Por Rafael Galvão
É mais ou menos como se, de repente, você recebesse a
notícias de que seus avós estão se separando.
Na semana passada, a notícia de que a Editora Abril tinha
perdido os direitos de publicação dos personagens Disney no Brasil chocou os
fãs mais antigos. A manchete do Planeta Gibi, que deu a notícia, resume tudo: é
o fim de uma era.
Eu cresci com esses quadrinhos, e os considero muito
melhores que os da Turma da Mônica; enquanto Carl Barks e Don Rosa nos
apresentam o mundo, Maurício de Sousa nos regala com as pequenas coisinhas
fáceis de um mundo restrito à rua do Limoeiro. Para a Abril, no entanto, esse
episódio deve ter um peso ainda maior.
A Abril nasceu com a revista do Pato Donald, em 1950. Victor
Civita costumava parafrasear Walt Disney ao dizer que “tudo começou com um
pato”. Há uns 20 anos, uma matéria com um colecionador das revistas do Pato
Donald no Brasil, no caderno de cultura da Gazeta Mercantil, contava que a
publicação do Pato Donald era uma questão de honra para a Abril, algo que
transcendia os meros interesses comerciais; tive a impressão de que os Civita
viam o Pato Donald como o Tio Patinhas via a sua moedinha número 1. A notícia
então se torna ainda mais melancólica. Mesmo sendo a Abril, uma editora cujos
desserviços para o país são numerosos demais para contar, é impossível não
ficar triste. É um pedaço da história de um bocado de gente que vai embora.
Aí pela segunda metade dos 70 havia umas quatro editoras que
publicavam quadrinhos de maneira mais consistente. A Vecchi, com seus faroestes
tipo Tex e Zagor e os personagens da Harvey (além da Mad); a legendária Ebal,
que publicava entre outros Tom e Jerry, a DC, Epopéia Tri e Zorro; a RGE
(depois Rio Gráfica e finalmente Globo, quando a rede carioca conseguiu comprar
a Editora Globo gaúcha), que publicava a Marvel, Fantasma e Mandrake, Sítio do
Picapau Amarelo; e finalmente a Abril, a melhor de todas, com uma qualidade
editorial muito superior às concorrentes e que tinha também a Turma da Mônica.
Uma a uma, essas editoras foram desaparecendo. A Vecchi
faliu no início da década de 80. A Ebal agonizou durante anos, e quando fechou
já não tinha nenhuma relevância. Em 1985 a Abril parecia ser a dona do mundo:
Disney, Mônica, Marvel, DC — tudo parecia estar em suas mãos. É verdade que
esse fastígio absoluto não durou muito tempo e logo depois a Turma da Mônica
foi para a Globo; mas ainda assim a Abril era a grande editora de quadrinhos do
país. No início dos anos 2000 foi a vez dos super-heróis irem para a Panini, e
a partir daí a decadência parece ter se acelerado, inexorável.
Mais ou menos nessa época, uma olhada nas bancas deixava
claro que os quadrinhos Disney passavam por uma fase muito ruim. A Abril tinha
deixado de produzir histórias da Disney já fazia algum tempo, e a qualidade das
revistas era muito inferior ao padrão a que ela havia nos acostumado ao longo
de décadas. (Curiosamente, foi nessa época que, graças ao Inagaki, descobri Don
Rosa.)
Mas de lá para cá a situação havia mudado, e isso é o mais
irônico. Parecia que a Abril tinha encontrado uma saída comercial para a crise
óbvia no setor de quadrinhos, publicando edições de luxo com o melhor da sua
produção e reedições dos manuais que tinham feito a alegria das crianças dos
anos 70. Ela tinha se voltado para um segmento mais específico e de maior poder
aquisitivo — velhos saudosistas e fãs de quadrinhos, especificamente. Além
disso, tinha ressuscitado alguns dos seus títulos clássicos, como Disney
Especial e Almanaque Disney, embora sem a qualidade editorial de outrora — o
novo Almanaque Disney, por exemplo, não tinha nada a ver com a revista original
e era muito inferior.
Eu não faço ideia do que está acontecendo, obviamente. Mas
os números dos prejuízos recorrentes da Abril, impressionantes, devem servir de
indício. A Abril está em processo de falência há muito tempo, e não para de
encolher. O que foi um império simbolizado pelo prédio imponente ao lado da rua
do Sumidouro está implodindo de maneira consistente há muitos anos, e quando
ela chega ao noticiário é com demissões e “reestruturações”, uma palavra bonita
que nunca significa outra coisa que não encolhimento. Normalmente, essas
notícias são lamentadas por jornalistas que vêm seu mercado de trabalho
encolher, ou comemoradas por quem, como eu, tem verdadeira ojeriza ao papel
malfazejo da Abril na política nacional. Mas dessa vez não há nenhum aspecto
positivo na notícia.
Porque em tudo isso há um aspecto que não devia passar
batido, e que deve ajudar a dar a dimensão real desse acontecimento: nos últimos
68 anos, em nenhum momento deixou de haver uma revista Disney nas bancas
brasileiras. Isso não aconteceu sequer nos Estados Unidos, onde a Disney passou
alguns períodos sem ser publicada. É isso que estamos perdendo agora. É bem
provável que os quadrinhos sejam assumidos por alguma editora — a melhor aposta
seria a Panini, que já tem todo o resto, mesmo —, e quem gosta dos personagens
que ajudaram a definir a visão de mundo de gerações vai continuar sendo
servido, talvez até melhor.
Mas há um pessoal que gostava, também, da Disney na Abril.
Talvez porque ver o Pato Donald ou o Mickey numa banca de revistas lhes desse
um pouco de segurança e familiaridade em um mundo que não para de mudar e que,
nos últimos tempos, passou a desafiar até os mais otimistas. Talvez porque
mesmo em tempos de Facebook a desgraça dos outros não seja motivo de regozijo.
Eu me junto a eles.
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