A “psicodelia” (“manifestação do espírito”, em grego), ou o velho barato de alargar as fronteiras da cuca através de aditivos químicos, tem raízes milenares.
Praticamente todas as civilizações de que se tem notícia usam (ou usaram) algum tipo de droga.
O que diferencia uma das outras é o grau de tolerância das classes dirigentes de cada Estado.
Problemas relacionados com narcóticos começaram a preocupar os governantes somente a partir do início do século 20.
Quando o comércio desses produtos passou a ser significativo, as maiores potências da época realizaram a Conferência de Shangai, em 1909.
Três anos depois, uma outra conferência internacional acontecia na Holanda, e ficou popularmente conhecida como a Convenção do Ópio.
Foi a primeira convenção (a de Shangai) que regulamentou a produção e comercialização da morfina, heroína e cocaína.
Naquela época, cocaína e ópio eram amplamente utilizados pela classe média e alta européias, inclusive por médicos, cientistas e intelectuais.
Não havia estigma sobre o assunto.
O velho Sigmund Freud era um desses usuários famosos de cocaína.
Ele chegou a escrever artigos e cartas elogiando os efeitos benéficos da droga – euforia, energia e disposição intelectual, segundo o pai da psicanálise.
Mais tarde, Freud se arrependeu depois de ver um paciente morrer de overdose, uma overdose por ele próprio receitada.
Até os anos 20, essas drogas – e, particularmente, a maconha – eram consumidas livremente nos Estados Unidos.
Os problemas começaram a aparecer depois da revogação da “Lei Seca”, que proibia o comércio de bebidas alcoólicas no país.
Uma disputa interna no recém-criado Federal Bureau of Investigations (FBI) entre os chefões J. Edgard Hoover e Alfred Anslinger levou à criação do Bureau de Narcóticos, dando início a uma campanha de repressão ao consumo de drogas.
Quando alguém menciona os ruidosos anos 20, tendemos a nos lembrar do pessoal dançando charleston, bêbados com faces esverdeadas, detetives gordos com cassetete, bichas e viados afetadíssimos, vagabundos com adenóides e cafetões entrelaçados com amantes ingerindo uma droga ilegal chamada “booze”, um dos apelidos do Bourbon do Condado de Fairfax, na Vírginia, engarrafado sob garantia dos gangsters mafiosos comandados por Al Capone.
Alguém se lembra dos anos 40? Pouca gente sabe que a droga da cultura da Segunda Guerra mundial era a anfetamina.
As autoridades militares, de um modo geral, recusam-se a admitir, mas o pulso dinâmico e a onda de ação da Segunda Guerra eram em grande parte devido ao chamado “speed”.
Os cientistas alemãos descobriram as anfetaminas (comercializadas como benzedrina, dexedrina ou pervitin) nos anos 30 e logo os laboratórios americanos conseguiram piratear a fórmula.
As “pilulinhas zumbidoras”, como ficaram conhecidas, eram alegremente disputadas pelo marechal nazista Goering e por quase todos os generais da Wehrmacht.
Eles chamaram a sua nova tática de guerra hiper-ativa de “blitzkrieg” (“guerra relâmpago”).
A gíria alemã para “speed” (no sentido de “ligar”) era “blitz”.
Para não ficar por fora, o exército americano começou a colocar “speed” entre a ração daqueles soldados cujos deveres incluíam longas horas de vigília, atenção aos detalhes e disposição para morrer numa boa.
A quantidade de anfetaminas usada durante a Segunda Guerra, de acordo com os estudiosos do assunto, chegou à incrível média de uma pílula por soldado por dia.
Lógico que pintaram loucuras escabrosas, como no caso do soldado conhecido nos meios militares americanos pelo código de “Rosie, o rebitador”, que metralhou o próprio front durante um acesso de paranóia, causando pesadas baixas.
Sem dúvida, aquela foi uma movimentadíssima guerra elétrica.
As anfetaminas funcionam no sistema nervoso central e periférico, imitando os efeitos da adrenalina e da noradrenalina.
Estas são substâncias que permitem ao corpo efetuar atividades físicas em violentas situações de stress, como a reação de fugir diante de algum perigo ou de lutar até a morte.
Os resultados do consumo de anfetaminas são a falta de fome e de sono e uma forte necessidade de movimento.
O incremento na autoconfiança resulta numa perda de autocrítica, podendo conduzir a paranóias psicóticas.
No início, a benzedrina era utilizada como descongestionante nasal vendido livremente nas farmácias.
Os malucos descobriram como abrir os inaladores, retirar o papel encharcado de benzedrina e enrolá-lo em “bolinhas”, que engoliam com café e coca-cola.
Como conseqüência das suas propriedades estimulantes, rapidamente as “bolinhas” ficaram populares entre os motoristas de caminhões, que tinham que conduzir os veículos durante longas distâncias no menor espaço de tempo possível, sem fechar os olhos mesmo estando mortos de sono.
Nos anos 60, comercializada como moderador de apetite, a benzedrina tornou-se popular entre as classes trabalhadoras mais novas, principalmente entre os mods, que ficavam acordados durante dias seguidos pelo uso da droga, visivelmente debilitados devido à forma como ela reduzia o seu apetite.
Com o propósito de obter o efeito psicoestimulante, alguns mods chegavam a tomar mais de 50 cápsulas por dia.
Por causa de sua grande aplicação medicinal, inicialmente as anfetaminas não ficaram abrangidas pela Lei do Ópio, mas sim pela Lei dos Fármacos de prescrição, e desta forma o comércio não autorizado era uma mera contravenção, e não um crime.
As primeiras restrições internacionais sobre as anfetaminas foram impostas em conexão com o tratado de Viena sobre substâncias psicotrópicas em 1970.
A partir daí, as anfetaminas passaram a ser produzidas e vendidas com sucesso no mercado negro.
Em 1944, Nova York surge como a mais importante metrópole no mundo pós-guerra.
1944: Hal Chase, Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs
Na Universidade de Columbia, o calouro Allen Ginsberg, de 17 anos, conhece o recém expulso aluno Jack Kerouac por meio do também universitário Lucien Carr.
Vagando pela suja noite de Times Square ao lado de seu primeiro mentor, William Burroughs, o trio descobre a expressão “beat”, cunhada pelo marginal junkie Herbert Huncke.
Cada qual ao seu modo designou sentidos diversos para a mal entendida expressão deliberadamente usada pela mídia a partir dos anos 50.
Para Kerouac – e conseqüentemente para Ginsberg, que à época o endeusava no auge de sua homossexualidade reprimida – beat significava “espontânea prosódia bop”, forma livre, beatífica e herética de expressar a decadência humana, enquanto o genial Burroughs deduziu sarcasticamente o termo nos verbos “pilhar” e “ser surrado”.
Dez anos depois, a mídia, em sua eterna busca por rótulos, pasteurizava o indefinível: ser “beatnik” virou moda e multiplicou-se em diversos grupos de contestação, inspiração – e muito charlatanismo – graças à percepção nua de artistas sensíveis ao crescente papel político das artes desde o início do século.
Querendo ou não, tais pessoas marcaram a história como um movimento intelectual que uniu todas as áreas sob uma atitude: ao quebrar as regras e atingir ao inconsciente coletivo com obras mais orgânicas, revolucionaram para sempre as manifestações culturais em todos os campos.
Nos anos 50, os escritores beatniks – Jack Kerouac, Neal Cassady, Allen Ginsberg, William Burroughs, Gregory Corso, Lucien Carr, John Clellon Holmes, Peter Orlovsky, Gary Snyder, Lawrence Ferlinghetti, Michael McClure e Hal Chase, entre outros – engendraram uma curta, mas influente revolta contra o “valium culture” de Einsenhower.
Pense nos beatniks e você pensará em um hipster com carinha de anjo enrolando “baseados”, discutindo papos supercabeças, transando preguiçosamente em comunidades rurais, cortando o país de norte a sul em carangos envenenados, brincando de pegas sonhadores em praias enluaradas, e misturando na mesma serpentina cerebral, álcool, cannabis, codeína, heroína e benzedrina pra vomitar tudo de volta na forma de poesia cool.
Os anos 60 foram a década de Jackie Kennedy, a glamurosa irlandesa, uma das musas eternas do artista plástico Andy Warhol.
Embora ela só permanecesse na onda até 63, seus planos adolescentes para a Nova Fronteira, seu idealismo sexy, seu hedonismo descuidado e visões de paz certamente deram o tom para o levante hippie e seus sentimentos antiguerra.
As drogas psicodélicas (cogumelos, psilocybina, mescalina e LSD) eram os neurotransmissores da década.
Vocês podem imaginar a cara de bunda da CIA e dos garotos que controlavam o “sistema” quando encontraram Jackie Kennedy tomando LSD na Casa Branca, junto com Mary Pynchot Meyer, a sapeca esposa de um respeitado agente da CIA e ex-companheira de um agente do serviço secreto francês?
E então, dizem alguns versados no assunto, eles assassinaram o carismático John (Kennedy) quando este deixou o seu cabelo crescer, se opôs à guerra do Vietnã e começou a mandar ver no ácido junto com Marilyn Monroe nas colinas de Hollywood.
Pelo menos é o que diz o insuspeitíssimo Timothy Leary no seu livro autobiográfico, “Flashback”, já lançado no Brasil.
A maneira como o movimento psicodélico floresceu no início dos anos 60, principalmente na costa oeste dos EUA, tem uma base distinta no New Deal, política de realinhamento econômico promovida nos anos 30 e 40 pelo presidente Franklin Roosevelt.
A América pós-New Deal foi pautada por quatro explosivos elementos: o maior desenvolvimento econômico da história, a maior distribuição de renda da história, a maior rede de telecomunicações da história e a maior explosão demográfica da história.
Tudo isso ao mesmo tempo agora.
O termo “baby boom” (“explosão de bebês”) é perfeito: entre 1946 e 1964, 86 milhões de crianças foram colocadas numa sociedade superafluente, em meio a uma explosão informacional inédita.
A televisão colocou o mundo ao alcance de todos e forneceu a essa geração uma fortíssima ilusão de livre arbítrio.
O material humano para a aventura psicodélica, portanto, já estava em ponto de bala.
O material químico também.
Em 1938, o bioquímico suíço Albert Hoffman havia sintetizado o vigésimo-quinto derivado do ácido lisérgico, mais conhecido com LSD 25, a partir de um tipo de fungo existente no centeio.
Em 1958, sintetizou a psilocybina, princípio ativo dos cogumelos mágicos mexicanos utilizados em rituais de pajelança e depois popularizados pelo escritor Carlos Castañeda em livros como “A Erva do Diabo” e “Viagem a Ixtlan”.
E a maconha, claro, já era consumida livremente nos circuitos jazzísticos.
A Califórnia dos anos 50 foi um foco privilegiado para o nascimento da contracultura, reunindo artistas expatriados como Aldous Huxley e a produção local dos hipsters e beatniks, amantes do jazz e da poesia libertária de Walt Whitman e Henry Thoreau.
Na linha de frente, o grupo de escritores beats comandados por Jack Kerouac, Allen Ginsberg e a farmácia ambulante, cobaia de si mesmo na experimentação de todo e qualquer tipo de droga, William S. Burroughs.
Entre eles, o interesse pelo hinduísmo e pelo zen-budismo (disseminados pelos escritores Alan Watts e D.T. Suzuki) lançava as sementes para o movimento hippie da década seguinte.
A primeira Bíblia do psicodelismo veio assinada por Aldous Huxley, descrevendo sua experiência com a mescalina, princípio ativo do peiote (um cacto mexicano).
Publicado em 54, o livro “As Portas da Percepção” adquiria uma credibilidade com que os beatniks não podiam sonhar: seu autor era um romancista e ensaísta inglês consagrado.
Conta-se, inclusive, que no seu leito de morte, em 63, Huxley pediu uma dose de LSD.
Evidentemente, o pedido do moribundo foi atendido (o ácido lisérgico, comercializado em cubinhos de açúcar e depois em papel mata-borrão, só foi proibido em outubro de 66).
A coisa toda poderia ter continuado como uma brincadeira de elite, assim como o ópio entre os poetas românticos ingleses e o haxixe entre os românticos e simbolistas franceses (Théophile Gautier, Baudelaire e Nerval chegaram a fundar um Clube do Haxixe na Paris do século 19).
Os pais da contracultura: Timothy Leary e Williams Burroughs
As comunicações de massa não deixaram, ajudadas pelo doutor em psicologia clínica Timothy Leary, professor da prestigiosa universidade de Harvard, que desde 60 pesquisava a psilocybina e o LSD, até ser expulso daquela instituição em 63.
Perseguido e sem dinheiro para continuar suas pesquisas, Leary viu a saída numa conversa com o mais influente teórico das comunicações dos anos 60, o guru Marshall McLuhan.
O conselho do velho bruxo: “Timothy, se você realmente acredita no LSD, faça proselitismo, palestras, happenings, shows, coisas incríveis. Não perca uma chance de divulgar suas idéias na mídia. Se você ficar sozinho e se isolar do grande público você está fodido!”
Leary seguiu-o à risca – com enorme sucesso.
O livro reunindo suas palestras e entrevistas (“The Politics of Ecstasy”) tornou-se a segunda Bíblia psicodélica.
Seu lema “Turn on, tune in, drop out!” (“Ligue-se, sintonize-se, caia fora da caretice!”) virou grito de guerra da geração hippie.
Quando veio a década de 60, São Francisco, já cultivava a boemia beatnik como uma simples tradição e, aos poucos, seu cenário musical começou a refletir isso.
O culto ao jazz foi trocado por uma onda de folk de protesto (Bob Dylan, Joan Baez e companhia), que por sua vez fez a transição para o rock psicodélico da primeira geração: Jefferson Airplane, Quicksilver, Moby Grape e o maior de todos, o Grateful Dead.
Mais que um grupo, o Grateful Dead seria a própria versão musical de todo o movimento hippie surgido em São Francisco, envolto no clima psicodélico e florido das primeiras experiências com LSD.
Havia em torno do grupo uma legião de seguidores, batizados “deadheads”, que consideravam suas apresentações mais do que uma apresentação, uma experiência, e mais do que uma experiência, uma maneira de viver.
Comandado por Jerry Garcia (ele morreu de ataque cardíaco, em agosto de 1995, aos 53 anos) e Bob Weir, o grupo participou integralmente dos “acid tests” (festas de som, imagens e drogas psicodélicas, algo assim como a primeira versão das atuais “raves” inglesas) organizados pelo escritor Ken Kesey e sua turma, os Merry Pranksters (“Festivos Gozadores”).
Enquanto Timothy Leary se esforçava para que o consumo de LSD ficasse restrito a poucas pessoas “verdadeiramente interessadas em expandir a mente”, Ken Kesey estava disposto a popularizar o consumo da droga e fez disso um cavalo de batalha.
Quem se interessar pelo assunto, deve ler o livro “O Teste do Ácido do Refresco Elétrico”, de Tom Wolfe, que acompanhou todo o trajeto dos Merry Pranksters e, por tabela, escreveu a história definitiva do movimento hippie.
Mas, agora, esqueça um pouco os hippies e imagine o seguinte enredo: um molestador de moças indefesas é levado a um sanatório para gente com problemas mentais.
Lá, ele, que é normal à beça, percebe de cara o caráter repressivo do sistema.
Põe tudo de pernas para o ar e é devidamente enquadrado – da maneira mais violenta possível – com uma lobotomia.
Claro: todo mundo que já viu alguma vez na vida “O Estranho no Ninho”, de Milos Forman, vai reconhecer a sinopse acima.
O filme é de 1975. Ganhou uma porção de Oscars, principalmente nas categorias principais.
Certamente não envelheceu, embora as idéias que estão em sua base tenham sido cozinhadas nos já longínquos anos 60, tempos da paz e amor e do flower power (“poder da flor”).
O texto original, filmado por Forman, é do já citado Ken Kesey, um típico exemplar da contracultura dos sixties.
Ele fez consigo mesmo uma série de experiências com LSD e descobriu que o mundo “normal” é um porre – no mau sentido da palavra.
Um dia, fazendo um estágio, ao que parece forçado, na ala psiquiátrica de um hospital, descobriu, fascinado, que os internos tinham uma compreensão muito mais aberta da vida que os vigilantes do estabelecimento.
Fez-se a luz.
O romance que imaginou a partir dessa experiência, “One Flew Over the Cucoo’a Nest” – que no Brasil ganhou o emblemático título de “Um Estranho no Ninho” –, é a tradução ficcional desse insight.
Sua conclusão não poderia ser mais libertária: os loucos são pelo menos muito mais inofensivos que a turma da repressão.
Quando o romance foi publicado, no início dos anos 60, Ken Kesey tornou-se uma celebridade instantânea e um dos gurus da contracultura.
Voltando à seara do rock, o lançamento do álbum “Revolver”, dos Beatles, pelas suas inovações e complexidades, influenciou toda essa nova geração do poder da flor.
Timothy Leary, no seu livro citado anteriormente, definia assim o grupo de Liverpool: “A mensagem de Liverpool e de todo o Novo Testamento cantado por quatro evangelistas – santos John, Paul, George e Ringo – é puro Vedanta, divina revelação, doce ironia contra a insanidade da guerra e da política, campo cheio de mágoas para a solidão burguesa, delicados hinos de glória a Deus. E o humor, a sátira aguçada e terna, sincera até do não é dos vera, a calma gozação do pomposo em si mesmo, da sua inevitável e própria pompa, do narcisismo ridículo das jovens estrelas do rock transformou-os em homens santos. Eis o que eles realmente são”.
Leary percebeu, com uma espantosa serenidade, a importância dos três anos de beatlemania: o surgimento de um movimento musical atuando como meio de comunicação social e sinal de reconhecimento para toda uma geração, assim como o nascimento de centenas de grupos musicais, muitos dos quais iriam se tornar criadores originais assim que se libertassem do raio de influência dos cabeludos ingleses.
Todos os músicos da costa Oeste americana, formados na escola de Los Angeles (Byrds, Buffalo Springfield, The Doors) ou ligados à cena musical de São Francisco (Grateful Dead, Jefferson Airplane, Quicksilver), devem aos Beatles o incentivo e o exemplo para encarar sua própria evolução como verdadeiros grupos inovadores, personalísticos e inventivos.
Outros, na costa Leste, mergulharam tão fundo na corrente de plagiadores dos rapazes que ficaram a um passo da armação qualificada.
Os Lovin’ Spoonoful e os Monkees eram uma cópia em papel carbono dos Beatles tão fiel que deviam ter sido produzidos em algum estúdio clandestino do Paraguai.
Mas essa influência musical sobre os novos grupos americanos só ocorreu porque durante as primeiras reuniões psicodélicas, nas mansões vitorianas de São Francisco ou nas comunidades de Berkeley, Palo Alto e Venice, os hippies efetivamente faziam viagens de ácido tendo um fundo sonoro beatle, de preferência com “Rubber Soul” ou “Revolver”.
Mais tarde, o próprio Timothy Leary iria organizar sessões do mesmo tipo no seu solar de Millbrook, perto de Nova York, tendo por tema principal de meditação e chapação o álbum conceitual “Sgt. Pepper’s”.
Reza a lenda que um dos primeiros encontros entre Jimi Hendrix e os Beatles aconteceu nos estúdios londrinos da Polydor, no princípio de 1967.
Hendrix gravava seu álbum de estréia, “Are You Experienced?”, e os Beatles esboçavam o “Sgt. Pepper’s”.
Esse suposto encontro teria sido um dos estopins para a massificação do psicodelismo inglês.
Naquele ano, ainda estourariam os álbuns “Disraeli Gears”, do Cream, e “Their Satanic Majesty Request”, dos Rolling Stones.
O estrago estava feito e o rock nunca mais seria o mesmo depois de 1967.
Em 1965, durante a segunda excursão dos Beatles pelos EUA, começou a circular o boato de que os Fab Fours iriam visitar o sítio de Ken Kesey, em La Honda, logo depois de se apresentarem no Cow Palace, nas imediações de São Francisco.
Ken Kesey sabe que aquilo tudo não passa de conversa fiada e não dá muita bola, mas quando chega no sítio, num entardecer de setembro, descobre que os Merry Pranksters têm convidados.
Na verdade, têm trezentos ou quatrocentos convidados, todos espremidos no amplo pátio entre a casa principal e a casinha dos fundos, com enormes e amargurados olhos de pirulito.
Parece que todos os doidões, boêmios, hippies e malucos do Oeste vieram se aglomerar no mesmo local, a grande zorra, com mais uns duzentos pequeninos cabeludos de lambugem, só para completar.
Metade deles estão abaixados com seus olhões de pirulito virados para o alto como se alguém os tivesse espetado na parede da casa, mas depois houvessem escorregado e caído no chão como lesmas.
Naturalmente, vieram em virtude da anunciada grande festa com os Beatles.
Kesey não está absolutamente no clima para essa história e entra direto na casa.
Toda a multidão de lesmas cabeludas malucas olha para ele, aqueles olhões de pirulito, como se ele fosse fazer os Beatles aparecerem ali, tirados de dentro de uma cartola.
Em seguida se põem a murmurar, feito um bando de presidiários que não receberam a comida, mas ainda não sabem se está na hora certa para a revolta dos escravos.
É uma débâcle, a não ser pelo fato de a coisa parecer tão cômica.
A cara que eles faziam.
Isso, e também o aparecimento de Owsley.
Um sujeitinho petulante, baixo, cabelo escuro, vestido como um curtidor de ácido, a costumeira parafernália, mas com uma estranha voz analasada e enrolada, como um hippie imbuído do espírito de um animador de rinque de patinação – esse pequeno indivíduo aparece diante de Kesey, emergindo da multidão de lesmas cabeludas, e declara: “Eu sou Owsley”.
Kesey nem diz “oi, eu sou Kesey”.
Fica só olhando para o cara, como se quisesse dizer “tudo bem, você é o Owsley e você está aqui – e daí?”.
Owsley fica aturdido.
“Eu sou Owsley”, repete.
De fato, Kesey jamais ouvira falar dele.
Era como se de repente Owsley se visse num lugar onde ninguém jamais ouvira falar dele, e não soubesse o que fazer.
Ele e Kesey ficam ali, de pé, olhando um para o outro, os olhos trocando recado, até que Owsley afinal apanha um saco que traz consigo, abre e mostra que está cheio de cápsulas de ácido.
Ele é Owsley Stanley, o maior fabricante de LSD do mundo, o que está bem próximo da verdade, inclusive para a Sandoz Indústrias Químicas.
Kesey olha o saco cheio de ácido.
Pelo menos o sujeitinho pretensioso tem um bocado de ácido.
Isso, definitivamente, não estava no script dos Merry Pranksters.
O maior fabricante de ácido do mundo, nem mais nem menos, estava ali, em pessoa, naquele fim de mundo, no meio da multidão de lesmas piradas e cabeludas sob as sombras das sequóias.
Aos poucos a história de Owsley foi vindo à luz.
Tinha trinta anos, embora parecesse mais novo, e possuía um nome comprido e sonoro: Augustus Owsley Stanley III.
Seu avô era senador dos Estados Unidos pelo estado de Kentucky.
Owsley aparentemente tivera uma infância complicada, pulando de uma escola para outra, até ir parar num colégio público, o qual abandonou, conseguindo mais tarde ingressar na Faculdade de Engenharia da Universidade de Vírginia ao que parece em virtude de seu talento natural para a ciência, mas em seguida abandonou também a faculdade.
Por fim, arrematou a história se matriculando na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde se ligou a uma aluna de química, bonita e de idéias avançadas, chamada Melissa.
Juntos, eles abandonaram a universidade e Owsley fundou sua primeira fábrica de ácido na rua Virgínia 1647, Berkeley.
Fazia altos negócios quando a polícia deu uma batida em fevereiro de 1965.
No entanto, ele conseguiu fugir, pois não havia lei alguma contra produzir, tomar ou ser portador de LSD na Califórnia, até outubro de 1966.
Mudou seu estabelecimento para Los Angeles, rua Lafler 2205, batizou-se como Grupo de Pesquisas Baer, e pagou 20 mil dólares em notas de cem para a Corporação Química Cycle em troca de quinhentos gramas de monoidrato de ácido lisérgico, matéria-prima básica para o LSD, que ele podia converter em 1,5 milhão de doses de LSD, ao preço de um ou dois dólares cada, no atacado.
Comprou mais trezentos gramas da Corporação Química e Nuclear Internacional.
Seu primeiro grande carregamento de 50 quilos de monoidrato de ácido lisérgico chegou no dia 30 de março de 1965.
Era matéria-prima suficiente para fazer 150 milhões de doses de LSD e pirar toda a população dos EUA.
Tinha talento, esse Owsley.
Aos poucos chegou a produzir vários milhões de doses de LSD, em cápsulas e tabletes.
Vinham com emblemas estapafúrdios grafados, a fim de indicar a força da dosagem.
O mais famoso era o chamado “Owsley blues” – que vinha com uma imagem do Batman, quinhentos microgramas de super-herói explodindo na cabeça do consumidor.
O “Owsley blues” era tão afamado e citado quanto, entre o pessoal um pouco mais velho, de fala arrastada, fora um dia a droga líquida, de grande celebridade por certo tempo, produzida na terra natal de Owsley, Virgínia, o Bourbon do Condado de Fairfax, engarrafado sob garantia.
Owsley produz um ácido decente, diziam os cabeludos.
Pessoalmente, ele não estava angariando grande popularidade, nem com os cabeludos nem com a polícia.
Ele é assim, arrogante e pretensioso.
Mas esse sujeitinho arrogante e pretensioso faz um ácido decente.
De fato, o ácido de Owsley ganhara fama internacional.
Quando a onda do ácido atingiu a Inglaterra, no final de 1966 e início de 1967, a maior credencial hippie que se podia apresentar era estar de posse do “ácido de Owsley”.
No mundo do ácido, aquilo era mesmo engarrafado-sob-garantia, certificado, aferido, penhor de alta qualidade.
Foi nesse clima que os Beatles tomaram LSD pela primeira vez.
Agora, só para adiantar um pouquinho a história: depois que Owsley se associou a Kesey e aos Merry Pranksters, ele organizou um conjunto musical chamado Grateful Dead.
O fruto da experiência deste grupo com os Merry Pranksters foi o som conhecido como acid rock.
E foi esse som que os Beatles assimilaram para produzir “Sergeant Pepper’s Lonely Heart’s Club Band”.
No início de 1967, os Beatles tiveram uma idéia fabulosa.
Compraram um grande ônibus escolar, enfiaram 39 amigos dentro dele e saíram sacolejando pelos campos da Inglaterra, a cabeça estourando de ácido – cedido graciosamente por Owsley.
Eles iam fazer um filme.
Não um filme comum, mas um filme inteiramente espontâneo, utilizando câmeras de mão, captando a experiência no momento mesmo em que as coisas acontecessem – tudo que viesse à cabeça – dar pinotes, mexer com os transeuntes, tagarelar, curtir o lance do momento, o caos visionário – sonhar acordado! magia negra! caos!
Terminaram com quilômetros e quilômetros de filme, um monstro, um atoleiro de celulose, tudo tremido e fora de foco, o que foi encarado como uma ruptura total em termos de expressão, mas também um espetáculo comercial – exibido afinal na televisão inglesa – que poderia muito bem ser apreciado igualmente fora do mundo esotérico dos cabeludos.
O filme, chamado “Magical Mistery Tour”, era uma cópia de segunda mão da mesma experiência que Ken Kesey e os Merry Prankster tinham realizado três anos antes, viajando de São Francisco, na costa Oeste, a Nova York, na costa Leste, num ônibus-motel-palco-de-apresentações-depósito-de-LSD.
Na partida, em julho de 64, o beatnik Neal Cassady estava no volante, e, entre os passageiros, havia Ken Kesey, Babbs, Page Browning, George Walker, Sandy, Jane Burton, Mike Hagen, o irmão de Kesey, Chuck, seu primo Dale, um cara conhecido como irmão John, Paula Susten, Steve Lambrecht e uma garota que Hagen pegara em North Beach.
Era o início dos testes de ácido que abalariam a América.
O florescimento do psicodelismo americano – que teve seu auge entre 65 e 66, e iniciou sua massificação mundial em 67, durante o chamado Verão do Amor – logo fez uma ponte com a Europa, através de Londres.
A badalada Carnaby Street, com suas boutiques hippies, passou a ser o equivalente à esquina da rua Haight com a rua Ashbury, o centro do turbilhão em São Francisco.
O intercâmbio era feito basicamente através de rockstars em turnê.
A descoberta de que o flower power americano já contava com uma multidão de militantes fervorosos se deu com a organização de um festival de grupos psicodélicos organizados pelos Merry Pranksters e o Grateful Dead.
Grátis e ao livre, o “First Human Be-In” reuniu vinte mil ciganos brancos no Golden Gate Park, em janeiro de 67, em São Francisco, para uma celebração coletiva.
O piradíssimo Owsley distribuiu gratuitamente milhares de doses de LSD para os participantes (no filme “Hair”, ele aparece dando os tabletes como se fosse um padre dando a hóstia para os fiéis ajoelhados).
Lançou-se, então, a profecia de que 100 mil hippies chegariam em junho, para o “Verão do Amor”.
Uma canção de sucesso da época dá uma boa idéia da atmosfera que então prevalecia: “San Francisco (Wear Some Flower In Your Hair)”.
Composição de John Philips, dos Mamas and Papas, foi gravada por Scott Mckenzie e recomendava a quem viesse a São Francisco que não esquecesse de colocar flores nos cabelos.
A certa altura, a canção faz uma verdadeira declaração de orgulho hippie: “All across the nation / Such a strange vibration / People in motion / There’s a whole generation / With a new explanation... (“Através de toda a nação / Há uma estranha vibração / Todo um povo em ação / Há toda uma geração / Com uma nova explicação...)
A indústria fonográfica – sediada ao lado, em Los Angeles – percebeu o potencial do movimento hippie e, em junho do mesmo ano, promoveu o Monterrey Pop Festival.
A movimentação era divulgada via satélite para o mundo todo, mas a contracultura criava seus próprios sistemas de divulgação: rádios-pirata, fanzines, gibis undergrounds, jornais como o Detroit Free Press, revistas como Rolling Stone, nos EUA, e International Times (IT) na Inglaterra.
No festival de Monterrey, esperava-se um público de sete mil pessoas.
Acabou chegando mais de 50 mil pessoas, a maioria sem ingresso.
O importante era estar lá, fiel ao lema do evento: música, amor e flores.
Além de supergrupos ingleses, Monterrey reuniu os melhores grupos de São Francisco e serviu-lhes de trampolim para a fama, nacional e internacional.
O festival consagraria também Janes Joplin como musa do blues e alçaria ao estrelato um negro esquisitão – que queimou a guitarra, entre outras manobras espetaculares – chamado Jimi Hendrix.
Longe dali, o band-leader dos Doors, um grupo pouco conhecido até então, tirava a roupa no palco debaixo de gritos histérico.
Foi a primeira prisão de Jim Morrison.
No mesmo ano, a banda gravaria uma faixa profética, “The End”.
Jim não deu as caras em Monterrey, nem depois em Woodstock, em 1969, onde Jimi e Janis fizeram um glorioso repeteco.
Algum tempo depois, porém, os três jotas morreram, os três com exatos 27 anos, e cada qual à sua maneira.
Apesar de caracterizada principalmente pela busca do prazer, a utopia hippie não deixava lugar para as injustiças sociais e a opressão.
Em novembro de 1967, milhares de pessoas participaram da “Marcha sobre o Pentágono”, um evento organizado pelo poeta beat Gary Snyder que se transformou num dos maiores confrontos entre a contracultura (hippies, estudantes e pacifistas) e o sistema (a força militar e o FBI).
O fato anunciava que o ano de 1968 seria essencialmente político.
E ele verdadeiramente foi.
A insatisfação que existia entre os negros aumentou ainda mais após o assassinato do reverendo Martin Luther King, em abril daquele ano, dando força aos militantes da facção Panteras Negras, que defendiam abertamente a luta armada.
Crescia a resistência ao serviço militar obrigatório e à guerra do Vietnã.
No mês seguinte, no mundo inteiro foram feitas manifestações de descontentamento da juventude nas ruas, além da ocupação pacífica das principais universidades do planeta, reprimida à bala pelas polícias estaduais.
Mais de 200 mil estudantes ocuparam as principais ruas de Paris com palavras de ordem – e desordem – que iam do “Eu digo sim, eu digo não ao não, eu digo é proibido proibir” ao “A imaginação no Poder”, de “A bandeira tricolor é feita para ser rasgada, para que dela se faça uma bandeira vermelha” até “A humanidade só será feliz quando o último capitalista for enforcado nas tripas do último comunista”.
Na história recente da humanidade, 1968 foi o ano louco e enigmático do século passado.
Ninguém o previu e muito poucos os que dele participaram entenderam afinal o que ocorreu.
Deu-se uma espécie de furacão humano, uma generalizada e estridente insatisfação juvenil, que varreu o mundo em todas as direções.
Seu único antepassado foi 1848 quando também uma maré revolucionária – a “Primavera dos Povos” –, iniciada em Paris em fevereiro, espalhou-se por quase todas as capitais e grandes cidades da Europa, chegando até Recife, no Brasil.
O próprio filósofo Jean-Paul Sartre, presente nos acontecimentos de maio de 1968 em Paris, confessou, dois anos depois, que “ainda estava pensando no que havia acontecido e que não tinha compreendido muito bem: não pude entender o que aqueles jovens queriam... então acompanhei como pude... fui conversar com eles na Sorbone, mas isso não queria dizer nada”.
A dificuldade de interpretar os acontecimentos daquele ano deve-se não só à “múltipla potencialidade do movimento” como a ambigüidade do seu resultado final.
A mistura de festa saturnal romana com combates de rua entre estudantes, operários e policiais, fez com que alguns pensadores políticos, como Cornelius Castoriadis, o vissem como “uma revolta comunitária” enquanto que para Gilles Lipovetsky e outros era “a reivindicação de um novo individualismo”.
O ano de 1968 se tornou um ano mítico porque foi o ponto de partida para uma série de transformações políticas, éticas, sexuais e comportamentais, que afetaram as sociedades da época de uma maneira irreversível.
Seria o marco zero para os movimentos ecologistas, feministas, as organizações não-governamentais (ONGs) e os defensores das minorias e dos direitos humanos.
Frustrou muita gente também.
A não realização dos seus sonhos, “da imaginação chegando ao poder”, fez com que parte da juventude militante daquela época se refugiasse no consumo de drogas cada vez mais pesadas (cocaína, heroína e barbitúricos) ou escolhesse a estrada da violência, da guerrilha no campo e do terrorismo urbano.
O ano de 1968 foi também uma reação extremada, juvenil, às pressões de mais de vinte anos de Guerra Fria.
Uma rejeição aos processos de manipulação da opinião pública por meio dos mass-midia que atuavam como “aparelhos ideológicos” incutindo os valores do capitalismo, e, simultaneamente, um repúdio “ao socialismo real”, ao marxismo oficial, ortodoxo, vigente no leste Europeu, e entre os Partidos Comunistas europeus ocidentais, vistos como ultrapassados.
Assemelhou-se aquele ano tresloucado a um caleidoscópio, pois para qualquer lado que se girasse novas formas e novas expressões vinham à luz.
Foi uma espécie de fissão nuclear espontânea que abalou as instituições e regimes.
Uma revolução que não se socorreu de tiros e bombas, mas da pichação, das pedradas, das reuniões de massa, do alto-falante e de muita irreverência.
Tudo o que parecia sólido desmanchou-se no ar.
A reação veio a cavalo, com a maioria conservadora dos EUA elegendo Richard Nixon, em 68, e as grandes empresas aproveitando a onda – como a Warner Bros. – para transformar o festival de Woodstock num megaevento de marketing.
No verão de 1969, ainda tentando transformar seus sonhos em realidade e pôr a sua utopia em prática, estudantes e hippies de todos os quadrantes ocuparam um terreno abandonado da Universidade de Berkeley e o transformaram num parque público, com jardins, playgrounds para as crianças, fontes d’água e concertos de rock.
Era o People’s Park, o parque do povo.
Vendo isso como uma ameaça ao sistema, que já se sentia vulnerável, Richard Nixon convocou a polícia e a Guarda Nacional para “resolver” a situação.
Com paus e pedras ou até de mãos limpas, os jovens enfrentaram as forças da repressão durante vários dias.
O People’s Park foi arrasado e transformado em estacionamento de veículos.
Um estudante foi morto.
Centenas deles ficaram feridos.
Sobraram apenas alguns panfletos que os jovens distribuíam, onde apresentavam suas propostas utópicas.
A engrenagem social era bem mais complexa do que se podia imaginar, mas, no final de tudo, apesar do sistema tentar “triturá-los”, o mundo nunca mais seria o mesmo.
Na medida em que ia absorvendo todas as novas idéias, o próprio sistema também se modificava.
A geração que acreditou ser capaz de parar uma guerra fazendo o Pentágono levitar com o poder da mente, para partir depois para mudar o mundo, deixou uma semente que acabaria sendo lançada aos quatro ventos, indo refletir-se nos lugares mais longínquos do globo.
Uma nova moral, uma nova ética e novos valores haviam sido cultivados na cabeça das pessoas, graças àqueles jovens dos anos 60.
Nos anos 70, conforme profetizou John Lennon anunciando o fim dos Beatles, o sonho acabou.
Mas a contracultura e a psicodelia – mesmo banalizadas em musicais como “Hair” e “Jesus Christ Superstar” – foram um salto evolutivo no comportamento da raça humana, com um saldo político inegável.
Na música pop nem se fala.
Muito antes que o grupo de hip hop De La Soul sampleasse os ultrapsicodélicos Turtles e o cenário acid house detonasse o verão londrino de 88 (com a adoção de um novo neurotransmissor químico, o ecstasy), sua influência já podia ser sentida, de toda uma safra pós-punk inglesa ao funk de Prince.
Boa parte da cultura pop vive hoje da criação de novas embalagens para os mitos dos anos 60 – para enorme alegria dos executivos das gravadoras e do establishment em geral, que ainda preferem lidar com uma nostalgia inofensiva do que com novas formas de subversão.
A modalidade de rock que se desenvolveu junto com o movimento hippie, e que também ficou conhecida como “som da Califórnia”, recebeu o nome de “acid rock” (“rock do ácido”) ou “head music” (“música pra fazer a cabeça”).
Essa nova variante musical, ao se combinar com o hard rock pelas mãos do grupo Jimi Hendrix Experience iria originar o “heavy metal” (“metal pesado”) e, num desenvolvimento posterior, por meio do Pink Floyd, se transformaria no “progressive rock” (“rock progressivo”).
Foram os hippies que difundiram o conceito de “viajar” na música.
As pessoas pararam de dançar e preferiram ficar estiradas pelos gramados, chapadíssimas, viajando em solos de guitarra intermináveis.
A música, além do genuíno ritmo bate-estaca de qualquer rock’n’roll que se preze, vinha pontilhada de guitarras com delay e distorção com pedal wah-wah, teclados imitando sons cósmicos, muitos efeitos estereofônicos, variações de tempo na música, ecos, silêncios súbitos, vozes sobrepostas, sintetizadores enlouquecidos, ruídos urbanos, uma vasta gama de experimentalismo sonoro, enfim qualquer coisa que produzisse sensações diferentes no ouvido humano.
Pode-se dizer, inclusive, que o acid rock foi um ritmo que tomou de assalto o Olimpo musical do planeta e influenciou toda a música pop posterior, da mesma forma que o comportamento, as roupas e as drogas dos hippies abriram as portas da percepção para outros modos de vida alternativos.
Os fãs do acid rock se chamavam “freaks” (literalmente, “doidões”, em contraposição aos “squares”, “quadrados”) ou “hippies” (diminutivo da gíria “hipster” vigente no circuito de jazz nos anos 40, designando o marginal rebelde e tomador de drogas) e o visual da tribo era o mais maluco possível.
Foram eles que inventaram a moda unissex e o hábito de usar cabelos compridos presos por bandanas dos índios Navajos.
Os hippies inventaram a antimoda por excelência e as combinações mais doidonas eram perfeitamente toleradas.
Havia de tudo um pouco, mas o mais quente da fashion eram blusas multicoloridas, tênis keds pintados com esmalte de unha em cores berrantes, jaquetas do exército sem mangas, com imitações de furos de balas e ferimentos, calças sujas e remendadas com tecidos diferentes, colares e pulseiras indígenas, túnicas indianas, pantalonas de cintura alta, calças boca-de-sino com cintura abaixo da barriga, cabeleiras afro, sandálias de couro com solado de pneu, batas de seda fosforescentes, T-Shirts tingidas com a técnica “tie-die” (que deixava círculos brancos sobre a cor escolhida), fardas de mariners enfeitadas com bottons de protesto, chapéu e botinas de cowboy, macacão de agricultores (tipo Lee ou Levi’s) com apliques de bordados pedindo “paz e amor”, ponchos andinos e boinas à la Che Guevara, enfim, valia tudo que pintasse ou a combinação que fosse mais original e estapafúrdia.
O negócio era chocar a caretice. Conseguiram.
2 comentários:
muito bom cara, curti muito o texto tem boas informações historicas, parabens!
Show as informações, muita cultura e coisas interessantes agrupadas em um só texto.
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