Em primeiro plano, Sidão, sua filha Karine e Fábio Costa, durante uma agitação no Barraka's
No início dos anos 80, na Cachoeirinha, um grupo de moleques mal saídos da adolescência resolveu montar uma banda de forró para se apresentar no Barraka’s Drinks, a criação suprema do empresário Wilson Fernandes.
Batizado de “Cio da Terra”, o grupo tinha no frontside o vocalista Val, com uma voz de tenor estilo Billy Paul, e a vocalista Dorinha, que tinha a sensualidade bluesística da Janis Joplin no corpo da Madonna “pré-Like A Virgin”.
O violão era conduzido com rara eficiência pelo Palmes, cuja palhetada lembrava um Toquinho ultrainspirado.
Completavam a formação matadora o flautista Cezinha, mostrando que era possível transpor os acordes do chorinho para o forró sem perder a ternura, Celestino Neto (o poeta “Lé”) tocando escaleta com a fúria do jamaicano Augustus Pablo, e Iran e Berg, uma dupla de percussionistas que lembrava uma bateria de escola de samba em ação.
O sucesso do “Cio da Terra” foi avassalador. A novidade não estava apenas em aposentar a sanfona e utilizar a invocada escaleta – uma espécie de acordeom movido a sopro – para costurar as canções, mas no repertório que os moleques tiravam da cartola.
De Ednardo a Vital Farias, do Pessoal do Ceará aos Novos Baianos, de Elomar a Jackson do Pandeiro, de Paulinho Pedra Azul a Xangai, tudo era reciclado e passado a limpo.
Os sacanas eram tão bons que uma outra banda surgida na mesma época (“Carrapicho”, tendo como vocalista Renier, nome artístico do meu contemporâneo de ETFA, Paulinho Cão, falecido precocemente) era convidada para abrir seus shows.
O “Cio da Terra” teve uma carreira curta, mas gloriosa (pouco mais de um ano). A briga de egos na divisão dos cachês contribuiu para a implosão do grupo.
Celestino Neto assumiu sua porção de poeta marginal e se mandou para Arembepe, na Bahia, onde morou dez anos. De volta a Manaus, ele mantém uma banca de livros usados na praça da Polícia.
Berg virou jornalista e atualmente trabalha na ALE. Iran virou empresário. Val virou professor e hoje trabalha na Petrobras, em Urucum. Cezinha entrou para a Aeronáutica, onde hoje é sargento.
Palmes sofreu um estúpido acidente de carro, perdeu os movimentos de uma das mãos e praticamente encerrou sua carreira (em termos de violão ele se igualava ao fantástico Beto Beiçola). Depois de muita fisioterapia, ele voltou a tocar novamente.
Somente a Dorinha Alves (hoje um mulherão) continuou na estrada, se apresentando nos bares da cidade com um repertório calcado no “brega paraense”, aquela agradável mistura de calipso com jovem-guarda.
Nos anos 90, ela assumiu os vocais da banda de forró Rabo de Vaca (hoje, sua filha é uma das novas vocalistas da banda).
No Nordeste, o “rabo de vaca” está para os forrozeiros como o “fundo de quintal” está para os pagodeiros: trata-se de uma reunião sem pauta predeterminada, onde se vai para conversar, tocar, beber e se divertir com os amigos.
Ex-sanfoneiro da banda Carrapicho, Edson do Vale havia acabado de montar um estúdio musical e costumava promover um dos “rabos de vaca” mais concorridos da cidade.
Foi quando deu-se o “estalo de Vieira” do sanfoneiro: por que não montar uma banda de forró bem profissional e ganhar dinheiro com aquilo que eles sabiam fazer de melhor?
Nascia a Rabo de Vaca, provavelmente a melhor banda forrozeira entre as 20 mil bandas de forró existentes em Manaus.
Dos músicos que participavam das tertúlias nordestinas movidas a álcool, Edson do Vale recrutou só “cobras criadas”: os vocalistas Júnior Blanco (ex-Carrapicho), Chiquinho e Dorinha Alves, o guitarrista e produtor musical Ailton Arruda (também ex-Carrapicho), o contrabaixista Juninho, o tecladista Rock, o sanfoneiro Fernando e os bateristas Carlinhos e Erizaldo.
De quebra, colocou as saradíssimas dançarinas Jaqueline e Ítala para remexerem os quadris pra turma do gargarejo.
O primeiro CD (“Forró Rabo de Vaca”) esgotou em menos de seis meses. O segundo (“Só Solo”) era um exercício de virtuosismo dos músicos, reciclando biscoitos finos como “Feira de Mangaio” e “Xote do Sertão”.
O terceiro (“Festa no Interior”) trazia, entre outras bossas, uma versão arrasadora de “Baba Baby”, na voz inebriante da Dorinha.
Em março de 2001, a banda Rabo de Vaca estava indo se apresentar pela primeira vez em Boa Vista (RR), em ritmo de colegiais saindo de férias.
Depois de 45 minutos de voo, a algazarra dentro da minúscula aeronave se transformou num silêncio constrangedor, com todo mundo prendendo a respiração.
O bimotor fretado que levava os músicos enfrenta uma turbulência cinematográfica e o piloto faz o que pode: tenta colocar a aeronave próxima da copa de árvores da floresta amazônica, correndo o risco de trombar com alguma castanheira centenária no meio do trajeto.
As abruptas subidas e descidas do avião e o barulho ensurdecedor do vento na fuselagem instauram um clima de pânico.
As dançarinas choram, alguns músicos rezam, outros fecham os olhos esperando pelo pior.
Apenas o baterista Erizaldo permanece alheio a tudo, fitando fixamente a cabine do avião como se fosse um menino autista.
Depois de meia hora de sufoco, a aeronave consegue sair da turbulência e iniciar um voo mais tranquilo. O piloto está encharcado de suor. O copiloto está pálido como um defunto.
Os passageiros estão imóveis como estátuas de pedra, completamente catatônicos.
A única exceção é Erizaldo, que começa a se mexer na cadeira como um zumbi entrando em transe.
Um inexplicável mau cheiro toma conta do ambiente, mas ninguém tem coragem de reclamar.
“Deve ser uma alucinação coletiva”, pensa Dorinha, sentada ao lado de Erizaldo, enquanto reza um terço completo pela quinta vez consecutiva.
Finalmente o avião pousa no aeroporto de Boa Vista. Todo mundo desce do avião, quase correndo.
Todo mundo, não. Erizaldo permanece dentro do avião por quase dez minutos.
“O cara é mesmo corajoso”, pensa Dorinha, enquanto completa seu décimo segundo terço, movendo as pedras do rosário cada vez mais depressa.
Quando o rapaz finalmente resolve dar o ar de sua graça no saguão do aeroporto, a grande surpresa: ele havia se desfeito em fezes e urina, denunciada pelas horrorosas manchas visíveis nos fundilhos de sua magnífica calça de seda branca.
O piloto ficou possesso: ou a banda acabava com aquela fedentina (e a imundície) dentro da aeronave ou eles que voltassem pra Manaus em outro avião.
Munidos de balde, escovão e aerosol, Edson do Vale e Ailton Arruda cumpriram a ingrata tarefa, mas o mau cheiro só saiu uma semana depois, quando trocaram a poltrona do bimotor.
O baterista Erizaldo, claro, voltou para Manaus de ônibus e logo depois foi deletado da banda.
Um comentário:
sou fã da banda e não sabia que tinha surgido assim...
olha que o Juninho e o Rock estão na banda até hoje!
Ailton Arruda voltou há pouco tempo!
Show de bola!
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