Por Ruy Castro
À zero hora de 1969, todos os quartos do Solar da Fossa
estavam iluminados. Havia 80 festas de réveillon ardendo ao mesmo tempo. Em
várias, a música que saudou o Ano Novo foi “Also sprach Zarathustra”, de
Richard Strauss, famosa pela trilha sonora de 2001 – Uma odisseia no espaço, o
filme do ano. O fornecedor e assuntando o universo feminino de cada um.
O Solar era uma linda construção de dois andares, velha de
séculos, ao pé do morro do Pasmado, em Botafogo. Numa de suas últimas
encarnações, no século 1968, seus jovens moradores – aspirantes a artistas,
poetas e jornalistas, como os já citados Gal Costa, Paulinho da Viola, Betty
Faria, Ítala Nandi, Paulo Leminski, Maria Gladys – não eram muito religiosos.
Nem Zé Kéti, o único já famoso.
Quase ninguém ali tinha televisão – não se perdia tempo assistindo-a.
Toca-discos, sim, nem que fosse uma vitrolinha Sonata. No meu hit parade
particular, tocavam “Vou te contar” (“Wave”), com o Quarteto 004, “So many
stars”, com Sergio Mendes e o Brasil ’66, e “Light my fire”, com José
Feliciano. Para fins imorais, o Modern Jazz Quatet era perfeito – produzia um
ritmo sensual, abafava o som ambiente e não perturbava os vizinhos.
Naquela última noite de 1968, o AI – 5 ainda não completara
três semanas. Vários amigos tinham sido presos no dia 13 de dezembro e seguintes;
outros, que estavam escondidos, só então começavam a reaparecer – entre os
quais eu, por traquinagens cometidas no Correio da Manhã. Por sorte, não
ocorreu aos homens dar uma batida no Solar. Ainda bem – 90% dos inquilinos
preenchiam os requisitos para ir presos.
Foi uma grande noite. Mas a manhã seguinte seria 1969 e, a
partir dali, começaria outra história. Bertrand Russell ficaria out; Herman
Hesse, in. Passeatas na avenida Rio Branco dariam lugar a temporadas em
Arembepe, na Bahia. Godard despediu-se do cinema, os Beatles se separaram e
Sharon Tate foi assassinada por um sujeito parecido com tantos que andavam
entre nós.
Peritos em coquetéis Molotov passariam a ferver cogumelos.
Calças Lee e camisas da Marinha, compradas na praça Mauá, seriam substituídas
por túnicas estampadas com motivos florais, mandadas fazer na costureira. A
razão morrera, viva a magia. Uma palavra tomou conta: desbunde.
Surgia um mundo novo, irreconhecível para mim e, bem ao
contrário de 1968, ligado no dane-se e movido a cada um na sua.
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