Pesquisar este blog

terça-feira, julho 17, 2018

Nosferatu tropical na geleia geral brasileira


* Teresina (PI) – 9 de novembro de 1944
+ Rio de Janeiro (RJ) – 10 de novembro de 1972

Filho de um promotor público e de uma professora primária, o piauiense Torquato Neto estudou em Salvador, no mesmo colégio de Gilberto Gil, de quem se aproximou aos 17 anos nas rodas artísticas de Salvador, onde conheceu também os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia.

Mais tarde, em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde fez alguns anos de faculdade de jornalismo, sem se formar.

Apesar disso, exerceu a profissão de jornalista em diversos periódicos, como o Correio da Manhã (no suplemento Plug), O Sol (suplemento do Jornal dos Sports) e Última Hora, onde nos anos de 1971 e 72 escreveu sua badalada coluna Geleia Geral, em que defendia as manifestações artísticas de vanguarda na música, artes plásticas, cinema, poesia etc.

Fundou também jornais alternativos, o Presença e o Navilouca, que só teve um número, mas fez história.


Em 1968, com o AI-5 e o exílio dos amigos e parceiros Gil e Caetano (além de outros emigrados), viajou pela Europa e Estados Unidos com a mulher Ana Maria, morando algum tempo em Londres.

De volta ao Brasil, no início dos anos 70, ligou-se à poesia marginal e aos ícones do cinema marginal, Julio Bressane, Rogério Sganzerla e Ivan Cardoso.

Também era amigo dos poetas concretistas, Décio Pignatari, os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, e do artista plástico Hélio Oiticica.

Seu suicídio, um dia depois de seu 28º aniversário, provocou espanto. Torquato voltou de uma festa com a mulher — que foi dormir —, trancou-se no banheiro e ligou o gás, sendo encontrado morto no dia seguinte pela empregada.

Deixou um bilhete de despedida que dizia: “Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar”.

Thiago era o filho de três anos de idade.


Artigos da coluna Geleia Geral e poesias inéditas foram reunidos no livro “Os Últimos Dias de Paupéria”, organizado por Waly Salomão e a viúva Ana Maria em 1973.

Além disso, o cineasta Ivan Cardoso produziu o documentário Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália.

Uma das últimas coisas escritas por Torquato Neto, “Pra mim, chega” é também o nome de polêmica biografia do escritor, realizada pelo curitibano Toninho Vaz, que em 2002 estreou no formato escrevendo “O Bandido que Sabia Latim”, uma biografia de Paulo Leminski.

Em sua nova recontagem da vida de Torquato, Toninho Vaz tocou em assuntos delicados, tendo uma personagem principal complexa, profunda e de personalidade pouco conhecida em sua totalidade.


O poeta é geralmente citado como tímido, reservado, introspectivo, melancólico.

A biografia revela uma personalidade diferente: abrangente, expansiva.

Melancólica, sim. Mas também radical, anarquista, incansável, cheia de excessos e paixão pela vida.

Pessoa tão grande que é, um levantamento da história da vida de Torquato não poderia acontecer sem percalços.

Um detalhe surgido na apuração de sua biografia mostrou-se delicado, mas revelador.


Nana Caymmi, em entrevista, lembrando uma das primeiras tentativas de suicídio do poeta, comentou: “Pra mim, ficou claro que era uma paixão pelo Caetano. Todos ali falavam disso”.

Caetano Veloso, entrevistado pelo autor da biografia, foi categórico.

“Se você me perguntar se nós éramos namorados, amantes ou coisa assim, eu posso garantir: não!”, afirmou.

O autor desconfia que esse tenha sido um dos motivos para a desaprovação pública à biografia por parte da viúva de Torquato, Ana Maria Duarte.

Originalmente divulgado como projeto da editora Record, acabou abortado, até ser encampado, com aura de “maldito”, pela Casa Amarela, que publica a revista Caros Amigos.


Com 73 entrevistas, o livro explica na introdução: Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia se escusaram de falar sobre ele.

Chamado de “ideólogo do movimento tropicalista” por Toninho Vaz, Torquato Neto foi talento arrebatador, sensível, louco, inclassificável nos seus interesses.

Como letrista – sua faceta mais conhecida –, emprestou palavras para melodias de Edu Lobo (“Pra Dizer Adeus”), Gilberto Gil (“Louvação” e “Geleia Geral”), Caetano Veloso (“Nenhuma Dor” e “Mamãe Coragem”), Jards Macalé (“Let’s Play That”), Capinam e Gil (“Soy loco por ti America”) e parceria póstuma com Sérgio Brito, gravada pelos Titãs (“Go Back”), entre dezenas de outras.

Como jornalista, escreveu em periódicos como Correio da Manhã e Última Hora, onde manteve por muitos anos coluna de intensa agitação cultural. Como poeta, teve obra esparsa, rascunhada, apenas organizada postumamente.



Há pouco tempo, a editora Rocco organizou essencial trabalho de compilação de toda a obra escrita de Torquato, nos dois volumes de “Torquatália” (“Do Lado de Dentro” e “Geleia Geral”), com letras, poesias, colunas jornalísticas, roteiros, cartas, anotações, ideias e um diário de certo período em que esteve internado – voluntariamente, diga-se – em um hospital psiquiátrico carioca.

Este período é lembrado em detalhes no livro “Pra Mim Chega”, entre outras histórias de solidão, paixões e inconformismo, inclusive do seu período pós-tropicalista, já cabeludo e interessado em cinema e drogas, com lembranças surpreendentes de relações com Glauber Rocha, Zé Celso, Hélio Oiticica.

Tudo muito natural para o poeta que escreveu que um poeta não se faz com versos: “É o risco, é estar sempre a perigo, sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela.”


Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranqüilamente
todas as horas do fim.


O Poeta é a Mãe das Armas

O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral —
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.

A poesia é o pai da ar-
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.

poetemos pois

torquato neto /8/11/71 & sempre.


Geléia Geral

um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia
resplandente, cadente, fagueira num calor girassol com alegria
na geléia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro
minha terra é onde o sol é mais limpo e Mangueira é onde o samba é mais puro
tumbadora na selva-selvagem, Pindorama, país do futuro
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

é a mesma dança na sala, no Canecão, na TV
e quem não dança não fala, assiste a tudo e se cala
não vê no meio da sala as relíquias do Brasil:
doce mulata malvada, um LP de Sinatra, maracujá, mês de abril
santo barroco baiano, superpoder de paisano, formiplac e céu de anil
três destaques da Portela, carne-seca na janela, alguém que chora por mim
um carnaval de verdade, hospitaleira amizade, brutalidade jardim
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

plurialva, contente e brejeira miss linda Brasil diz “bom dia”
e outra moça também, Carolina, da janela examina a folia
salve o lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi

um poeta desfolha a bandeira e eu me sinto melhor colorido
pego um jato, viajo, arrebento com o roteiro do sexto sentido
voz do morro, pilão de concreto tropicália, bananas ao vento
ê, bumba-yê-yê-boi ano que vem, mês que foi
ê, bumba-yê-yê-yê é a mesma dança, meu boi


Literato Cantabile

agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto pode ser o fim
do seu início
agora não se fala nada
e tudo é transparente em cada forma
qualquer palavra é um gesto
e em minha orla
os pássaros de sempre cantam assim,
do precipício:

a guerra acabou
quem perdeu que agradeça
a quem ganhou.
não se fala. não é permitido
mudar de idéia. é proibido.
não se permite nunca mais olhares
tensões de cismas crises e outros tempos
está vetado qualquer movimento
do corpo ou onde quer que alhures.
toda palavra envolve o precipício
e os literatos foram todos para o hospício
e não se sabe nunca mais do mim. agora o nunca.
agora não se fala nada, sim. fim. a guerra
acabou
e quem perdeu agradeça a quem ganhou.


Pacato Cidadão

era um pacato cidadão de roupa clara
seu terno, sua gravata lhe caíam bem
seu nome, que eu me lembre, era ezequias
casado, vacinado e sem ninguém.
brasileiro e eleitor, seu ezequias
reservista de terceira e com família
três filhos, prestações e alguns livros
(enciclopédias e biografias)
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
cumpria seus deveres, trabalhava
chegava cedo em casa de madrugada
lutando pelo pão de cada dia.
era um pacato cidadão de roupa clara
e todo dia passava e me dizia
que o mundo estava andando muito mal
eu perguntava por que, eu perguntava
seu ezequias nunca me explicava
apenas repetia
lá dentro do seu puro tropical
este mundo vai seguindo muito mal
este mundo, meu filho, vai seguindo muito mal.
ah, seu ezequias!
que pena, que desastre, que tragédia
que coisa aconteceu naquele dia
seu ezequias. ah, seu ezequias
saiu do emprego e foi tomar cachaça
e apenas de manhã voltou pra casa
batendo na mulher, xingando os filhos
seu ezequias, ah seu ezequias
era um pacato cidadão de roupa clara
era um homem de bem que eu conhecia
e agora é a vergonha da família.


Ai de mim, Copacabana

um dia depois do outro
numa casa abandonada
numa avenida
pelas três da madrugada
num barco sem vela aberta
nesse mar
nem mar sem rumo certo
longe de ti
ou bem perto
é indiferente, meu bem

um dia depois do outro
ao teu lado ou sem ninguém
no mês que vem
neste país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim: quero
voar no concorde
tomar o vento de assalto
numa viagem num salto
(você olha nos meus olhos
e não vê nada -
é assim mesmo
que eu quero ser olhado).

um dia depois do outro
talvez no ano passado
é indiferente
minha vida tua vida
meu sonho desesperado
nossos filhos nosso fusca
nossa butique na augusta
o ford galaxie, o medo
de não ter um ford galaxie
o táxi, o bonde a rua
meu amor, é indiferente

minha mãe, teu pai a lua
nesse país que me engana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim, copacabana
ai de mim.


Pílulas

Pílulas do tipo deixa-o-pau-rolar. Na mesma base: deixa.

Primeiro passo é tomar conta do espaço. Tem espaço a beça e só você sabe o que o que pode fazer do seu. Antes ocupe. Depois se vire.

Não se esqueça de que você está cercado, olhe em volta e dê um rolê. Cuidado com as imitações.

Imagine o verão em chamas e fique sabendo que é por isso mesmo. A hora do crime precede a hora da vingança, e o espetáculo continua. cada um na sua, silêncio.

Acredite na realidade e procure as brechas que ela sempre deixa. Leia o jornal, não tenha medo de mim, fique sabendo: drenagem, dragas e tratores pelo pântano. Acredite.

Poesia. Acredite na poesia e viva. E viva ela. Morra por ela se você se liga, mas por favor, não traia. O poeta que trai sua poesia é um infeliz completo e morto. Resista, criatura.

Sínteses. Painéis. Afrescos. Reportagens. Sínteses. Poesia. Posições. Planos gerais. "O Close-up é uma questão de amor". Amor.

Eu, pessoalmente, acredito em vampiros. O beijo frio, os dentes quentes, um gosto de mel.

16/11/71 - 3ª-feira


Let’s play that

quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
até o fim

Nenhum comentário: