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quinta-feira, março 01, 2012

Histórias do Pai Simão


Silene, Simone, Silane, Selane, Pai Simão, Simas e eu

Com o nascimento do Simas, em outubro de 1961, a nossa família se estabilizou em seis curumins: quatro meninas e dois meninos.

Como soe acontecer nessas ocasiões, as brigas por disputa e conquista de espaço territorial começaram a acontecer.

Papai tratou logo de arrumar uma psicóloga para corrigir o mau gênio daqueles pequenos demônios.

Ela era negra, ardida e deixava marcas profundas na pele e na alma.

Tratava-se de uma sola de trinta centímetros, daquelas de amolar navalhas nas antigas barbearias, presenteada ao velho, desconfio, pelo barbeiro Doca.

Uma lapada de sola nas costas doía durante 24 horas.

Era pior do que ferrada de arraia.

A gente podia estar na maior danação, mas ao ouvirmos mamãe ou papai invocar o seu nome (“Vou já buscar a sola!”), nos transformávamos em estátuas de sal.

Talvez por ser o mais fedelho de todos, eu levei algumas surras homéricas do papai (mamãe era mais tranquila) e, ainda por cima, tendo que cumprir o cruel imperativo ditado por ele: “Engole o choro, patife, senão vai apanhar de novo!”.

O velho devia ter lido Sigmund Freud.


Pai Simão e minha mãe Celeste

Um belo dia, a mamãe se queixou para o papai de que a Silene andava “viçando”:

– Ela não pode pegar uma caixa de fósforos que come todas as cabeças dos palitos!

O papai imediatamente soltou o berro:

– Sileneeeeeeee!

(Quando um de nós ouvia aquele chamado, a pele das costas já começava a arder por puro reflexo condicionado)

– Senhor, papai? – acudiu a infante se tremendo de medo.

– A Celeste está me dizendo que tu andas comendo cabeça de palito de fósforo...

A tremedeira da Silene atingiu sete pontos na escala Richter de assombração infantil.

– Sabes o que eu vou fazer contigo? Vou te colocar dentro deste saco de estopilha e vou amarrar na cumeeira da casa, para você nunca mais fazer isso!

Dito isso, ele partiu da intenção pro gesto.

A Silene, já devidamente enfiada dentro do saco de estopa, conseguiu implorar lá de dentro:

– Não faz assim comigo não, paizinho, que eu prometo que nunca mais faço aquilo!

Papai, então, abriu o saco e deixou-a sair.

O velho devia ter lido Jean Piaget.

Nunca mais a Silene comeu uma única cabeça de fósforo, mas é a única da família que tem uma memória fotográfica – desconfio que pela quantidade de fósforo que ela comeu na infância.


Eu, Silane, Selane, Pai Simão, Silene, Simas e Simone

Sempre que podia, isto é, quando o orçamento apertado permitia, mamãe fazia um saborosíssimo pudim de leite com calda de ameixas, que meu pai comia em estado de êxtase.

Certa vez, após o jantar, com todos reunidos à mesa, a mamãe foi até a geladeira buscar a iguaria para servir o primeiro pedaço ao chefe da casa.

A velha levou um susto: estava faltando uma fatia do pudim. Desconcertada, ela avisou:

– Simão, alguém comeu um pedaço do pudim!

Sem se alterar, papai pediu que ela servisse uma fatia para cada um.

Antes que alguém tocasse no doce, ele lançou uma proposta tentadora:

– Aquele que se acusar de ter mexido no pudim vai comer todo o resto que sobrou!


Eu (com o ombro recém-operado por conta de um acidente no município de Borba), Simas e Pai Simão, no concorrido almoço dominical da família

Ninguém disse nada.

– Eu estou falando sério! – insistiu ele. “Quem se acusar, come as sete fatias que sobraram no prato...”

De olho gordo no saboroso acepipe, não tive dúvidas:

– Fui eu, papai!

– Ótimo! – disse ele. “Então devolva a sua fatia pra mesa porque você já comeu a sua, espertinho!”

E confiscou o meu pedaço de pudim.

O velho devia ter lido Melanie Klein.

O mais trágico é que tinha sido a Simone ou a Silene quem detonara o pedaço do pudim guardado na geladeira.

Eu apenas havia entrado de gaiato no navio.


Silane com os filhos Mayara e Bruno

Uma tarde, a gente estava brincando de “cemitério” (aquele jogo que consiste em acertar o adversário com uma bola de borracha e que hoje ganhou o boiolístico nome de “queimada”) no meio da rua.

Da minha equipe, o único que ainda estava “vivo” era eu.

Da equipe adversária, a Silane.

O time dela estava com a bola e tentando me “matar”.

Como em todo jogo de crianças, o cemitério tinha algumas regras pétreas: por exemplo, se você, por algum motivo, gritasse “parei!”, os adversários não podiam lhe arremessar a bola.

Você podia parar o jogo para tirar um espinho do pé, estancar um corte de vidro no calcanhar ou, simplesmente, para tomar fôlego.

Em determinado momento eu gritei “parei!”, perto da linha divisória entre as equipes, e me abaixei para tirar uma pontiaguda pedra jacaré que havia entrado no meu calcanhar.

A Silane, palmo e dentro, pegou a bola e cravou, com violência, nas minhas costas.

Fiquei louco, não pela bolada em si (que doeu pra burro!), mas por ela ter quebrado uma das regras pétreas do jogo.

Parti pra cima dela, para lhe dar umas porradas, mas ela correu pra dentro da casa e se trancou no banheiro.

Tentei arrombar a porta, aos chutes, mas o máximo que conseguiu foi perder a unha do dedão do pé.

Fiquei mais mordido ainda.

Nessa altura do campeonato, papai estava trabalhando na refinaria e mamãe na casa de uma vizinha.

Ela logo foi avisada do que estava acontecendo e veio correndo resolver a encrenca.

Acalmados os nervos, assunto esquecido, vida que se segue, eu e a Silane resolvemos “ficar de mal”, ou seja, resolvemos deixar de se falar pelo resto da vida.


Pai Simão e minha madrasta Dulce em primeiro plano. Atrás, Simas, Selane, Simone e Silane

Alguns meses depois, a história chegou aos ouvidos do papai.

Irritado, ele chamou nós dois na sala e nos colocou frente a frente para fazermos as pazes.

Limitamo-nos a nos fitar, sem esconder o ódio recíproco, como dois cowboys se preparando para sacar as armas em um duelo mortal.

O velho apanhou a sola e comandou o embalo:

– Eu quero os dois de joelhos, um de frente pro outro!

Obedecemos.

– Agora, eu quero que vocês dois se abracem e peçam desculpas um do outro!

Nenhum dos dois se mexeu.

Papai se aproximou com a sola.

Comecei a trincar os dentes, esperando pela lapada nas costas.

De repente, a Silane avançou de joelhos em minha direção, me abraçou e falou:

– Simãozinho, você me desculpa?

– Desculpo! – afirmei, já que não ia apanhar sozinho pelo fato de ela ter se acovardado.

A Silane, ainda de joelhos, voltou a se afastar de mim.

– Agora é a sua vez, patife! – rosnou o velho.

Avancei, de joelhos, em direção a ela, a abracei e pedi desculpas.

Ela me desculpou.

Depois voltei para o meu lugar.

– Levantem-se! – ordenou o velho. “Escutem bem: eu criei filhos foi para serem irmãos e não para brigarem feito cão e gato!”

Foi a última vez que briguei com as minhas irmãs.

O velho devia ter lido Friedrich Froebel.


Silene com Diego Casado no colo. Na frente, Mikaelly, João Ricardo, Thandra e Pablo Casado. 
Pai Simão está lá atrás.

Na época das vacas gordas, quando preservação ambiental era ficção científica, o papai costumava chegar em casa, de madrugada, com duas ou três tartarugas gigantescas.

Apanhadas na época da postura, as tartarugas estavam sempre abarrotadas de ovos.

O arabu, uma gemada de ovos de tartaruga à base de açúcar e canela, logo se transformou em um dos pratos favoritos da família.

Eu odiava aquilo e não comia de jeito nenhum.

Apesar de viciado em carne de tartaruga, sempre guardei uma distância prudente de ovos de quelônios.

No máximo, comia um ou dois ovos cozidos, com sal e limão.

Um dia, a Silene burlou a vigilância da mamãe e pegou meia dúzia de ovos para fazer um arabu básico.

Percebendo a falta dos ovos, mamãe imediatamente denunciou a pequena “ladra” ao velho.

Ele não deixou por menos:

– Pegue todos os ovos de tartaruga e prepare um único arabu!


Simone com a neta Juliana, filha do João Ricardo

Mamãe não se fez de rogada e preparou um arabu utilizando uns dois mil ovos de tartaruga.

Dava um panelão de 10 litros pela metade.

Papai encheu uma bacia de alumínio com a iguaria, chamou a Silene e cantou a pedra:

– Muito bem, mocinha! Já que você gosta tanto de arabu, pegue essa bacia e coma tudo! Só me devolva quando a bacia estiver limpa!

Claro que para a Silene as primeiras quinhentas colheradas foram ótimas.

Ela era louca por arabu.


Pai Simão e sua neta Mikaelly, filha da Selane

Porém, depois que a gula foi saciada, veio a ânsia de vômito.

E, alguns minutos depois, o vômito propriamente dito.

A primeira golfada deu a impressão de que um gêiser se destampara na sua garganta.

Desesperada, ela pediu penico:

– Simone, mana, Simãozinho, mano, me ajudem, por favor, senão o papai vai pegar esse arabu e me enfiar todinho goela abaixo.

Eu e a Simone fomos para o sacrifício, o que deixou o velho ainda mais furioso.

– Se os três não limparem a panela, vão levar uma surra de criar bicho! – avisou.

Mesmo trabalhando em equipe, a gente não deu conta de acabar com aquela merda.

Entramos na sola.

Eu fiquei tão traumatizado que, até hoje, se vir alguém comendo arabu, vomito até a alma.

O velho devia ter lido Adolf Hitler.

Um comentário:

Mike disse...

Tio tu era uma peste aff tu deu foi sorte que teus filhos nao puxaram pra ti. O Patife do vovô sobreviveu aos netos, ai sorte quem teve foram os bisnetos. Tu esqueceu aquela pequena cabeca na foto que estamos com a tia Silene carregando o Diego, é o Bruno... conte mais pra gente matar a saudade e morrer de rir de vocês !!! bjs