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quinta-feira, julho 12, 2018

Biografia não autorizada do Bione



Adentrei o tapete verde da chamada grande imprensa nos idos da década de 1970. Foi fascinante. O cheiro de fumaça de cigarro, misturado com os odores do chumbo derretido da oficina, no ambiente fervilhante da redação me enchiam de energia criativa. No final da noite ainda tinha o corre-corre do fecha-fecha do jornal...
E a censura comia solta. As páginas de telex a determinar o que não podia ser publicado eram pregadas no quadro de avisos. Isso nos deixava por dentro do que se passava nas entranhas da ditadura. O quadro era o “jornal” mais lido pelos jornalistas. Até que um novo telex do SNI – Serviço Nacional de Informações – determinou que as mensagens proibitivas deveriam ficar restritas aos editores. A “gloriosa de 1º de abril”, como batizou Stanislaw Ponte Preta, tinha suas sabedorias. Eu tocava minha vida entre os estudos de medicina e o jornalismo. E aos poucos ia se descortinando para mim um mundo de interesses escusos – e às vezes até claros demais – em cada linha e em cada foto publicadas.
Nessa época, numa noite qualquer, acordei sobressaltado. Um sonho estranho invadira meu dormir. Atravessava eu a ponte Duarte Coelho, no centro do Recife, quando me deparei com Luiz Gonzaga a puxar sua sanfona branca, fazendo dueto com Fagner, num forró danado de bom. Diga-se que tal parceria só viria a se concretizar anos depois – meus sonhos têm dessas coisas premonitórias. Enquanto eu olhava, embevecido, para aquela dupla, um colega de redação me convidava de dentro do rio Capibaribe para juntar-me a ele. 
O colega – já falecido, que Deus o tenha – chafurdava na lama da maré baixa, atolado até o peito. Eu, deslumbrado com a música e até cantando junto com “seu Luiz” e com Fagner, sinalizava que rejeitava aquele convite. Ele insistia que eu fosse me “banhar” naquele rio de lama. Ante minha recusa, ele saiu do rio na tentativa de me arrastar até aquele lodaçal. Lembro que acordei baratinado, após correr léguas intermináveis, perseguido pelo colega enlameado. Ufa!, o despertar me salvou.
Dá pra sentir a relação esquizóide que, desde sempre, mantive com a chamada grande imprensa. O cheiro da tinta, do fumo, do chumbo – sim, nessa época off-set e computador eram coisas futuristas –, os sons das rotativas, os berros histéricos dos editores eram aromas e músicas aos meus sentidos. O clima de medo, corrupção, covardia, dedurismo, me enojava como a lama fétida do rio.
É A LAMA, É A LAMA – E assim passaram-se os anos. E pouca coisa mudou. Mudaram os atores, os personagens, os diretores, a ditadura deu com os burros n’água, mas a comédia burlesca é a mesma. Talvez até com roteiro mais medíocre. Naquele tempo, pelo menos, a maioria tinha um inimigo comum, o regime militar. Hoje, manda o famigerado mercado. 
Peguem-se episódios isolados para termos uma visão do todo. Revistas semanais garantem seu faturamento a partir da extorsão a setores do governo, que devem garantir um mínimo de páginas de anúncios, senão surgirá uma nova “denúncia” contra alguém próximo à presidência, ao ministério ou à estatal que reduziu ou cortou a cota publicitária. O sagrado instituto da fonte passou a funcionar como balcão de negócios. Vide as capas de revistas semanais inspiradas nas “denúncias”. Enfim, tudo pode ser reduzido a três palavrinhas: negociata, extorsão, jabá. Por falar em jabá, estão aí as grandiloquentes matérias sobre os lançamentos hollywoodianos ou sobre CDs/DVDs de infames duplas sertanejas que não me deixam mentir.
Por essas e por outras, resolvi cair fora desse barco povoado de ratazanas. Daí, criei um jornal do qual sou o fundador, presidente, editor e office-boy: o tal Papa-Figo velho de guerrilha, uma instituição sem fins lucrativos. Faz, agora em agosto, 34 primaveras sem tirar de dentro. Não ganho porra nenhuma, mas pelo menos me divirto um bocado. É o que sempre digo em meus papos com estudantes e jovens jornalistas: entre a imprensa escrita, falada ou televisada, prefiro um bom prato de jabá.



Manoel Bione é psiquiatra, jornalista e editor do Papa-Figo, o jornal de humor mais antigo em circulação na América Latina – depois do Diário de Pernambuco, é claro. Agora, gozando na rede: (papafigo.com). Boa leitura.

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