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quinta-feira, julho 19, 2018

Glauco Vilas Boas: no céu, com diamantes




Glauco Vilas Boas era paranaense, da cidade de Jandaia do Sul, e descendente direto da família dos sertanistas Orlando, Claudio e Leonardo Vilas Boas. Nasceu em 10 de março de 1957 e, em 12 de março de 2010, foi tragicamente assassinado, junto com seu filho, Raoni Vilas Boas, de 25 anos, por um psicopata esquizofrênico, que frequentava a igreja daimista Céu de Maria, localizada no sítio onde residia o cartunista, em Osasco, São Paulo. 
Como cartunista, Glauco publicou seus primeiros trabalhos em 1976, no Diário da Manhã, de Ribeirão Preto, e no mesmo ano ganhou seu primeiro prêmio no Salão do Humor de Piracicaba. Ele também foi premiado na 2ª Bienal de Humorismo y Gráfica de Cuba.
Em 1977, Glauco passou a fazer parte do elenco de cartunistas do jornal Folha de S. Paulo, onde consagrou personagens como Geraldão, Geraldinho, Dona Marta, Zé do Apocalipse, Casal Neuras e Doy Jorge. 
Dono de um traço marcante e de um estilo de humor ácido e de piadas visuais rápidas, Glauco criou personagens que de certa forma representavam suas próprias experiências na São Paulo dos anos 1980, com referências a sexo, drogas e violência urbana.
Editou pela Circo Editorial, entre 1987 e 1989, a revista Geraldão. Nesse período também foi colaborador das revistas Chiclete com Banana e Circo, da mesma editora. Foi também roteirista da TV Pirata e TV Colosso, da Rede Globo.
No artigo/entrevista “Glauco sempre sentou na turma do fundão”, publicado no portal UOL, a jornalista Mara Gama traçou um perfil biográfico do cartunista. Curtam:
No começo dos anos 70, o encontro com o jornalista José Hamilton Ribeiro, que dirigia o Diário da Manhã, em Ribeirão Preto, tirou o paranaense Glauco da fila do vestibular para Engenharia e o jogou direto para as páginas do jornal, já com uma tira: “Rei Magro e Dragolino”. 
Alguns anos mais tarde, a premiação no Salão de Humor de Piracicaba abriu as portas do jovem cartunista para a grande imprensa. Em 1977, Glauco começou a publicar suas tiras esporadicamente na Folha de S. Paulo. A partir de 1984, quando a Folha dedicou espaço diário à nova geração de cartunistas brasileiros, Glauco passou a publicar ali suas tiras. O cartunista é autor de uma família de tipos como Dona Marta, Zé do Apocalipse, Doy Jorge e Geraldinho. 
Para a estação UOL Humor, Glauco criou em maio de 2000 os personagens Ficadinha – publicada aos sábados – e Netão – publicado às terças e quintas. Netão é “uma mistura de Casal Neuras com Geraldão”, explica Glauco. “Ele é um cara metropolitano, de uns 30 anos, que vive internado no apartamento e viaja pela tela do computador.” 
Nesses anos, as histórias se transformaram, sintonizadas com mudanças de comportamento, modas e manias, mas Glauco continua fiel ao seu traço único e desenha com nanquim no papel. Usa o computador só para colorir as tiras, depois de escanear seus desenhos. “Para meu tipo de desenho, só mesmo com a pena, que dá um traço peculiar”, revela. 
Ex-guitarrista, o pisciano Glauco também já inspirou personagens de outros cartunistas. Angeli baseou-se nele para criar o Rhalah Rikota, “na época em que o Glauco era seguidor do guru indiano Rajneesh”, diz Angeli. 
“Eles sempre me gozaram muito por causa do meu lado místico, principalmente depois que entrei para o Santo Daime”, conta Glauco. “Daimista” há anos, Glauco dirige um centro de estudos que usa a bebida feita de cipó – a ayahuasca – para fins religiosos, em cerimônias inspiradas em rituais praticados por índios da Floresta Amazônica. 


Os cartunistas Glauco, Márcia Squiba, Angeli e Laerte, durante a 1ª Exposição Internacional de Fanzines, realizada em Curitiba, em 1990

Leia a seguir trechos da entrevista que Glauco deu para o UOL, em 2001, em que falou sobre o início da vida de cartunista, misticismo, o personagem Netão e sobre o seu modo de desenhar:
“O Netão surgiu com essa nova moda da Internet. A princípio eu estava resistente em criar um personagem especialmente ligado à Internet, porque é uma coisa limitada de trabalhar com o cara ali olhando para aquela tela. Mas depois surgiu a esposa dele, que tem ciúmes dele ficar navegando na Internet e fui me animando. Depois que eu comecei a colaborar com o UOL, passei a querer aprender mais sobre a Internet, também para ter mais subsídios para trabalhar com o Netão. 
O Netão tem uns 30 anos, justamente para dar uma crise no casamento dele. Ele é metropolitano, vive internado num apartamento e viaja pelo mundo afora pelo computador. Ele é uma mistura do Geraldão com o Casal Neuras. Um Geraldão Virtual.” 
O Cartunista


“Comecei a desenhar no segundo grau. Sempre desenhei na turma do fundão, que eu fui frequentador assíduo. Desenvolvi essa linguagem e vi que era uma ferramenta muito poderosa: o humor aliado com caricatura. Desde você fazer caricatura dos professores, de algum colega de classe... 
Também tive contato com o pessoal do Pasquim. Conheci o Henfil, todos aqueles desenhistas, o Ziraldo. Aquilo foi me inspirando. 
Quando me mudei para Ribeirão Preto, para prestar vestibular para Engenharia – por incrível que pareça, eu ia prestar vestibular para Engenharia. Não tem nada a ver comigo. Eu levei a sorte de na época o Hamilton Ribeiro, que é um grande jornalista, estar dirigindo o Diário da Manhã, um jornal de Ribeirão Preto. Ele viu meu trabalho, gostou muito, e me contratou para fazer uma tira diária. Assim começou minha profissão. 
Essa primeira tira era o Rei Magro e o Dragolino. Era um rei muito louco, que vivia fumando um baseado, e o Dragolino enfrentando ele. Era essa dupla, num universo de hippie, de rock. 
Na época estava no auge do Salão de Humor de Piracicaba, em 1976. Fui premiado e isso me abriu as portas para a grande imprensa, principalmente para a Folha de S. Paulo. Em 1977 comecei a publicar esporadicamente na Folha. No Acontece. Também estava surgindo o Folhetim, que o Tarso de Castro dirigia, e o Angeli era responsável por uma seção de humor na contracapa, que chamava Viralata. Aí eu comecei a publicar toda semana nessa seção. Foi esse o começo na Folha. 
Em 84, a Folha criou a seção de quadrinhos para desenhista nacional e, com aquela lei de 50% do espaço para o pessoal da casa, a gente começou a desenvolver pela primeira vez a tira nacional diária, para competir com a americana.” 
Desenho
“Eu desenho a nanquim com papel, depois eu escaneio e quando é para aplicar cor eu uso o computador. Tentei usar o computador para desenhar, mas meu desenho sai como se fosse uma criança. Não tenho o domínio ainda. Mesmo aquela canetinha que tem uma tela. Para meu tipo de traço, estou acostumado com a pena, que dá um traço todo peculiar.” 
Misticismo e Daime


“O Angeli sempre tirou muito sarro de mim porque eu sou muito místico. Sou pisciano. Sempre gostei da linha espiritual, de estudar. Depois que eu comecei a frequentar o Santo Daime – que é uma bebida que vem lá da Amazônia, que os índios consagram –, eles (Angeli e Laerte) tiraram muito sarro dessa minha nova jornada. Chegaram a fazer história sobre o Glauquito, que montou uma religião, encontrou suas raízes, montou uma seita e fez um chá com as suas raízes. 
O Rhalah Rikota eu não tinha antenado que o Angeli tinha feito especialmente para tirar um sarro mas, com essa confissão dele eu me sinto muito honrado. 
Eu sou daimista. Criamos um grupo de estudo e passamos a receber o Daime lá da floresta. É um centro de pesquisa espiritual. O Daime tem um potencial de cura muito grande. 
Eu coordeno o ritual, que é bastante musical. São vários hinos, recebidos pelos caboclos lá da mata, que a gente executa depois de ter ingerido o Daime. A gente faz um trabalho musical e dentro desse trabalho musical as pessoas vão estudando, dentro da força do Daime, porque ele é um expansor de consciência. 
O Daime me trouxe muita disciplina, principalmente com meu trabalho de cartunista, do traço. Também relacionado à saúde, porque eu era muito exagerado, boêmio, e isso atrapalhava o meu dia a dia. O traço é uma coisa que você precisa estar harmonizado com você mesmo. Nesse sentido, senti uma evolução muito grande, no meu trabalho e em todos os aspectos da minha vida.” 


“Glauco revelava os políticos no delírio infantil do poder”, escreveu Claudio Leal, no Portal Terra Magazine, tão logo tomou conhecimento do bárbaro assassinato do cartunista. Releia o texto na íntegra:
Quando morrem, os humoristas não merecem ir para o céu. Assassinado junto com o filho, Raoni, na madrugada desta sexta-feira, em Osasco (SP), o cartunista Glauco Villas Boas inviabilizou seu passaporte para o lugar-comum dos vertebrados: era impertinente, livre, subversivo e de oposição. Olhando bem, nesta República poucos justificam os quatro carimbos. Não confundir um humorista com os piadistas e os imitadores anedóticos. Estes são aceitos em qualquer festa. Os humoristas, em seus confrontos de Oscar Wilde, Dorothy Parker ou Millôr Fernandes, não gozam descanso terreno ou eterno. 
Sem coincidência, Glauco se hospedou por nove meses no lendário apartamento de Henfil na rua Itacolomi, em São Paulo, nos anos 70. Esse encontro de fradins e geraldões insinuava um ritual de passagem do humor do Pasquim para o da geração de craques como Laerte, Angeli e Glauco. Não havia admiração pacífica. A agilidade do traço de Henfil, quase “caligráfico” –  como destacava Jaguar –, e a liberdade no uso do espaço do cartum contagiaram “Los 3 Amigos”. “Estou falando com Deus, pensava, quando conheci o Henfil. Os Fradinhos, aquele traço todo solto, o uso do palavrão – o trabalho dele era um avanço muito grande”, declarou numa entrevista. 
Mas o que o distanciava do mestre era justamente o que determinaria a personalidade artística de Glauco: o impulso dessacralizador da política. A partir de 1977, iniciou sua colaboração com a Folha de São Paulo, no momento em que o humor vivia o conflito entre a militância e a contestação da esquerda. Ele reduzia a República a seus elementos mais infantis, para revelar o nonsense de engravatados e congêneres. Fernando Henrique Cardoso, papada e tremedeiras de intelectual da primeira infância. Lula, charuto híbrido de sindicalista e líder plenipotenciário. Os gestos infantis são, óbvio, fundadores do ser humano. E Glauco descascava as pompas dos políticos brasileiros até deixá-los montados num cavalinho. Não parece o Arruda num carrossel?

Suas charges (“cartuns editoriais!” – bradaria o humorista Osmani Simanca), na página de Opinião da Folha, vibravam nesse Olimpo dos palpiteiros do jornalismo (sempre revestidos de uma gravidade que não se ajusta à nossa esquina). A surpresa da caricatura nascia do movimento, dos nervos. Geraldinho e Geraldão, Dona Marta, Zé do Apocalipse e Doy Jorge se metem em tumultos vários, alguns deles animalescos – em diálogo e traço. Glauco banqueteou-se com o budismo, Carlos Castañeda, Osho e o Santo Daime. Agora vemos que tinha uma clarividência corrosiva. No desassossego com a notícia de sua morte, a última tirinha da Dona Marta desconcerta por enquadrar a violência: 
“– Chefinho tenso... Vou fazer uma massaginha...
– Experimenta! (Clic! Revólver apontado)
– Experimento, fica bem quietinho! (Fuzil na nuca).”
Glauco morreu aos 53 anos, em sua casa. Quatro tiros no (nosso) peito. Os deuses dos grandes humoristas costumam falhar. E ouvimos Geraldão, no quadrinho final: Mãe, que merda!


Confira os personagens criados por Glauco e suas tirinhas.
Geraldão – Ele é o principal personagem criado por Glauco, solteiro, na faixa dos 30 anos, ele ainda é virgem e mora com a mãe, com quem tem uma relação neurótica. Geraldão bebe, fuma bastante, toma os remédios que encontra pela frente e adora atacar a geladeira. O personagem foi criado para o livro “Minorias do Glauco”, lançado em 1981.
Geraldinho – Geraldinho é a versão criança do Geraldão. Ao invés de beber, fumar e tomar remédios, ele é viciado em refrigerantes, TV e sorvete. Seus amigos inseparáveis são o cachorro Cachorrão e do gato Tufinho. Geraldinho foi criado especialmente para a Folhinha.
Netão – Foi o primeiro quadrinho criado por Glauco para a internet. Ele surgiu em maio de 2000, feito especialmente para o UOL. O nome Netão é uma referência à palavra net. O personagem tem cerca de 30 anos e vive “internado” em um apartamento com a mulher. Netão tem compulsão por salas de bate-papo e, sem nunca tirar seu pijama, passa boa parte do seu tempo envolvido em traições virtuais.
Dona Marta - Ela é uma daquelas moças educadas à moda antiga e, de tanto esperar pelo homem ideal, acabou ficando para titia. Quando se deu conta de que não arrumaria um namorado, ela passou a cantar todos os que encontra. A personagem foi criada 1981, também para o livro “Minorias do Glauco”.
Casal Neuras – Criado em 1984, o casal é formado por uma mulher não submissa e por um homem que faz pose de liberal, mas, no fundo, morre de ciúmes dela. Os dois são chamados de Neurinha, ela e ele. Os personagens foram baseados no primeiro casamento de Glauco.
Zé do Apocalipse – É uma espécie de profeta brasileiro, que acredita que o país é a terra do novo milênio. O personagem acredita ser o porta-voz dessa nova era e prega suas ideias em todo o lugar. O personagem foi inspirado em um amigo de Glauco que vivia em uma comunidade alternativa.
Edmar Bregmam – O personagem é uma homenagem ao cineasta Glauber Rocha e ao cinema novo. Edmar nunca terminou um filme e seu único contato com o cinema foi ter sido responsável pelos efeitos especiais de “Terra em Transe”.
Doy Jorge – É um roqueiro que não se deu bem na carreira e se deixou levar pelas drogas pesadas. O personagem foi criado nos anos 80 para as revistas do “Geraldão” e também teve suas tiras publicadas na Folha.
Zé Malária – Trata-se de um antropólogo que estudou a mata, mas nunca foi a campo e morre de medo de cobras, aranhas e bichos em geral. Seu instrumento de trabalho é um inseticida que devasta a floresta.
Ficadinha – Criada em 2000 para integrar um canal do UOL direcionada para a sexualidade de jovens, Ficadinha é uma adolescente contemporânea. Ela tem 17 anos, mora com os pais e tem vários “ficantes”.
Faquinha – Ele nunca conheceu os pais e foi criado por Facão, um perigoso traficante. Faquinha entrou para o mundo do tráfico e vive sendo perseguido pela polícia e por grupos de extermínio.
Nojinsk – O personagem vive num deserto com seu tapete mágico sempre fugindo dos americanos e de grupos extremistas que o confundem com terroristas. Na verdade, ele é um comerciante de camelos, odaliscas, haxixe e tapetes-voadores.
Ozetês – Eles vieram do espaço e se comunicam por telepatia, meditam e materializam coisas com a força do pensamento. Vários artistas famosos já meditaram com os ozetês, como Jimi Hendrix.
E é claro junto com Angeli e Laerte: Los 3 Amigos.

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