não contar com a presença de Sterling Morrison nessa homenagem”.

Quando lançou o disco “Ecstasy”, em 1999, Lou Reed foi logo avisando: “Não estou falando da droga que anima festinhas. Estou falando da condição de se alcançar o êxtase, de perdê-lo ou de sequer chegar à sua porta”.

Roqueiro sessentão, com um casamento sólido e uma banda sólida (que já atravessa uma década tocando com ele), Lou Reed desembarcou no Brasil em 2000 para sua segunda aventura nos trópicos.

À base de muito tai chi e abstinência alcoólica, Lou Reed parece ter-se tornado indestrutível.

Ao lado de Bob Dylan e Neil Young, é um dos mais criativos e inquietos músicos do rock e rock é um termo insuficiente para descrever tudo o que ele faz.

É também o mais arredio e contido dos superastros que restaram dos anos 60, o que às vezes leva as pessoas a definir o músico como arrogante.

Reed tem o pavio curto, principalmente com jornalistas.

Chamou Ann Powers, do New York Times, de estúpida.

“Oh, a natureza da besta”, ironizou.

Uma surpresa: Lou viu e aprovou a modelo Mila Jovovich cantando “Satellite Of Love”, um dos seus hinos underground, na trilha e em cena de “O Hotel de Um Milhão de Dólares”, de Wim Wenders.

“Ela é extremamente bela e eu adoro a cor dos seus olhos”, confessou. “Também gostei do filme”, complementou, dessa vez sem muito entusiasmo.


Ouvindo o disco “Ecstasy” dá para perceber que um Lou Reed mais manso, sóbrio e gentil havia emergido. Regenerado, talvez.

Especula-se que deve ter sido por causa do amor.

O cara que cuspiu no “all you need is love” dos anos 60 estava apaixonado.

Laurie Anderson e Lou Reed foram dois dos mais criativos artistas na mítica Nova York dos anos 70.

Compartilharam inquietudes, festas, drogas e provavelmente, inclusive, amantes, posto que tanto um como o outro andou pelo lado selvagem da vida.

Mas desde a década dos noventa, os dois dividiam amor e existência em um espetacular apartamento com vista para o rio Hudson, no extremo oeste da Canal Street, em Nova York.

Para mitos da modernidade, não seria apropriado o estatuto do casamento.

Mas o tempo passa e, talvez para eles também, tenha sido interessante selar seu envolvimento oficialmente.

No dia 12 de abril de 2008, Laurie Anderson, de 60 anos, e Lou Reed, de 66, decidiram pronunciar o sim, aceito em cerimônia secreta celebrada no Estado do Colorado, segundo o The New York Post.

Ao regressar a Nova York, o casal de artistas decidiu festejar a união com amigos na casa de Timothy Greenfield-Sanders, o diretor do documentário sobre Lou Reed “Rock and roll heart”.

Entre os convidados estava outro enfant terrible da cultura nova-iorquina, o pintor e diretor Julian Schnabel, e o ator da série “Law and order” Richard Belzer.

Em entrevista para o The New York Post, Laurie Anderson definiu Lou Reed como “meu melhor amigo”.

Eles se conheceram na época em que o Soho de Nova York era o epicentro da cultura underground da cidade e local em que músicos como Reed dividiam projetos com artistas tão díspares como Richard Serra, Jasper Jones ou John Cage.

Desde os anos 90 o casal tem colaborado profissionalmente em diferentes ocasiões: no álbum “The Raven”, de Lou Reed, se pode escutar o violino de Laurie Anderson e nos discos “Bright Red” e “Life On A String”, dela, há guitarras de Reed.


Incentivada pelo maridão, Laurie Anderson, havia voltado a pegar no pesado.

Depois de sete anos de seu disco mais recente (“Bright Red”, de 1995), a musa da vanguarda nova-iorquina lançou “Life On A String”, um dos mais belos e inventivos trabalhos musicais de 2002.

Laurie – natural de Chicago – vive em Nova York e mantém, desde sua mais tenra juventude, contato com grandes nomes da avant-garde americana, como o compositor John Cage e os poetas William Burroughs e Allen Ginsberg (há um sample do autor lendo seu poema “América” no espetáculo “Songs and Stories from Moby Dick”, baseado no clássico de Herman Melville, que ela apresentou em 2002, na Inglaterra e nos Estados Unidos).

No Brasil, ela se tornou célebre nos anos 80, quando seu espetáculo multimídia “Home Of The Braves” foi lançado em disco e nos cinemas.

A canção “Superman”, apesar dos seus oito minutos de duração, tocou exaustivamente nas rádios brazukas.


Pequena, inquieta e intrigante, Laurie Anderson adora falar sobre seu atual estágio de trabalho, entre o comercial e o conceitual.

“Estou me divertindo muito com essa nova banda e adoraria ir ao Brasil com esse show”, diz ela.

Laurie comentou a situação em Nova York após os ataques terroristas de Osama bin Laden (“Um aspecto positivo daquilo foi que as pessoas estão se tornando mais politizadas, passando a ter mais responsabilidade pelo que fazemos como país”) e acha que os nova-iorquinos estão se tornando “mais cuidadosos, mas não paranóicos”.

“Essa é uma cidade ocupada, as pessoas trabalham muito”, afirmou. “Mas não estão deixando a cidade, o que é um bom sinal – só estão atentas porque descobriram que o impossível também acontece”.

Uma explicação bastante cool, diga-se de passagem.

2 comentários:

Paulo-Roberto Andel disse...

Excelente!

Anônimo disse...

genial