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terça-feira, julho 17, 2018

O Pai do Amigo da Onça




Desde que fez o primeiro rabisco de seu personagem, Péricles conviveu com o Amigo da Onça como se este fosse sua sombra. Entre brincadeiras e depressões, o humorista mais popular do país penou na vida apesar do sucesso. E acabou abandonando-a de maneira trágica.

Por Jota

O primeiro dia da vida de Péricles de Andrade Maranhão quase cai no dia 13 de agosto. O Amigo da Onça adoraria a data, bom motivo para uma piada. Mas Péricles deu sorte a acabou nascendo um dia depois, no dia 14 de agosto de 1924, no Recife. Passou sua infância no bairro do Espinheiro e por lá deve ter feito tudo o que um menino tinha direito naqueles tempos: armar arapucas, subir em árvores, quebrar vidraças, esfolar os joelhos. E também desenhar, é claro. Foi na revista do Colégio Marista, onde estudava, que publicou seus primeiros desenhos.

Mas a primeira notícia sobre Péricles quem deu foi o jornalista Anibal Fernandes. No Diário de Pernambuco de 5 de novembro de 1940 ele escreve sobre “um garoto que entrou pela redação com um rolo de desenhos”. Anibal termina o texto com um recado profético: “Guardem bem seu nome. Péricles Maranhão. Quem viver verá se ali não está um artista, sobretudo se tiver ambiente para estudar e produzir.”

Foi o mesmo jornalista quem ajudou Péricles a encontrar o tal ambiente. Dois anos depois, com muita coragem e uma carta de Anibal Fernandes recomendando seu nome a Leão Gondim de Oliveira, diretor de O Cruzeiro, o jovem Péricles percorreu o longo trajeto de Recife a então capital federal.


Péricles, de gravata, e logo atrás seu amigo Carlos Estevão, de óculos

No Rio de Janeiro, apresentou-se na redação da revista. Naquele Brasil ainda rural, mas já ensaiando seus primeiros passos rumo a industrialização, o veículo de comunicação mais importante era O Cruzeiro. Seu poderio era comparável ao da TV Globo hoje em dia.

Péricles começou na revista no dia 6 de junho de 1942. Era o mais novo em uma equipe de jornalistas que empolgava o país com suas reportagens, fotografias e humorismo. Neste mesmo ano publica em O Guri e no Diário da Noite as encrencas de Oliveira, O Trapalhão, seu primeiro personagem. Nesta tira já aparecem as figuras pitorescas do Rio que marcaram seu trabalho.

“Para você ver que desde o início ele já estava atento a estes tipos”, ressalta o humorista Fortuna, que nesta época publicava seus primeiros trabalhos na imprensa. “O negro Laurindo, que acompanhava o personagem principal, por exemplo, era um malandro de camisa listrada.”

Em 1943, alguém teve a ideia de criar um personagem fixo para a revista. Já tinham até o nome, adaptado de uma anedota que fazia muito sucesso na época:

Dois caçadores conversam em seu acampamento.

– O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça aparecesse na sua frente?

– Ora, dava um tiro nela.

– Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?

– Bom, então matava ela com meu facão.

– E se você estivesse sem facão?

– Apanhava um pedaço de pau.

– E se não tivesse nenhum pedaço de pau?

– Subiria na árvore mais próxima!

– E se não tivesse nenhuma árvore?

– Saía correndo.

– E se você estivesse paralisado pelo medo?

Então o outro, já irritado, retruca finalmente.

– Mas afinal de contas, porra, você é meu amigo ou amigo da onça?...


O personagem era o Amigo da Onça. Precisavam de alguém para traçar seu perfil e desenhar as piadas. “Convidaram o Augusto Rodrigues, que fazia o maior sucesso na época. Não sei por qual motivo o Augusto recusou”, recorda Fortuna. Renovador da charge política brasileira, Augusto Rodrigues realmente declinou do convite de entrar na dança com o Amigo da Onça. “Ah, eu não faria um tipo que já veio criado”, ele conta em seu ateliê no Largo do Boticário, no Rio de Janeiro. Hoje, Augusto Rodrigues é um pintor respeitado.

Lembrava-se pouco de Péricles, que depois foi convidado a desenhar o Amigo da Onça. “Era bem alto, sei que bebia num bar perto do Lido.” Exagero do baixinho Augusto Rodrigues. Péricles tinha 1,75m e andava sempre bem vestido, de paletó de linho e bigode bem aparado. Parecido com a cria. Mas era por ali mesmo, próximo à sua casa, os locais que frequentava. “Convivi pouco com ele”, continua Augusto Rodrigues. “Péricles e Carlos Estevão eram tipos mais simplórios, ligados no emprego. Não tinham inquietação artística. Intelectualmente suas preocupações não tinham interesse pra mim”. Carlos Estevão foi o desenhista que, após a morte de Péricles, continuou fazendo o Amigo da Onça.


No início da década de 40, a imprensa argentina influenciava bastante o jornalismo brasileiro, principalmente ao diretor de O Cruzeiro. Foi de páginas portenhas que ele garimpou a ideia do Amigo da Onça. Outro menino-prodígio trabalhava em O Cruzeiro e lembra muito bem de tudo. Ziraldo Alves Pinto chegou na revista “por cima”, como ele diz. Sua carta de recomendação era endereçada à mulher de Leão Gondim. E basta folhear amareladas coleções da revista para ver em primeiro lugar no expediente o nome de Amélia Whitaker Gondim de Oliveira.

Além de desenhar na revista, Ziraldo foi também seu Relações Públicas. E tinha ótimas relações com a diretoria. “O Leão era apaixonado pelas coisas argentinas”, lembra Ziraldo. “Principalmente pelo desenhista Divito. Ele pegou os recortes de Las Chicas del Divito e falou para o Alceu: toma, faz igual. Então ele fez As Garotas do Alceu. Já o Amigo da Onça foi tirado de El Inimigo del Hombre, também do Divito”.

Ziraldo entrou “por cima” e entrou com tudo. Iniciou uma reformulação gráfica que lhe “criou problemas com todo mundo”. Inclusive com Péricles, que fazia a página de maior sucesso da revista e por isso não engolia o fato daquele mineiro extrovertido chegado de Caratinga já ter até telefone em sua mesa, coisa que ele, Péricles, não tinha. E além da revista, Ziraldo queria reformular também o Amigo da Onça. “Eu falava para o Péricles: vamos mudar um pouco o desenho. Está muito quadrado. E dava pra ele a Playboy, a Look, Paris-Match, revistas que traziam os cartunistas avançados da época. Ele levava pra casa para estudar. Depois jogava as revistas em cima da minha mesa dizendo: o povão não quer isso!”


E neste ponto não havia dúvidas. De povão, o autor do Amigo da Onça entendia. Desde que foi publicado pela primeira vez no dia 23 de outubro de 1943 até o último desenho em 3 de fevereiro de 1962, seu personagem teve 18 anos de vida bem vivida. Gozou de um sucesso que não teve paralelo na história da imprensa brasileira. E nem terá, pois os tempos mudaram e já não se fazem mais sucessos como antigamente.

Péricles teve que se virar para criar mais de mil situações propícias para o Amigo da Onça sacanear alguém. E para isso fazia qualquer coisa, chegando a desenhar o personagem sacaneando o próprio autor. Ou até o leitor. O Amigo da Onça foi chefe e subalterno, delegado de polícia e preso, náufrago e comandante, retirante nordestino e gaúcho, criança e adulto. Tudo para contentar os milhares de leitores que corriam ávidos para a sua página quando O Cruzeiro lhes chegava às mãos. Depois de rir da piada, ainda colavam o desenho de Péricles na parede pra todo mundo ver. E que esforço para agradar a plateia. O personagem chegou mesmo a se travestir com biquíni e cair nos braços de um marmanjo em um baile de carnaval, só para, no momento “ai, ai, ai, está chegando a hora”, revelar-se o Amigo da Onça.


Mas a caracterização mais usada foi a de... Amigo da Onça. Na favela, em reuniões elegantes do café society ou até mesmo em plena praia, lá está ele com seu indefectível paletó de linho branco, calças pretas e gravata borboleta. Às vezes, para esnobar, está fumando de piteira. O mesmo olhar cínico na bem-equilibrada mistura de malandro da Lapa e grã-fino da vida mundana do Rio de Janeiro. Também deu conselhos a Getúlio Vargas e dedurou um subordinado do Marechal Lott que estava mais para Jânio. Porém, metia-se pouco com política. Insinuava-se com mais desenvoltura na crítica de costumes. Mesmo que tivesse que apelar para o racismo ou o preconceito.

Péricles era o contrário de tudo isso. É sempre lembrado como um homem de bom caráter, excessivamente tímido, que não soube aproveitar o imenso sucesso que teve. Angélica Braga Guimarães, com quem se casou em setembro de 1949, separando-se seis anos depois, recorda o ex-marido como um brincalhão, que alegrava qualquer ambiente em que chegava com suas piadas e brincadeiras.

Ela trata com carinho a memória dele. “Olha ele aqui quando ganhou seus primeiros quinhentos cruzeiros. Não está bonitinho?”, fala de Péricles, no Rio de Janeiro, onde mora até hoje. Apontava uma foto dele ainda menino. A chuva que caía naquela tarde parecia penetrar em seus olhos enquanto mostrava fotos, destacava trechos de jornais antigos e falava dos desenhos originais que mantém consigo em seu pequeno museu de ternura e carinho.


O lado brincalhão do humorista também aflorava quando ele ia à redação entregar seus trabalhos. Preferia desenhar em casa. Às vezes deixava na redação de O Cruzeiro até quatro desenhos adiantados e demorava a aparecer por lá. Algumas raras ocasiões subia até o restaurante da empresa. O organizador do tal restaurante só podia estar querendo acirrar as contradições sociais, pois o salão era dividido entre os funcionários mais humildes e o pessoal da diretoria. A precária divisão era feita com vasos de plantas.

O problema é que a cozinha ficava do lado do pessoal do bandejão. Para chegar até a mesa da diretoria os pratos tinham que passar entre as mesas dos funcionários. Era aquele desfile de assados e saladas magníficas entre o pessoal do bandejão que comia seu arroz com feijão e alguma mistura. “Eu sentava com a diretoria”, conta Ziraldo. “Às vezes o Péricles aparecia por lá. Era um populista! Sentava com o pessoal do bandejão e ficava fazendo piada sobre a gente!” Uma situação digna de seu Amigo da Onça. Se o personagem tivesse caráter, é claro.


Mas o brincalhão Péricles também tinha seus momentos de tristeza. E foi num desses dias em que a tristeza bateu mais fundo, que o humorista resolveu escrever a palavra fim. Deixou uma dúvida para os amigos e os fãs: qual o motivo que levou uma das pessoas mais famosas do país a deixar seus leitores com um nó na garganta? Muitos correram atrás de explicações poéticas, fazendo alusões à sua convivência diária, ou pelo menos semanal, com seu herói sem nenhum caráter.


A revista O Cruzeiro tinha entre seus temas preferidos reportagens sensacionalistas sobre xifópagos, pessoas que nascem ligadas fisicamente por causa de problemas de gestação. Por ironia do destino, ou sei lá de que, essa era mais ou menos a situação de Péricles e o Amigo da Onça. Para os leitores, era como se eles tivessem o corpo grudado um no outro. Uma inevitável confusão que aborrecia o autor.

“Ele não tolerava isso”, conta sua ex-mulher. Mas é improvável que fosse se matar por uma coisa dessas. Talvez a data de sua morte seja um dado mais importante. “Seu suicídio foi próximo a uma dessas datas de grande chantagem emocional”, analisa Fortuna. “Hoje em dia não é tanto. Mas na época era uma barra. No Natal, por exemplo, me dava vontade de partir para uma sonoterapia e só acordar quando aquela data tivesse passado.”


Chegou o ano de 1962. Botafogo e Santos se enfrentavam no Marcanã colocando frente a frente Pelé e Garrincha, duas estrelas que iriam brilhar neste ano de Copa do Mundo. Elas usavam Pond’s e o país estava mergulhado em uma de suas piores crises políticas. Nas páginas da primeira O Cruzeiro do ano, que trouxe na capa a mocinha Tereza Rachel, as garotas do Alceu já usavam biquíni e dançavam o twist. Em anúncios de página inteira, a Caterpillar oferecia seus tratores para “abrir estradas pelo país”. A crise política, resultado dos atos de Jânio Quadros, um dos maiores “amigos da onça” deste país, misturava Jango, Amaral Peixoto, Juscelino Kubitscheck e Tancredo Neves.


Na página 58 e em seu editorial, a revista dava a última notícia sobre Péricles de Andrade Maranhão, seu mais popular humorista. Ele havia aberto o gás no último dia do ano anterior. Péricles não ficou para ver o bode que deu.

(texto publicado na revista “O Amigo da Onça”, da editora Busca Vida, em 1987, com edição, planejamento visual e capa de Jota)

Para ler o que Millôr Fernandes escreveu sobre Péricles, clique aqui.












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