Por Daniel Gruber
Publicado em 2015 no Brasil pela L&PM, Sapiens – uma breve história da humanidade,
do historiador israelense Yuval Noah Harari, já está na sua 33ª edição e é
best-seller internacional em diversos países ocidentais. O lançamento do novo
livro do autor, Homo Deus – uma breve
história do amanhã, pela Companhia das Letras este ano, ajudou a catapultar
as vendas do primeiro livro, que ganhou uma edição luxuosa com capa dura para o
Natal. O sucesso do livro não é à toa, mesmo para quem não tem preconceitos com
best-sellers: em cerca de 450 páginas, Harari consegue subverter todas as
certezas que você tinha a respeito da humanidade.
Chegando ao fim da leitura, o leitor de Sapiens fica estupefato. Harari destrói (ou melhor, desconstrói)
tudo: religião, deus, seres humanos, natureza, civilização, capitalismo,
direitos humanos, tecnologia, futuro. Nenhum conceito fechado perdura da
análise sobre a história da humanidade. Mas, diferente da algazarra de opiniões
orientadas ideologicamente pelo nosso tempo, Harari praticamente não toma
partido. Ele não está preocupado em defender esta ideia ou desmistificar aquela
outra, nem apontar soluções para os problemas que elenca. Harari é um
observador científico e todos os seus argumentos são reforçados com dados
obtidos em pesquisas recentes de diversas áreas.
O livro inicia falando sobre macacos. Traz dados
antropológicos sobre a evolução dos primatas até chegar ao gênero Homo. Alguns
dados interessantes nessa história são:
1) Há 6 milhões de anos viveu o último ancestral em comum
entre humanos e chimpanzés. A partir daí, um grupo evoluiu tal como os macacos
que conhecemos hoje nos zoológicos e outro grupo deu origem aos humanos.
2) Entre 2 milhões e 200 mil anos atrás, diversas espécies
de Homo se espalharam pela África e Eurásia. Em determinadas épocas, houve seis
espécies diferentes convivendo entre si, entre eles o sapiens e o neandertal.
Isso é interessante porque mostra que nós não fomos os únicos humanos a habitar
a Terra. Antes de nós, outras espécies de seres humanos surgiram, viveram
durante milhões de anos e se extinguiram.
3) Isso desfaz a ideia (em geral pregada pelas religiões) de
que o ser humano de hoje é um ser único no planeta. Não é. Além do mais, nossa
história aqui é muito recente. Mesmo se nossa espécie chegar a existir por
milhões de anos (o que parece improvável, dado o colapso a que estamos
provocando a nós mesmos), estaremos fadados à extinção.
4) Já houve a era dos grandes répteis e estamos vivendo a
era dos mamíferos. Após a extinção dos seres humanos, talvez entremos numa era
dos insetos, dado o incrível poder de adaptação das baratas hoje, por exemplo.
5) O Homo sapiens – isto é, nós – existem há 200 mil anos.
Desde que a espécie surgiu, nosso cérebro é mais ou menos do mesmo tamanho e
nossa capacidade intelectual praticamente não se alterou. Durante quase 130 mil
anos, o sapiens era um predador de menor escala, vivendo do resto de carniça
que predadores mais fortes deixavam. Um cérebro grande exige muito gasto de
energia, que é consumida dos músculos. Isto faz com que os seres humanos sejam
fracos em relação a grandes predadores, como tigres dentes-de-sabre e leões das
cavernas.
6) Só há 70 mil anos atrás o ser humano subiu ao topo da
cadeia alimentar, durante a Revolução Cognitiva. A partir dessa época, o
sapiens conseguiu usar seu grande cérebro para criar relações sociais
promissoras, fazer com que grandes grupos cooperassem em benefício de um bem
comum. Por exemplo, formar um paredão de caçadores e encurralar uma manada de
mamutes num desfiladeiro. Sua inteligência passou a ser a arma mais letal do
planeta.
7) Essa revolução surgiu a partir de um mecanismo simples e
inesperado: a imaginação simbólica. Conseguindo imaginar e comunicar conceitos
abstratos, o sapiens passou a tornar suas relações sociais mais complexas. Seus
grunhidos e gestos não serviam mais apenas para comunicar coisas objetivas,
como um predador se aproximando. Elas poderiam agora representar ideias como
justiça, prestígio, hierarquia, etc. A partir daí, ao invés de simplesmente
louvar o espírito de animais que traziam as caçadas, um sacerdote poderia
inventar um deus para explicar um fenômeno da natureza e convencer (ou chantagear)
os demais a obedecê-lo. Assim, os grupos, e até tribos inteiras, poderiam
cooperar em nome de uma ficção comum.
“Em consequência, desde a Revolução Cognitiva o Homo sapiens
tem sido capaz de revisar seu comportamento rapidamente de acordo com
necessidades em constante transformação. Isso abriu uma via expressa de
evolução cultural, contornando os engarrafamentos da evolução genética.
Acelerando por essa via expressa, o Homo sapiens logo ultrapassou todas as
outras espécies humanas em capacidade de cooperar.” (p.41)
Depois de migrar da África para o resto do mundo, por onde
passava, o sapiens transformava seu habitat. Ele acabou com a megafauna da
América e da Austrália em questão de alguns milênios.
Após a Revolução Agrícola, por volta de 12 mil anos atrás
(início das civilizações), o sapiens passou a trabalhar muito mais e a se
alimentar de forma mais precária. Enquanto um ser humano domesticado trabalhava
mais de dez horas por dia e se alimentava basicamente de trigo, um sapiens
selvagem, durante um período climático tranquilo, trabalhava não mais que três
horas por dia caçando ou colhendo alimentos na floresta. A cada dia ele caçava
e colhia alimentos diferentes, o que fazia com que sua dieta fosse variada e
balanceada. O resto do tempo ele passava descansando, divertindo-se e procriando.
E, claro, fazendo guerras.
No Brasil, por exemplo, os índios pré-cabrais viviam de
forma muita próxima a isso. Diante da natureza abundante, a qualidade de vida
de um americano selvagem em períodos entre guerras era excelente. Relatos dos
primeiros portugueses que chegavam ao Brasil no século XVI indicavam que os
indígenas mais velhos chegavam a viver em torno de 120 anos. Ainda é possível
encontrar indígenas com quase 100 anos de idade em certas reservas. Enquanto
que, na Europa moderna da época, a expectativa de vida era de 40 anos (um
europeu levava vários meses para tomar banho ou trocar de roupa, enquanto os
indígenas banhavam-se todos os dias e não suportavam o cheiro dos primeiros
colonizadores).
Harari considera a Revolução Agrícola uma das maiores
fraudes da História. Embora tenha proporcionado ao ser humano uma evolução
cultural que o fez chegar às metrópoles e naves espaciais de hoje, custou a ele
um estilo de vida artificial que, em contraste com sua natureza biológica
(lembrem-se: nosso código genético é o mesmo há 200 mil anos) entra em um
conflito doloroso, que tem causado os mais diversos distúrbios psicológicos,
depressão e má qualidade de vida. Além disso, estamos condenando de forma cruel
o meio ambiente e todas as outras formas de vida. A civilização é só um ponto
de vista, argumenta Harari, que, de certo ângulo, parece maravilhosa, mas que
por outro lado está condenando a espécie.
“O estresse representado pela agricultura teve consequências
importantes. Foi a base dos sistemas políticos e sociais de grande escala.
Infelizmente, mesmo trabalhando duro, os camponeses quase nunca alcançaram a
segurança econômica futura que tanto ansiavam. Em toda a parte, brotaram
governantes e elites, vivendo do excedente dos camponeses e deixando-os com o
mínimo para a subsistência.” (p.110).
Harari desmancha até mesmo a ideia de que existem direitos
humanos intrínsecos:
“Os dois textos nos apresentam um dilema óbvio. Tanto o
Código de Hamurabi quanto a Declaração de Independência dos Estados Unidos
afirmam definir princípios universais e eternos de justiça, mas de acordo com
os norte-americanos todas as pessoas são iguais e conforme os babilônios as
pessoas são decididamente desiguais. Os norte-americanos diriam, é claro, que
eles estão certos e que Hamurabi está errado. Hamurabi, naturalmente,
retorquiria que ele está certo e que os norte-americanos estão errados. Na
verdade, ambos estão errados. Tanto Hamurabi quanto os pais fundadores dos
Estados Unidos imaginaram uma realidade governada por princípios universais e
imutáveis de justiça, como igualdade ou hierarquia. Mas o único lugar em que
tais princípios universais existem é na imaginação fértil dos sapiens e nos
mitos que eles inventam e contam uns aos outros. Esses princípios não têm nenhuma
validade objetiva.” (p.116).
E também o conceito de liberdade:
“E quais são as características que evoluíram nos humanos?
‘Vida’, certamente. Mas ‘liberdade’? Isso não existe na biologia. Assim como
igualdade, direitos e empresas de responsabilidade limitada, a liberdade é algo
que as pessoas inventaram e que só existe em nossa imaginação. De uma
perspectiva biológica, não faz sentido dizer que os humanos em sociedades
democráticas são livres, ao passo que os humanos em sociedades ditatoriais não
o são. E quanto a ‘felicidade’? Até o momento as pesquisas biológicas foram
incapazes de propor uma definição clara de felicidade ou uma maneira de medi-la
objetivamente. A maioria dos estudos biológicos reconhece apenas a existência
de prazer, que é mais facilmente definido e medido. Portanto, ‘a vida, a
liberdade e a procura da felicidade’ deveria ser traduzido como ‘a vida e a
procura do prazer’.”(p.118).
Ele não pretende desfazer nem invalidar códigos morais como
religiões, ideologias ou crenças humanistas, apenas mostrar que são criações e
convenções, e não leis da natureza. No entanto, como convenções, essas crenças
são importantes, pois fazem parte de uma “ordem imaginada” que nos mantém
controlados como sociedade. Foi justamente esta atitude que permitiu ao Homo
sapiens evoluir.
“Os defensores da igualdade e dos direitos humanos talvez
fiquem escandalizados com essa linha de raciocínio. Sua reação provavelmente
será: ‘Nós sabemos que as pessoas não são iguais biologicamente! Mas se acreditarmos
que somos todos iguais em essência, isso nos permitirá criar uma sociedade
estável e próspera’. Eu não tenho nenhum argumento contra isso. É exatamente o
que quero dizer com ‘ordem imaginada’. Acreditamos em uma ordem em particular
não porque seja objetivamente verdadeira, mas porque acreditar nela nos permite
cooperar de maneira eficaz e construir uma sociedade melhor. Ordens imaginadas
não são conspirações malignas ou miragens inúteis. Ao contrário, são a única
forma pela qual grandes números de seres humanos podem cooperar efetivamente.”
(p.118)
Há uma porção de outros temas tratamos por Harari que
poderíamos discutir aqui durante dias e dias. Muitas dessas questões (por
exemplo, o rumo com que o homem está dando à tecnologia) são discutidos no livro
seguinte do autor, Homo Deus. O
melhor é você ler. Ninguém passará ileso pela leitura de Sapiens. E é bom que assim seja.
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