Na primeira vez em que esteve em Manaus, Hélio Leites (que na época se chamava “Hélio Lete”) me deixou a xerox de um artigo do Paulo Leminski intitulado “Helio Lete: significador de insignificâncias – Mind games, diria John Lennon”, que transcrevo a seguir:
Ontem, o botão, Hoje o assobio. Amanhã o mundo.
Isso que se chama criatividade, a capacidade de produzir formas não práticas, esgota-se toda no quadro das chamadas “artes”? Em outras palavras, só há arte no interior das “artes”?
Essa questão já foi resolvida na prática pela arte do século XX, que desenvolveu modalidades de manifestação “artística” que não cabem mais dentro do quadro das artes tradicionais.
Nas mostras e Bienais, que precisam de rótulos, essas manifestações são classificadas como “performances”, “interferências”, os “happenings”, muito em voga nos anos 60.
O quadro das artes, tal como as entendemos hoje, foi cristalizado no Renascimento, as Belas Artes, pintura e escultura, música e dança, teatro e literatura. Ao lado destas “grandes artes”, outras foram relegadas a um plano secundário, “menor”. O desenho, a gravura, a cerâmica, a ourivesaria, a xilogravura, a caligrafia, a tecelagem, a mímica...
Esse quadro hierárquico foi explodido no século XIX e XX pelo impacto da técnica e da indústria, da fotografia, do cinema, do rádio e da TV, do laser e do holograma.
Dessas técnicas, só teria nascido uma “Grande Arte”, o cinema, neste século que Glauber Rocha chamou, no nome do seu livro, o “Século do Cinema”. A fotografia ainda não adquiriu foros de “grande arte”, ninguém vai colocar um Man Ray ou um Cartier Bresson no mesmo plano que um Picasso ou um Orson Welles. E a criação publicitária, síntese de várias artes e técnicas, por seu caráter prático, esta excluída da arca propriamente “artística”.
Na área do artesanato, que não desaparece diante da indústria, o que temos é o aproveitamento de materiais não nobres, “esculturas” feitas em cordas, papel de jornal, raízes de árvores, lixo, o diabo. Hoje, admiti-se, qualquer material pode servir de suporte para a existência artística ou de veiculo para a expressão.
É da fusão de duas características da arte do século XX que nasce a original experiência de HelioLete, a Botanica (não confundir com Botânica), a arteciência dos botões. O gesto (a performance) e o uso de material reles.
Botão, aqui, é botão de roupa mesmo.
Para promover a Botanica, Lete fundou a “Assintão”, estranha associação dedicada a pesquisar e valorizar o papel do botão na história humana, da pré-história (botões de pedra e de osso) ate o botão do Apocalipse: o botão na Guerra Nuclear.
No afã de chamar a atenção da humanidade pra a importância do botão (tão usado e tão pouco visto...) a Assintão emite com certa frequência boletins jocosérios, redigidos por Lete, alguns deles verdadeiras obras-primas de humor, deboche, fantasia e senso poético.
A associação (que se quer internacional...) opera preferencialmente através de cartas hilariantes que Lete envia a centenas de associados (eu sou um), o que aproxima a experiência da chamada “mail-art”, arte postal.
Os envelopes da Assintão já chegam como não podia deixar de ser com vários botões pregados, não raro cheiros de...adivinhem o quê.
Alice conheceu Lete no Rio e delo trouxe curiosas impressões.
Belo dia, Lete me visita em casa e já chega dizendo que veio me ver por dois motivos, ambos importantes: me converter à causa botânica, claro, e me pedir algum botão que eu não usasse mais. Já chegou me perguntando quantos botões eu tinha na roupa, naquele exato momento. Confesso que embasbaquei. Quem não embasbacaria? A gente não presta atenção nessas coisinhas (e em tantas outras coisinhas).
De imediato, percebi que estava diante de um mestre zen. Alguém que, através do humor, nos chama a atenção para as pequenas coisas da vida que a própria vida não deixa que a gente perceba. Me converti na hora. Aliás, nem foi preciso. Descobri que eu era um botanico nato.
Como todo mundo, aliás, que é capaz de entrar nessa brincadeira inteligente em que Lete procura engajar todo mundo que encontra. Uma brincadeira que é, ao mesmo tempo, um exercício de liberdade, de humor e de crítica, um convite à fantasia.
Além de seu significado de descoberta do óbvio oculto, o botão tem outras subconotações, que a botânica já detetou: o significado libertário (o botão fecha a roupa, e tranca a fechadura, um instrumento de opressão física do corpo), o significado erótico (“os botões da blusa”, da música de Roberto Carlos), o significado lúcido (futebol de botão), o significado poético verbal (botão é a palavra “botão”: Lete já explorou todos os jogo de palavras que o botão permite, botão, botânica, botão de flor, botão do verbo, “botar”, aumentativo de “bota”, rebotalho, o Botafogo, Botticelli).
Os desativados e preconceituosos podem pensar que o inventor da botanica não passa de um louco. Mas passa sim. Dos loucos, Lete, pessoa gentilíssima, só tem a doce obsessão de que persegue uma idéia. Mas é a obsessão dos artistas ou dos cientistas, uma obsessão construtiva.
Modernismo, fundindo gesto e performance com o emprego de material neles (perdão, meus botões!) e “mail-art”, Lete (e a Assintão) vai conduzindo uma das experiências criativas mais importantes que tenho visto por ai, bem mais instigante e original que muitas vemissages de artes plásticas que não vão além do simples artesanato (ou industrianato, em muitos casos...).
Expandindo seus negócios, a Assintão acaba de fundar recentemente o FiuFiu Esporte Clube que vai procurar levar para o território tão negligenciado de assobio, esse primo pobre do “bel-canto” as descobertas fundamentais da Botanica: a importância do reles, a relevância do desperdício, a significância do insignificante.
Para tanto, Lete e a Assintão estão recolhendo por toda a cidade, com um pequeno gravador amostragens de assobios de todas as pessoas no sentido de construir a primeira assobioteca da história.
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