O Desfile das Campeãs de 2012 estava para começar, com a
Portela, sexta colocada, se movimentando na área da concentração, e o público
que chegava apressado à Sapucaí mal reparava naquele senhor negro, esguio,
sentado placidamente na mureta que divide as pistas do Viaduto Trinta e Um de
Março, interditado para a festa. Dos defeitos de ser turista: estava ali,
disfarçado no despojamento que lhe marcou a vida, o maior mestre-sala da
história do carnaval.
Delegado, lendário dançarino da Mangueira, esperava o início
do espetáculo, do qual a sua verde e rosa, que ficara em sétimo lugar, não
participaria. Sem crise. Sempre que o samba saiu, na quadra da Rua Visconde de
Niterói ou nas muitas avenidas por onde passaram os desfiles, o baluarte esteve
presente, embaixador informal e apaixonado da maior festa brasileira.
Assim começava a reportagem assinada por Aydano André Motta,
com a colaboração de Sérgio Ramalho, publicada no Globo em 13 de novembro de
2012, no dia seguinte à morte do maior mestre-sala de todos os tempos. O
cidadão mangueirense Hélio Laurindo da Silva, 90 anos, conhecido como Delegado
(por prender as
cabrochas na conversa) e presidente de honra da escola, havia sido vencido por
um câncer.
Ficará eternizada na memória dos apaixonados a atávica
elegância de quem cruzou a vida ereto, 1,90m e 67 quilos dedicados a um estilo
impecável, a mais perfeita tradução do sambista de almanaque. Nenhum outro
ícone carnavalesco ostenta a invencibilidade de notas 10 ao longo de
inacreditáveis 36 desfiles. O talento que o fazia levitar em torno da
porta-bandeira, guardando o pavilhão no preciso fundamento do mestre-sala,
transformou-o em lenda.
Delegado chegou antes da Estação Primeira. Quando Cartola,
Carlos Cachaça e outros seis bambas fundaram a escola, ele era um menino de 7
anos, que corria pelas vielas da favela ainda pequena, destino de famílias
removidas dos cortiços demolidos nas mudanças implementadas pelo prefeito
Pereira Passos. O futuro mestre-sala nasceu no fim de 1921, dia 29 de dezembro,
filho de um dançarino de valsa – olha o DNA aí, gente! – e uma doceira, no
Buraco Quente, trecho mais famoso da comunidade, e cedo entregou-se ao doce
vício da folia.
Batizou-se sambista no flerte com a bateria Surdo 1, mas
ainda adolescente encantou-se pelo bailado de Marcelino, o mestre-sala
fundador, e Jorge Rasgado, que ocupou o posto nos anos 1940. Estreou em 1948,
na madrugada de 8 de fevereiro, quando pisou a Praça Onze com a porta-bandeira
Nininha. A escola ficou em quarto lugar, mas o casal ganhou 10, iniciando a
lenda.
O primeiro título dos oito (e dois Estandartes de Ouro) veio
em 1949. Começava o reinado que duraria até 1984, ano do supercampeonato da
verde e rosa, do inesquecível “Yes, nós temos Braguinha”, quando a Mangueira
voltou pela avenida, apoteose jamais repetida. Delegado fez do desfile o
epílogo da carreira de mestre-sala. Como os Beatles, no auge. Em reportagem
publicada no Globo, no dia 14 de dezembro de 1984, Delegado recusou, irritado,
homenagens por ocasião da aposentadoria:
– E eu estou morto, por acaso, para sair em cima de carro
alegórico? Não, meu amigo, estou muito bem de saúde e danço muito bem: só vou
na pista.
Em agosto de 2011, quando foi consagrado presidente de
honra, recordou: “Minhas porta-bandeiras estavam se aposentando, não fazia mais
sentido”. A festa da posse, num sábado nublado de inverno, transformou-se num
dos momentos inesquecíveis da história recente do carnaval. Todas as escolas
mandaram casais ao Palácio do Samba, a quadra mangueirense, e Delegado fez
questão de evoluir com cada porta-bandeira, ressuscitando a dança perfeita.
– Ele tinha um estilo particular, cortês e delicado, sem o
modo acrobático dos mestres-salas atuais – descreve Maria Augusta, catedrática
do carnaval, que assistiu ao vivo a várias apresentações do bailarino. – Era
harmônico, bem dentro da origem da dança do casal, que visava à proteção da
porta-bandeira.
A dança com as visitantes se justificava também por outro
traço marcante. Delegado foi, a vida toda, um namorador compulsivo – o que
inspirou o apelido.
– Ele “prendia” as moças com seu charme e sua conversa –
traduz Tânia Bisteka, a maior rainha de bateria da história mangueirense.
A perícia de conquistador se consolidou ainda nos anos 1950,
quando chegou ao morro uma mulata monumental chamada Maria, que se apaixonou
pelo dançarino. E deu a ele Ézio, um dos três filhos de Delegado, que jamais se
casou, mas teve seis netos e alguns bisnetos.
– Não sei mais quantos são, eles saíram daqui – contou, em
entrevista em 2011, sem melancolia na voz.
O bailarino era, na verdade, casado com o carnaval. Morava
numa casa ao lado da quadra, o samba a seguros cinco minutos de caminhada. À
primeira batida do surdo, materializava-se na capital do seu reino, e só saía
quando os instrumentos silenciavam. Três carnavais antes de morrer, aceitou a
missão de doutrinar Raphael Rodrigues, mestre-sala. O gênio da leveza ainda
tinha (muito) o que ensinar.
– O solo que apresento é 80% feito com base nos passos de
Delegado – garantiu Raphael, que encontrou o mestre pela última vez dois dias
antes da sua morte, no ensaio na quadra.
Enfraquecido pela doença, Delegado sequer se levantou para o
obrigatório salamaleque a Marcella Alves, a linda porta-bandeira mangueirense.
– Sempre que ele chegava, nós o puxávamos para o meio da
quadra. Naquela noite, ele disse que estava com dores nas pernas e não poderia
evoluir como sempre fez – relembrou Raphael na ocasião. – Estou muito triste
com a morte.
O mundo do samba ficou de luto, como há muito não se via.
Porta-bandeira da Beija-Flor, Selminha Sorriso relembrou os encontros com o
mestre:
– Era um embaixador do samba e um grande mestre dos
mestres-salas de hoje. Todos, sem exceção, copiaram seus passos, como o
carrapeta, o voleio, o curupira. Sempre que eu estava perto dele, aproveitava
para aprender.
O artista plástico Marius Bell se encarregou de eternizar o
mestre-sala em uma das paredes do mocó. Noblesse oblige.
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