Adentrei o tapete verde da chamada grande imprensa nos idos
da década de 1970. Foi fascinante. O cheiro de fumaça de cigarro, misturado com
os odores do chumbo derretido da oficina, no ambiente fervilhante da redação me
enchiam de energia criativa. No final da noite ainda tinha o corre-corre do
fecha-fecha do jornal...
E a censura comia solta. As páginas de telex a determinar o
que não podia ser publicado eram pregadas no quadro de avisos. Isso nos deixava
por dentro do que se passava nas entranhas da ditadura. O quadro era o “jornal”
mais lido pelos jornalistas. Até que um novo telex do SNI – Serviço Nacional de
Informações – determinou que as mensagens proibitivas deveriam ficar restritas
aos editores. A “gloriosa de 1º de abril”, como batizou Stanislaw Ponte Preta,
tinha suas sabedorias. Eu tocava minha vida entre os estudos de medicina e o
jornalismo. E aos poucos ia se descortinando para mim um mundo de interesses
escusos – e às vezes até claros demais – em cada linha e em cada foto
publicadas.
Nessa época, numa noite qualquer, acordei sobressaltado. Um
sonho estranho invadira meu dormir. Atravessava eu a ponte Duarte Coelho, no
centro do Recife, quando me deparei com Luiz Gonzaga a puxar sua sanfona
branca, fazendo dueto com Fagner, num forró danado de bom. Diga-se que tal
parceria só viria a se concretizar anos depois – meus sonhos têm dessas coisas
premonitórias. Enquanto eu olhava, embevecido, para aquela dupla, um colega de
redação me convidava de dentro do rio Capibaribe para juntar-me a ele.
O colega – já falecido, que Deus o tenha – chafurdava na
lama da maré baixa, atolado até o peito. Eu, deslumbrado com a música e até
cantando junto com “seu Luiz” e com Fagner, sinalizava que rejeitava aquele
convite. Ele insistia que eu fosse me “banhar” naquele rio de lama. Ante minha
recusa, ele saiu do rio na tentativa de me arrastar até aquele lodaçal. Lembro
que acordei baratinado, após correr léguas intermináveis, perseguido pelo
colega enlameado. Ufa!, o despertar me salvou.
Dá pra sentir a relação esquizóide que, desde sempre,
mantive com a chamada grande imprensa. O cheiro da tinta, do fumo, do chumbo –
sim, nessa época off-set e computador eram coisas futuristas –, os sons das
rotativas, os berros histéricos dos editores eram aromas e músicas aos meus
sentidos. O clima de medo, corrupção, covardia, dedurismo, me enojava como a
lama fétida do rio.
É A LAMA, É A LAMA – E assim passaram-se os anos. E pouca
coisa mudou. Mudaram os atores, os personagens, os diretores, a ditadura deu
com os burros n’água, mas a comédia burlesca é a mesma. Talvez até com roteiro
mais medíocre. Naquele tempo, pelo menos, a maioria tinha um inimigo comum, o
regime militar. Hoje, manda o famigerado mercado.
Peguem-se episódios isolados para termos uma visão do todo.
Revistas semanais garantem seu faturamento a partir da extorsão a setores do
governo, que devem garantir um mínimo de páginas de anúncios, senão surgirá uma
nova “denúncia” contra alguém próximo à presidência, ao ministério ou à estatal
que reduziu ou cortou a cota publicitária. O sagrado instituto da fonte passou
a funcionar como balcão de negócios. Vide as capas de revistas semanais
inspiradas nas “denúncias”. Enfim, tudo pode ser reduzido a três palavrinhas:
negociata, extorsão, jabá. Por falar em jabá, estão aí as grandiloquentes
matérias sobre os lançamentos hollywoodianos ou sobre CDs/DVDs de infames
duplas sertanejas que não me deixam mentir.
Por essas e por outras, resolvi cair fora desse barco
povoado de ratazanas. Daí, criei um jornal do qual sou o fundador, presidente,
editor e office-boy: o tal Papa-Figo velho de guerrilha, uma instituição sem
fins lucrativos. Faz, agora em agosto, 34 primaveras sem tirar de dentro. Não
ganho porra nenhuma, mas pelo menos me divirto um bocado. É o que sempre digo em
meus papos com estudantes e jovens jornalistas: entre a imprensa escrita,
falada ou televisada, prefiro um bom prato de jabá.
Manoel Bione é
psiquiatra, jornalista e editor do Papa-Figo, o jornal de humor mais antigo em
circulação na América Latina – depois do Diário de Pernambuco, é claro. Agora,
gozando na rede: (papafigo.com). Boa leitura.
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