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quinta-feira, julho 26, 2018

O maior mestre-sala da história do carnaval



O Desfile das Campeãs de 2012 estava para começar, com a Portela, sexta colocada, se movimentando na área da concentração, e o público que chegava apressado à Sapucaí mal reparava naquele senhor negro, esguio, sentado placidamente na mureta que divide as pistas do Viaduto Trinta e Um de Março, interditado para a festa. Dos defeitos de ser turista: estava ali, disfarçado no despojamento que lhe marcou a vida, o maior mestre-sala da história do carnaval. 
Delegado, lendário dançarino da Mangueira, esperava o início do espetáculo, do qual a sua verde e rosa, que ficara em sétimo lugar, não participaria. Sem crise. Sempre que o samba saiu, na quadra da Rua Visconde de Niterói ou nas muitas avenidas por onde passaram os desfiles, o baluarte esteve presente, embaixador informal e apaixonado da maior festa brasileira.
Assim começava a reportagem assinada por Aydano André Motta, com a colaboração de Sérgio Ramalho, publicada no Globo em 13 de novembro de 2012, no dia seguinte à morte do maior mestre-sala de todos os tempos. O cidadão mangueirense Hélio Laurindo da Silva, 90 anos, conhecido como Delegado (por prender as cabrochas na conversa) e presidente de honra da escola, havia sido vencido por um câncer.
Ficará eternizada na memória dos apaixonados a atávica elegância de quem cruzou a vida ereto, 1,90m e 67 quilos dedicados a um estilo impecável, a mais perfeita tradução do sambista de almanaque. Nenhum outro ícone carnavalesco ostenta a invencibilidade de notas 10 ao longo de inacreditáveis 36 desfiles. O talento que o fazia levitar em torno da porta-bandeira, guardando o pavilhão no preciso fundamento do mestre-sala, transformou-o em lenda.
Delegado chegou antes da Estação Primeira. Quando Cartola, Carlos Cachaça e outros seis bambas fundaram a escola, ele era um menino de 7 anos, que corria pelas vielas da favela ainda pequena, destino de famílias removidas dos cortiços demolidos nas mudanças implementadas pelo prefeito Pereira Passos. O futuro mestre-sala nasceu no fim de 1921, dia 29 de dezembro, filho de um dançarino de valsa – olha o DNA aí, gente! – e uma doceira, no Buraco Quente, trecho mais famoso da comunidade, e cedo entregou-se ao doce vício da folia.
Batizou-se sambista no flerte com a bateria Surdo 1, mas ainda adolescente encantou-se pelo bailado de Marcelino, o mestre-sala fundador, e Jorge Rasgado, que ocupou o posto nos anos 1940. Estreou em 1948, na madrugada de 8 de fevereiro, quando pisou a Praça Onze com a porta-bandeira Nininha. A escola ficou em quarto lugar, mas o casal ganhou 10, iniciando a lenda.
O primeiro título dos oito (e dois Estandartes de Ouro) veio em 1949. Começava o reinado que duraria até 1984, ano do supercampeonato da verde e rosa, do inesquecível “Yes, nós temos Braguinha”, quando a Mangueira voltou pela avenida, apoteose jamais repetida. Delegado fez do desfile o epílogo da carreira de mestre-sala. Como os Beatles, no auge. Em reportagem publicada no Globo, no dia 14 de dezembro de 1984, Delegado recusou, irritado, homenagens por ocasião da aposentadoria:
– E eu estou morto, por acaso, para sair em cima de carro alegórico? Não, meu amigo, estou muito bem de saúde e danço muito bem: só vou na pista.
Em agosto de 2011, quando foi consagrado presidente de honra, recordou: “Minhas porta-bandeiras estavam se aposentando, não fazia mais sentido”. A festa da posse, num sábado nublado de inverno, transformou-se num dos momentos inesquecíveis da história recente do carnaval. Todas as escolas mandaram casais ao Palácio do Samba, a quadra mangueirense, e Delegado fez questão de evoluir com cada porta-bandeira, ressuscitando a dança perfeita.
– Ele tinha um estilo particular, cortês e delicado, sem o modo acrobático dos mestres-salas atuais – descreve Maria Augusta, catedrática do carnaval, que assistiu ao vivo a várias apresentações do bailarino. – Era harmônico, bem dentro da origem da dança do casal, que visava à proteção da porta-bandeira.
A dança com as visitantes se justificava também por outro traço marcante. Delegado foi, a vida toda, um namorador compulsivo – o que inspirou o apelido.
– Ele “prendia” as moças com seu charme e sua conversa – traduz Tânia Bisteka, a maior rainha de bateria da história mangueirense.
A perícia de conquistador se consolidou ainda nos anos 1950, quando chegou ao morro uma mulata monumental chamada Maria, que se apaixonou pelo dançarino. E deu a ele Ézio, um dos três filhos de Delegado, que jamais se casou, mas teve seis netos e alguns bisnetos.
– Não sei mais quantos são, eles saíram daqui – contou, em entrevista em 2011, sem melancolia na voz.
O bailarino era, na verdade, casado com o carnaval. Morava numa casa ao lado da quadra, o samba a seguros cinco minutos de caminhada. À primeira batida do surdo, materializava-se na capital do seu reino, e só saía quando os instrumentos silenciavam. Três carnavais antes de morrer, aceitou a missão de doutrinar Raphael Rodrigues, mestre-sala. O gênio da leveza ainda tinha (muito) o que ensinar.
– O solo que apresento é 80% feito com base nos passos de Delegado – garantiu Raphael, que encontrou o mestre pela última vez dois dias antes da sua morte, no ensaio na quadra.
Enfraquecido pela doença, Delegado sequer se levantou para o obrigatório salamaleque a Marcella Alves, a linda porta-bandeira mangueirense.
– Sempre que ele chegava, nós o puxávamos para o meio da quadra. Naquela noite, ele disse que estava com dores nas pernas e não poderia evoluir como sempre fez – relembrou Raphael na ocasião. – Estou muito triste com a morte.

O mundo do samba ficou de luto, como há muito não se via. Porta-bandeira da Beija-Flor, Selminha Sorriso relembrou os encontros com o mestre:
– Era um embaixador do samba e um grande mestre dos mestres-salas de hoje. Todos, sem exceção, copiaram seus passos, como o carrapeta, o voleio, o curupira. Sempre que eu estava perto dele, aproveitava para aprender.
O artista plástico Marius Bell se encarregou de eternizar o mestre-sala em uma das paredes do mocó. Noblesse oblige.

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