Eu, Nilton Torres e a rainha Silene Pessoa no desfile de abertura do 3º Peladão
No início de 1975, Mário Adolfo viajou para Goiânia (GO), para morar com Ademar e Mércia Arruda, sua irmã mais velha, e estudar para o vestibular de jornalismo da Universidade Federal de Goiás.
Para o time do Murrinhas do Egito, aquilo foi o prenúncio de uma tragédia anunciada.
As defesas milagrosas de Mário Adolfo, principalmente durante as cobranças de pênaltis, tinham sido responsáveis em 50% pela bonita campanha do time no Peladão do ano anterior.
Os outros 50% nos creditávamos ao meia-armador Áureo Petita, eleito o craque do ano da competição.
Sem eles dois, o nosso time não passava de uma equipe modesta condenada a uma existência vil no baixo clero do campeonato mais importante da cidade.
Faltando um mês para começarem as inscrições do 3º Peladão, Áureo Petita nos comunicou que havia recebido uma proposta irrecusável da Escola de Datilografia Santa Rita, que tinha como presidente a Dona Norma, e também resolveu picar a mula. De quebra, levou junto com ele o estiloso Kepelé.
As brigas internas no Murrinhas não tardaram a explodir. Para o lugar do Mário Adolfo, a gente precisava decidir entre os goleiros Erivan Cabocão e Walter Doido. O ex-goleirofastiano levou a melhor e Erivan Cabocão deixou o time cuspindo cobras e lagartos.
Para o lugar de Aureo Petita, convocamos Marco Aurélio, um excelente meia-armador do Náutico, um dos melhores times da 2ª divisão do campeonato amazonense.
Para a ponta esquerda, convocamos AzamorBobô, ex-Rosa com Amor. Por sugestão do Petrônio Aguiar,eu fui deslocado para a zaga, na posição de quarto zagueiro.
O centroavante Mazinho, que havia perdido o posto para o centroavante Nilson Torres, também resolveu ir embora cuspindo cobras e lagartos. De quebra, levou junto com ele o presidente do time, Olíbio Trindade.
Eu assumi a presidência do Murrinhas e comprei um novo equipamento semelhante ao do Fluminense. Sem técnico (Mazinho ocupava o cargo), passamos a escalar o time por consenso numa espécie de “pré-democracia corintiana”.
Nesse meio tempo, Mazinho, Erivan e Olíbio resolveram fundar um novo time, chamado Inútil, e, só pra me sacanear, compraram um equipamento semelhante ao do Vasco da Gama.
Eles também convocaram vários craques do futebol amador, como Zezinho, na época juvenil do Nacional, mais tarde jogador profissional do Rodoviária, de Manaus, e do Sporting, de Portugal,os irmãos Cacheto, Bebeto e Dinho, todos juvenis do Rio Negro, e o endiabrado Zeca Boy, ex-ponta direita do Racing, do Vieralves.
Depois de repaginado, o novo Murrinhas do Egito era um time sem grandes estrelas, mas bem compactado, de toque rápido e envolvente, bastante aplicado taticamente e com preparo físico e garra suficiente para enfrentar de igual para igual qualquer um dos grandes times da competição.
O goleiro Walter Doido, apesar da baixa estatura, tinha a agilidade de um gato e era um verdadeiro paredão. Na lateral direita, a experiência de Carlito Bezerra. De beque central, Petrônio Aguiar, um verdadeiro xerife da área. Eu estava na quarta zaga e na lateral esquerda Gilmar Velhota. O volante era o competente e raçudo Almir Português.
O estilista Marco Aurélio era o meia armador. Luiz Lobão era o ponta de lança. Na ponta direita, Gilson Cabocão. Nilton Torres comandava o ataque e, na ponta esquerda, o driblador minimalista AzamorBobô.
O banco de reservas ainda contava com Wilson Fernandes, Fábio Costa, Chico Cavalinho, Airton Caju, Heraldo Cacau, Chico Porrada e Rubens Bentes. O Inútil que nos aguardasse.
Na primeira fase do Torneio Início, em um sábado à tarde, o Murrinhas e o Inútil caíram na mesma chave, no campo do Penarol.
Havia oito times na chave, disputando uma única vaga. Eram partidas de dois tempos de quinze minutos, com intervalo de cinco minutos.
No caso de empate no tempo normal, a decisão seria nos penâltis.
A gente disputou a primeira partida contra o Manicoré e ganhamos de 2X0, gols de Nilson e Bobô.
O Inútil ganhou de 1X0 do BiluTetéia, gol do Zezinho.
No segundo jogo, nós enfrentamos o Corintians, que havia ganho nos pênaltis do Show Ball. O Inútil ia jogar com o Stage, que havia ganho de 2X0 do Tefé.
Estava na cara que Murrinhas e Inútil iam decidir a vaga. Mas não foi o que aconteceu.
A gente enfiou 2X0 no Corintians, gols de Nilson e Marco Aurélio, e, em vez de aproveitar a maré alta para encher o paneiro, o time subiu no salto agulha. Era toque de calcanhar pra cá, balãozinho pra lá, firulas aqui, totozinhos ali.
Resultado: o Corintians, que estava o tempo todo acuado no seu próprio campo, fez dois contra-ataques mortíferos em alta velocidade no segundo tempo e empatou o jogo.
O goleiro Walter Doido enlouqueceu de vez: ele nunca havia tomado dois gols em quinze minutos.
Com o coração na ponta da chuteira nós fomos pra cima e ainda carimbamos o travessão deles por duas vezes, mas a disputa foi para os pênaltis.
Perdemos de 2X1 (Walter Doido defendeu três pênaltis, nós conseguimos chutar quatro pra fora).
Só nos restava torcer pelo Inútil, que não fez feio. Ele venceu o Stage por 1X0, gol do Roberto, e depois enfiou 3X0 no Corintinas, gols de Zezinho e Roberto (2).
No dia seguinte, domingo pela manhã, eu, Petrônio Aguiar, Chico Cavalinho e Rubens Bentes, todos do Murrinhas do Egito, engrossamos a torcida do Inútil, que acabou conquistando o título do torneio.
Era a primeira vez que um time de futebol da Cachoeirinha alcançava essa façanha.
Em pé: eu, Olíbio Trindade, Zé Carlos, Erivan Cabocão, Sargento Roberto, Cacheto, Boanerges, Jones, Chico Cavalinho, Aldemir e Petrônio Aguiar. Agachados: Mazinho, Zeca Boy, Bebeto, Zezinho, Roberto, Dinho e Rubens Bentes.
No dia 15 de setembro de 1975, segunda-feira, o jorna A Crítica publicava uma matéria intitulada “Inútil mostra seu valor. Ele exige mais respeito”, que transcrevo a seguir:
Uma briga interna no Murrinhas do Egito acabou gerando o Inútil, time que ontem fez o seu nome e que tão logo as emissoras de rádio e televisão o anunciaram como campeão do Peladão passou a ser olhado com admiração.
O esquisito nome fez o grande público perguntar aqui e ali detalhes sobre o time que em verdade surgiu na última hora depois que a direção do time Murrinhas resolveu dispensar alguns jogadores considerados excedentes, e estes, com raiva, decidiram formar um outro quadro.
– Juro que decidimos formar um outro time só para mostrarmos que nós tínhamos futebol – disse Bebeto, autor do gol que deu o título de campeão do Inútil.
– O nome Inútil foi escolhido para associar o fato de ser um time formado só por gente considerada inútil pelo Murrinhas. Acho que essa vontade de vencer, mostrar o nosso valor, mostrar que não éramos apenas pernas de pau, é que nos deu ânimo para chegar a esse título - comentou Zezinho, que em toda a campanha marcou 5 gols.
Do Murrinhas, time da rainha Silene Pessoa, saíram brigados os craques Mazinho, Zeca , Erivan, Zezinho, Roberto e Bebeto, além do presidente Olíbio e do próprio Mazinho, que era o técnico.
Olíbio, aliás, no primeiro Peladão, foi presidente do Arranca Toco, no segundo comandou o Murrinhas e agora, no terceiro, está a frente do Inútil.
– Quando eu entro num trabalho, gosto de vê-lo frutificar. Vi que o pessoal tinha condições, conversei com todos os que haviam sido dispensados e resolvemos fundar o Inútil. Ano passado ganhamos o concurso de rainha pelo Murrinhas, este ano ganhamos o Torneio Início. Acho que desse jeito vamos acabar sendo o campeão do campeonato – falou entusiasticamente o presidente Olíbio, enquanto parabenizava seus jogadores e anunciava uma grande festa para festejar o título construído com amor e dedicação.
O Inútil começou sua campanha contra o BiluTetéia, a quem venceu em jogo por 1X0, gol de Zezinho. Depois venceu o Stage por 1X0, gol de Roberto, e, logo em seguida, golearam o Corintinas por 3X0, gols de Zezinho e Roberto (2). O Corintinas tinha acabado de vencer o Murrinhas quando o Inútil (filial do Murrinhas) descontou a surra.
Saindo campeão do campo do Penarol, o Inútil foi domingo de manhã para o campo do Departamento Rodoviário Municipal (DRM), onde, depois de empatar de 1X1 com o poderoso DRM, gol de Zezinho, acabou vencendo os rodoviários em penalidades por 3X0.
Depois o Inútil venceu ao São Francisco por 1X0, gol de Zezinho, e ganhou também da Ótica São Paulo por 1X0, gol de Roberto.
Vencendo a chave do campo do DRM, o Inútil foi pra o campo da Coca-Cola, onde se encontraria com os outros três campeões das demais chaves eliminatórias.
O Inútil empatou no tempo normal com o Fabiano por 1X1, gol de Zezinho, e venceu o time dos oficiais da Base Aérea nos pênaltis por 3X0.
Na decisão do Torneio Início, o Inútil venceu o D. Pedro por 1X0, gol de Bebeto, numa cabeçada sensacional.
O time campeão formou com Erivan, Zé Carlos, Boanerges, Cacheto e Roberto; Careca e sargento Roberto; Jones, Zezinho, Bebeto e Dinho, entrando depois Osmar, um bom ponta direita, no lugar de Jones.
A reportagem não disse que Osmar, na verdade, era o nome oficial do Mazinho, mas quem entrou no jogo decisivo e deu o passe pro Bebeto fazer o gol foi o Zeca Boy, que jogou malandramente com a carteira do Mazinho porque seu time, o Racing, havia sido eliminado no dia anterior. Depois do torneio início, Zeca Boy foi inscrito oficialmente no Inútil.
Nossa esperança de enfrentar o Inútil no campeonato foi por águas abaixo depois que perdemos o mando de campo para o Canarinho, de Petropólis. Em vez de jogar no campo do Penarol, fomos obrigados a jogar no campo do Holanda, no Aleixo, e no campo do Esusa, ao lado da Cidade Jardim, na Chapada.
Na primeira partida da 1ª fase, derrotamos o Soccer por 5X0, gols de Nilson (3) e Luiz Lobão (2). Depois empatamos com a Casa dos Vidros em 1x1, gol do Marco Aurélio, ganhamos do Serra Grande por 3X0, gols de Nilson (2) e Bobô, ganhamos do Palmeiras de 4X1, gols de Nilson, Luiz Lobão, Gilson Cabocão e Chico Cavalinho, ganhamos do Sulanapo de 1X0, gol de Luiz Lobão, perdemos do Socon de 1X0 e empatamos com o Travessa em 2X2, gols de Wilson Fernandes e Heraldo Cacau.
Nos classificamos em terceiro lugar, atrás da Casa dos Vidros e Socon. Nessa fase, se classificavam quatro times e quatro eram eliminados.
Em pé: Julio Almeida, Kepelé, Petronio Aguiar, Almir Português, Walter Doido, Heraldo Cacau, Gilmar Velhote, eu, Chico Porrada e Mestre Louro. Agachados: Gilson Cabocão, Nilton Torres, Marco Aurélio, Luiz Lobão, Azamor Bobô e Carlito Bezerra
Na segunda fase, nossos problemas começaram. O goleiro Walter Doido era um excelente jogador, mas tinha um gênio temperamental.
Durante nosso primeiro jogo contra a Escola de Datilografia Santa Rita, time do Áureo Petita, no campo do Penarol, ele começou a discutir com o Petrônio Aguiar por causa de um lance banal, aí, subitamente, tirou a camisa de goleiro e jogou na cara do zagueiro central.
O juiz, evidentemente, o expulsou na mesma hora. A gente estava vencendo a partida por 1X0, gol do Luiz Lobão, quando aconteceu a presepada.
Eu resolvi ser substituído para a entrada do improvisado goleiro Mestre Louro. O volante Almir Português assumiu meu posto de quarto zagueiro.
Com um homem a mais em campo, o time do Áureo foi pra cima, empatou o jogo com um gol de Kepelé e se não fossem duas defesas milagrosas do Mestre Louro em chutes a queima-roupa de Aureo Petita e João Carlos a gente teria perdido o jogo.
O temperamental Walter Doido pegou dois jogos de suspensão.
No segundo jogo, contra o Espantalho, no campo do Holanda, enfiamos 6X1, gols de Wilson Fernandes (2), Nilson (2), Luiz Lobão e Bobô.
O gol que sofremos foi uma piada: um sujeito bateu uma falta no ângulo, Mestre Louro fez um vôo acrobático e conseguiu espalmar a bola pra cima, numa defesa sensacional.
Só que ele ficou deitado no chão, deslumbrado com os aplausos da torcida.
A bola, movida pela força da gravidade, desceu displicentemente do espaço, bateu em sua nuca e foi se alojar no fundo das redes.
Esquecidos da defesa espetacular de alguns segundos atrás, mais da metade do time queria estripa-lo na mesma hora. Mestre Louro, com razão, ficou injuriado. E não apareceu para jogar no último jogo.
O arrojado centroavante Nilton Torres, que também era um goleiro de mão cheia, foi escalado para o jogo contra o Barcelona, da Cidade Nova.
Perdemos em potencial ofensivo, mas conseguimos reorganizar de novo o sistema defensivo.
Foi um jogo catimbado, murrinha, pegado, safado, digno de peladeiros suburbanos. Uma falta a cada dois minutos, discussões dos dois lados, enfim, uma grande aporrinhação.Ainda assim ganhamos de 1X0, gol do Carlito Bezerra, de penâlti, e fomos campeão da chave.
O Barcelona ficou em segundo lugar. O time do Áureo Petita foi para a repescagem.
Nessa fase, se classificavam dois times e dois eram eliminados. Dos 420 times iniciais, só restavam 105. Outros 15 viriam da repescagem para completar os 120 melhores. Começaria a chave do “mata mata”, com todos os jogos sendo eliminatórios.
Nosso primeiro jogo foi contra o forte time do Santa Rita, formado por homeboys que moravam no entorno da Igreja de Santa Rita, na Cachoeirinha.
Os destaques do time eram os irmãos Helder e Wandi, este ex-jogador profissional do Olímpico, o goleiro Pompéia e seu irmão e dono do time, o meia armador Agostinho, e o primo de ambos, Ely, que depois jogou profissionalmente no Nacional e no Clube do Remo, em Belém.
Era um domingo de manhã de muita chuva. O jogo foi marcado para o campo da Base Aérea.
O campo era de barro e, por causa da chuva, havia se transformado em uma pista escorregadia de motocross.
Em comum acordo, as duas equipes decidiram não disputar o jogo naquelas condições.
Saímos em busca de um campo melhor para realizar a partida.
Por volta das 10h, nós invadimos na marra o campo principal da Suframa, onde dois times (Cruz Azul, da Betânia, e Independente, de São Lázaro) disputavam uma partida do “mata mata”.
Expulsamos as duas equipes de campo, sob o argumento calhorda de que “éramos da Cachoeirinha e tínhamos carta branca para jogar em qualquer campo por determinação do vereador Messias Sampaio”.
Os sujeitos protestaram uma barbaridade, nos xingaram de todo jeito, mas acabaram deixando o campo dizendo que iam se queixar na coordenação.
Indiferente aos protestos, os times do Murrinhas do Egito e Santa Rita entraram em campo e iniciaram por conta própria a partida.
Apesar de todo mundo ser do mesmo bairro, foi um jogo violento de parte a parte por causa do aguaceiro que não parava de cair
Ganhamos o jogo de 1X0, gol de Luiz Lobão, mas quando estávamos preenchendo a súmula para levar para a coordenação do Peladão, apareceu o vereador Messias Sampaio em pessoa, visivelmente puto.
Messias era o coordenador geral da competição e trazia a tiracolo os dirigentes das duas equipes que a gente havia expulso de campo.
– Eu logo vi que essa desordem só podia ser coisa do Murrinhas! – vociferou ele.
Tentamos explicar o que havia nos levado a realizar o nosso jogo ali no campo gramado da Suframa e não no campo de barro da Base Aérea, mas o coordenador não quis muito papo.
Ele estava simplesmente possesso.
Resultado: Murrinhas e Santa Rita foram desclassificados por indisciplina na mesma hora.
Foi a minha última participação no Peladão.
Alguns dias depois, renunciei à presidência do Murrinhas, doei o equipamento do time para uma instituição de caridade e dei os trâmites por findos.
No ano seguinte, Mestre Louro fez um arremedo do Murrinhas, que virou saco de pancada nos três primeiros jogos e não passou da primeira fase.
A gente só daria a volta por cima, nos anos 80, com o imbatível Setembro Negro. Mas essa é uma outra história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário