Entretanto, conforme reza a lenda, coube a uma banda inglesa propor uma alternativa metaleira em plena efervescência punk.
Sem eles, com certeza, a chamada “New Wave of British Heavy Metal” não teria surgido assim, com tanta facilidade.
“Você nasce pelado e morre sozinho. Entre esses dois momentos, você tenta fazer o melhor. E o melhor, para mim, é ter uma vida de loucuras, levando o máximo de prazer aos kids que, durante duas horas, esquecem essa merda toda. É por isso que, quando posso, deixo um monte deles entrar de graça”.
Esta é uma das declarações de um rocker que iniciou a carreira em 1964 – Ian “Lemmy” Kilmister, viga-mestra do Motorhead – mas que só conseguiu cair nas graças do metaleiros a partir de 76.
Crescido ao som de Little Richard e Eddie Cochran, Lemmy chegou a integrar, por volta de 67, os Rocki’n Vickers.
Depois de dois anos, partiu para Londres, onde virou roadie e “pusher” (“passador de drogas”) de muita gente.
Durante algum tempo trabalhou com personalidades como Move, Nice, Pink Floyd e Jimi Hendrix.
Da fase mais turbulenta – com este último – ficou uma lembrança.
“Havia muito ácido na época! Hendrix havia ganhado cem mil ‘purple haze’ (tipo de ácido) de Owsley, um cientista maluco de São Francisco. No início da turnê começamos tomando um por dia. Ao final da excursão era engolir como se fossem drops. Isso é que era psicodelismo”, recordou Lemmy Kilmister.
Desenvolvido especialmente para Hendrix, o “purple haze” (“neblina púrpura”) possuía duas vezes mais monoidrato de ácido lisérgico do que a dosagem encontrada no afamado “Owsley blue”.
A primeira formação do Motorhead data de 75 e tinha Lucas Fox na bateria, Larry Wallis no baixo e Lemmy na guitarra e vocal.
No ano seguinte, ele viria a assumir o baixo na formação que contava com Philty “Animal” Taylor (um ex-skinhead de Chelsea e ex-passador de drogas, capaz de se transformar num monstro por detrás de uma bateria, daí o apelido), e Eddie Clark (um velho fã de Clapton na época do Cream) na guitarra, também conhecido como “Flash Eddie” pela velocidade com que tocava o instrumento.
Eles ficaram unidos durante seis anos e meio.
O primeiro compacto saiu no mesmo ano pela Stiff Records e se chamava “White Line Fever / Living Here”.
O nome Motorhead foi inspirado numa música do Hawkind (seu grupo anterior) e significa, na gíria, uma desbundada viagem de anfetamina.
O estilo: “pesado, rápido, rancoroso, arrogante, machista e paranóico. Nós seremos o grupo mais sujo do mundo. Se passarmos no seu jardim, a grama nunca mais nascerá”, como ele mesmo definiu na época.
Estava lançada a pedra que iria unir todos os estilos do rock pauleira num só grupo.
Depois de descolarem uns amplificadores velhos com Wilko Johnson, do Dr. Feelgood, e caírem na estrada, os integrantes da banda fizeram amizade com o líder dos Hell’s Angels de Londres, que os apresentou ao selo Chiswick e acabaram gravando o primeiro disco do Motor, “On Parole”.
O Motorhead eliminou os solos sem fim das guitarras e trouxe de volta para o metal as músicas curtas e condensadas.
Com sua carnificina musical estridente, seu rock básico e sem frescura, e seu som espantosamente selvagem, o Motorhead caiu nas graças dos “metal kids” (os pais dos headbangers), justamente por causa dessa pureza e energia primitiva do metal que fez com que muita gente o considerasse um casamento de hard com punk. Mas não era.
O Motor estava apenas lançando a semente do speed metal, o heavy metal tocado em alta velocidade.
Depois do segundo disco (“Motorhead”) e de algumas turnês européias, a banda resolveu dar um tempo.
Em 1978, o trio entrou em estúdio e gravou num só dia o álbum “Overkill”.
Para se ter uma idéia do estado do pessoal nas gravações, basta ouvir a voz pastosa de Lemmy dizendo “I’m so drunk!” (“estou tão bêbado!”), na faixa “I Won’t Pay Your Price”.
E o pior é que não era brincadeira, pois foi a única coisa que ele conseguiu falar quando lhe deram o sinal para começar a cantar, antes de cair da cadeira completamente chapado.
Com a entronização de “Overkill” no panteão dos clássicos do metal, a carreira do Motorhead não parou mais.
A fama chegou em 1980, com uma turnê vitoriosa pela Inglaterra e várias canções nas paradas de sucesso como “No Glass”, “Bomber” e “Motorhead”.
Em 1981, nova excursão britânica ao lado do grupo Girlschool, a banda feminina pioneira do heavy metal, com quem lançariam os compactos “Don’t Touch Me” e “Saint Valentine’s Massacre”.
Suas aparições ao vivo eram marcadas por distúrbios de um público tão fiel quanto enlouquecido, que ia desde motoqueiros barra-pesada até punks em crise existencial.
Lemmy, o cabeça e letrista do grupo, escreve uma poesia eficiente e agressiva, que não perdoa as instituições mais sagradas e promove a revolta como forma de divertimento.
Mas o som do Motorhead é muito divertido – uma mistura de puro rock’n’roll com a voz meio punk de Lemmy e uma agressividade que fazia com que o “heavy metal” tradicional ficasse parecendo música sacra.
Uma das turnês que eles fizeram nos Estados Unidos terminou com um show no Ritz de Nova York, lotado por uma audiência mais que variada.
Desde os Hell’s Angels em peso até vários travestis de gilete, misturados com skinheads, punks e um grande público que se veste de couro preto dos pés à cabeça e gosta de acessórios metálicos bicudos e cortantes.
Em 1982, o Motorhead grava “Iron Fist”, o primeiro álbum que os próprios músicos produzem.
Alguns meses depois, Fast Eddie abandona a banda durante uma turnês pelos EUA e é substituído por Brian “Robbo” Robertson (ex-Thin Lizzy).
O novo disco do grupo, “Another Perfect Day”, chega às lojas em 84 e foi o único álbum com Robbo Robertson.
A mania do guitarrista de usar shorts apertados e sapatilhas de balé e sua recusa em tocar as músicas mais populares do repertório do Motorhead pegava muito mal para os fãs.
Lemmy convoca, dessa vez, dois guitarristas, Phil Campbell e Würzel, e mete um cartão vermelho no baterista Philty Taylor, que é substituído por Pete Gill, do Saxon.
Depois de dois anos de brigas com a gravadora, o Motorhead volta a entrar em estúdio, dessa vez com o produtor avant / funk Bill Laswell, para a gravação do poderoso “Orgasmatron”.
O discon é uma porrada categórica, que headbanger nenhum pode botar defeito.
Lemmy acertou na mosca com dois guitarristas que estão além da medida certa em seus duelos e solos, limpando aquela zoeira de outros discos do grupo.
Isso sem contar o trabalho firme do baterista Pete Gill, que pelo jeito havia acertado na mega sena acumulada ao sair da decadente banda Saxon.
O vocal rouco, louco e raivoso de Lemmy agora estava melhor assessorado e ele até cavucava seu baixo pra caramba.
Letras fortes e fudidíssimas, como em “Deaf Forever” e “Orgasmatron”: “Eu sou o único, Orgasmatron, a mão avarenta esticada. Minha imagem é de agonia! meus serviçais violam a terra, servis e arrogantes, clandestinos e vaidosos. Dois mil anos de miséria e tortura em meu nome”.
Um ano depois, Pete Gill recebe o cartão vermelho e Philty Taylor é chamado de volta para a gravação de um novo álbum chamado, simplesmente, de “Rock’ N Roll”.
Com essa “nova” formação, a banda toca pela primeira vez nos EUA, a convite de Alice Cooper.
O Motorhead resolve incluir o Brasil em sua turnê.
Em 1989, fizeram apenas uma das duas apresentações que estavam programadas para acontecer em São Paulo.
Os equipamentos de som quebraram e os músicos não fizeram grande esforço para dar um jeito de tocar na segunda noite, preferindo conhecer os bares e as putas da cidade.
Em 1992, quando a banda entra em estúdio para gravar “March Or Die”, Kilminster expulsa Philty da banda mais uma vez e recruta Mikkey Dee (ex-Ramones).
O fracasso de vendas do álbum provoca a dispensa do Motorhead da gravadora.
Putos da vida, eles acabam gravando “Bastards”, de forma independente.
Em 1995, ano em que se comemorou o 20º aniversário da banda e os 50 anos de idade de Lemmy, o guitarrista Wüzel recebe seu cartão vermelho depois das gravações do álbum “Sacrifice” e o Motorhead voltou a ser um trio.
Quando perguntado sobre como essa mudança de instrumentistas afetava o som da banda, Lemmy apenas sorria: “Em nada, só tocamos cada vez mais alto”.
E a indiferença era mais ou menos a mesma com relação a todas as outras formações que a banda teve desde que surgiu.
Lemmy Kilmister é o único que permanece desde o início e é natural que hoje a banda esteja associada quase que exclusivamente ao seu nome.
Em 1999, eles lançaram o álbum “Everything Louder Than Everyone Else”, com gravações ao vivo feitas durante um show realizado no ano anterior em Hamburgo, na Alemanha.
A canção “Going To Brazil” faz parte do repertório.
Outras faixas que estão no álbum são “Ace Of Spades”, “Orgasmatron” e “I’m So Bad (Baby I Don’t Care)”.
Em 2000, eles lançaram “We Are Motorhead” para mostrar seu compromisso de não mudar uma vírgula em sua música com a finalidade de aproveitar ou absorver uma determinada tendência.
Fazendo um rápido balanço do Motorhead, pode se concluir que o mundo acadêmico perdeu, mas o heavy metal saiu ganhando.
Lemmy Kilmister poderia ter sido um instigante professor de história, compartilhando com os alunos sua admiração relutante por Goering e seu desdém por “bastardos” como Hitler e Roosevelt.
Em lugar disso, porém, o músico ganhou fama e status de cult junto a gerações de metaleiros por cantar e compor hinos de fúria como “Osgasmatron” ou “Killed By Death”.
Mas ele conserva seu fascínio com a 2ª Guerra Mundial e gasta seu dinheiro colecionando objetos da era nazista, que lotam seu apartamento de dois quartos perto do Sunset Strip, em Los Angeles.
“Nasci em 1945, o ano em que tudo aquilo terminou”, disse Kilmister em entrevista concedida a Reuters em seu bar local predileto, o Rainbow Bar and Grill.
“Aquela época não é história antiga para mim, e não a enxergo apenas em termos de ingleses e norte-americanos bons e alemães ruins.”
Suas opiniões já provocaram muita polêmica. No passado, Kilmister se dizia anarquista.
Seu amigo Ozzy Osbourne lhe deu um punhal da SS e algumas bandeiras, depois de decidir que não precisava de tantos elementos sombrios em sua vida.
O bem que ele mais preza é uma espada Damascus da Luftwaffe, que, segundo um marchand, pode valer pelo menos 10 mil dólares.
“Ela será minha aposentadoria”, disse Kilmister, falando de sua coleção.
Por coincidência, o Motorhead tem seu maior número de fãs na Alemanha.
E Kilmister nunca perde uma oportunidade de visitar locais históricos em toda a Europa, embora nunca tenho ido aos campos de concentração.
“É preciso distinguir entre o que você gosta de colecionar e o que aquele pessoal realmente fez”, diz ele.
Kilmister diz que Herman Goering é o único nazista que ele admira um pouco, em parte porque o gordo líder da Luftwaffe criou a Gestapo, a polícia secreta nazista, e assumiu a responsabilidade por ela quando foi a julgamento em Nurembergue, após a guerra.
Seu suicídio, horas antes de sua execução prevista por enforcamento, foi “fantástico”, segundo o metaleiro.
Mas Kilmister inclui Adolf Hitler, Franklin D. Roosevelt, Neville Chamberlain e Josef Stalin todos na mesma categoria: a de “bastardos mentirosos e ladrões”.
O atual primeiro-ministro britânico, Tony Blair, também o irrita.
Kilmister diz que seu interesse por história e acontecimentos atuais lhe ensinou algo sobre a hipocrisia e a recusa das pessoas em aprender com o passado e que isso inspira suas canções.
“Sexo, guerra e morte, sem falar em injustiça – acho que não vão me faltar temas no futuro”, comentou.
Mas muitas de suas canções também são marcadas pelo humor, como é o caso de “Killed By Death”, de 1984.
E, não se sabe bem como, o Motorhead conseguiu incluir uma canção sua na trilha sonora do filme infantil Bob Esponja.
Em 30 anos a banda, já lançou 21 álbuns, dos quais o mais recente é “Inferno”, de 2004.
De acordo com Kilmister, a mais vendida foi “No Sleep ‘Til Hammersmith”, de 1981, que vendeu 500 mil cópias em todo o mundo.
Mas a influência exercida pelo Motorhead é enorme.
O Metallica, por exemplo, foi tremendamente influenciado pelo trio, tendo incluído covers de quatro músicas dele no álbum “Garage Inc.”, de 1998.
O Motorhead, por sua vez, gravou um cover da canção “Whiplash” num disco de tributo ao Metallica, com isso conquistando seu primeiro Grammy.
Kilmister já compôs as letras de alguns sucessos de Ozzy Osbourne, entre eles a balada “Mama, I’m Coming Home”.
Mas nunca conseguiu ficar rico, como Osbourne e o Metallica.
O cantor nunca se casou, mas desfruta a companhia de cinco mulheres na faixa dos 18 aos 25 anos, a quem pode convocar quando quiser.
No passado, ele chegou a dividir algumas namoradas com seu filho.
“Mas nunca transei com a mulher dele”, faz questão de deixar claro. “Era preciso traçar um limite em algum lugar.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário