Desde que fez o
primeiro rabisco de seu personagem, Péricles conviveu com o Amigo da Onça como
se este fosse sua sombra. Entre brincadeiras e depressões, o humorista mais
popular do país penou na vida apesar do sucesso. E acabou abandonando-a de
maneira trágica.
Por Jota
O primeiro dia da vida de Péricles de Andrade Maranhão quase
cai no dia 13 de agosto. O Amigo da Onça adoraria a data, bom motivo para uma
piada. Mas Péricles deu sorte a acabou nascendo um dia depois, no dia 14 de
agosto de 1924, no Recife. Passou sua infância no bairro do Espinheiro e por lá
deve ter feito tudo o que um menino tinha direito naqueles tempos: armar
arapucas, subir em árvores, quebrar vidraças, esfolar os joelhos. E também
desenhar, é claro. Foi na revista do Colégio Marista, onde estudava, que
publicou seus primeiros desenhos.
Mas a primeira notícia sobre Péricles quem deu foi o
jornalista Anibal Fernandes. No Diário de
Pernambuco de 5 de novembro de 1940 ele escreve sobre “um garoto que entrou
pela redação com um rolo de desenhos”. Anibal termina o texto com um recado
profético: “Guardem bem seu nome. Péricles Maranhão. Quem viver verá se ali não
está um artista, sobretudo se tiver ambiente para estudar e produzir.”
Foi o mesmo jornalista quem ajudou Péricles a encontrar o
tal ambiente. Dois anos depois, com muita coragem e uma carta de Anibal
Fernandes recomendando seu nome a Leão Gondim de Oliveira, diretor de O Cruzeiro, o jovem Péricles percorreu o
longo trajeto de Recife a então capital federal.
Péricles, de gravata, e logo atrás seu amigo Carlos Estevão, de óculos
No Rio de Janeiro, apresentou-se na redação da revista.
Naquele Brasil ainda rural, mas já ensaiando seus primeiros passos rumo a
industrialização, o veículo de comunicação mais importante era O Cruzeiro. Seu poderio era comparável
ao da TV Globo hoje em dia.
Péricles começou na revista no dia 6 de junho de 1942. Era o
mais novo em uma equipe de jornalistas que empolgava o país com suas
reportagens, fotografias e humorismo. Neste mesmo ano publica em O Guri e no Diário da Noite as encrencas de Oliveira, O Trapalhão, seu primeiro
personagem. Nesta tira já aparecem as figuras pitorescas do Rio que marcaram
seu trabalho.
“Para você ver que desde o início ele já estava atento a
estes tipos”, ressalta o humorista Fortuna, que nesta época publicava seus primeiros
trabalhos na imprensa. “O negro Laurindo, que acompanhava o personagem
principal, por exemplo, era um malandro de camisa listrada.”
Em 1943, alguém teve a ideia de criar um personagem fixo
para a revista. Já tinham até o nome, adaptado de uma anedota que fazia muito
sucesso na época:
Dois caçadores conversam em seu acampamento.
– O que você faria se estivesse agora na selva e uma onça
aparecesse na sua frente?
– Ora, dava um tiro nela.
– Mas se você não tivesse nenhuma arma de fogo?
– Bom, então matava ela com meu facão.
– E se você estivesse sem facão?
– Apanhava um pedaço de pau.
– E se não tivesse nenhum pedaço de pau?
– Subiria na árvore mais próxima!
– E se não tivesse nenhuma árvore?
– Saía correndo.
– E se você estivesse paralisado pelo medo?
Então o outro, já irritado, retruca finalmente.
– Mas afinal de contas, porra, você é meu amigo ou amigo da
onça?...
O personagem era o Amigo da Onça. Precisavam de alguém para
traçar seu perfil e desenhar as piadas. “Convidaram o Augusto Rodrigues, que
fazia o maior sucesso na época. Não sei por qual motivo o Augusto recusou”,
recorda Fortuna. Renovador da charge política brasileira, Augusto Rodrigues
realmente declinou do convite de entrar na dança com o Amigo da Onça. “Ah, eu
não faria um tipo que já veio criado”, ele conta em seu ateliê no Largo do
Boticário, no Rio de Janeiro. Hoje, Augusto Rodrigues é um pintor respeitado.
Lembrava-se pouco de Péricles, que depois foi convidado a
desenhar o Amigo da Onça. “Era bem alto, sei que bebia num bar perto do Lido.”
Exagero do baixinho Augusto Rodrigues. Péricles tinha 1,75m e andava sempre bem
vestido, de paletó de linho e bigode bem aparado. Parecido com a cria. Mas era
por ali mesmo, próximo à sua casa, os locais que frequentava. “Convivi pouco
com ele”, continua Augusto Rodrigues. “Péricles e Carlos Estevão eram tipos
mais simplórios, ligados no emprego. Não tinham inquietação artística.
Intelectualmente suas preocupações não tinham interesse pra mim”. Carlos
Estevão foi o desenhista que, após a morte de Péricles, continuou fazendo o
Amigo da Onça.
No início da década de 40, a imprensa argentina influenciava
bastante o jornalismo brasileiro, principalmente ao diretor de O Cruzeiro. Foi
de páginas portenhas que ele garimpou a ideia do Amigo da Onça. Outro
menino-prodígio trabalhava em O Cruzeiro e lembra muito bem de tudo. Ziraldo
Alves Pinto chegou na revista “por cima”, como ele diz. Sua carta de
recomendação era endereçada à mulher de Leão Gondim. E basta folhear amareladas
coleções da revista para ver em primeiro lugar no expediente o nome de Amélia
Whitaker Gondim de Oliveira.
Além de desenhar na revista, Ziraldo foi também seu Relações
Públicas. E tinha ótimas relações com a diretoria. “O Leão era apaixonado pelas
coisas argentinas”, lembra Ziraldo. “Principalmente pelo desenhista Divito. Ele
pegou os recortes de Las Chicas del Divito e falou para o Alceu: toma, faz
igual. Então ele fez As Garotas do Alceu. Já o Amigo da Onça foi tirado de El
Inimigo del Hombre, também do Divito”.
Ziraldo entrou “por cima” e entrou com tudo. Iniciou uma
reformulação gráfica que lhe “criou problemas com todo mundo”. Inclusive com
Péricles, que fazia a página de maior sucesso da revista e por isso não engolia
o fato daquele mineiro extrovertido chegado de Caratinga já ter até telefone em
sua mesa, coisa que ele, Péricles, não tinha. E além da revista, Ziraldo queria
reformular também o Amigo da Onça. “Eu falava para o Péricles: vamos mudar um
pouco o desenho. Está muito quadrado. E dava pra ele a Playboy, a Look,
Paris-Match, revistas que traziam os cartunistas avançados da época. Ele levava
pra casa para estudar. Depois jogava as revistas em cima da minha mesa dizendo:
o povão não quer isso!”
E neste ponto não havia dúvidas. De povão, o autor do Amigo
da Onça entendia. Desde que foi publicado pela primeira vez no dia 23 de
outubro de 1943 até o último desenho em 3 de fevereiro de 1962, seu personagem
teve 18 anos de vida bem vivida. Gozou de um sucesso que não teve paralelo na
história da imprensa brasileira. E nem terá, pois os tempos mudaram e já não se
fazem mais sucessos como antigamente.
Péricles teve que se virar para criar mais de mil situações
propícias para o Amigo da Onça sacanear alguém. E para isso fazia qualquer
coisa, chegando a desenhar o personagem sacaneando o próprio autor. Ou até o
leitor. O Amigo da Onça foi chefe e subalterno, delegado de polícia e preso,
náufrago e comandante, retirante nordestino e gaúcho, criança e adulto. Tudo
para contentar os milhares de leitores que corriam ávidos para a sua página
quando O Cruzeiro lhes chegava às mãos. Depois de rir da piada, ainda colavam o
desenho de Péricles na parede pra todo mundo ver. E que esforço para agradar a
plateia. O personagem chegou mesmo a se travestir com biquíni e cair nos braços
de um marmanjo em um baile de carnaval, só para, no momento “ai, ai, ai, está
chegando a hora”, revelar-se o Amigo da Onça.
Mas a caracterização mais usada foi a de... Amigo da Onça.
Na favela, em reuniões elegantes do café society ou até mesmo em plena praia,
lá está ele com seu indefectível paletó de linho branco, calças pretas e
gravata borboleta. Às vezes, para esnobar, está fumando de piteira. O mesmo
olhar cínico na bem-equilibrada mistura de malandro da Lapa e grã-fino da vida
mundana do Rio de Janeiro. Também deu conselhos a Getúlio Vargas e dedurou um
subordinado do Marechal Lott que estava mais para Jânio. Porém, metia-se pouco
com política. Insinuava-se com mais desenvoltura na crítica de costumes. Mesmo
que tivesse que apelar para o racismo ou o preconceito.
Péricles era o contrário de tudo isso. É sempre lembrado
como um homem de bom caráter, excessivamente tímido, que não soube aproveitar o
imenso sucesso que teve. Angélica Braga Guimarães, com quem se casou em
setembro de 1949, separando-se seis anos depois, recorda o ex-marido como um
brincalhão, que alegrava qualquer ambiente em que chegava com suas piadas e
brincadeiras.
Ela trata com carinho a memória dele. “Olha ele aqui quando
ganhou seus primeiros quinhentos cruzeiros. Não está bonitinho?”, fala de
Péricles, no Rio de Janeiro, onde mora até hoje. Apontava uma foto dele ainda
menino. A chuva que caía naquela tarde parecia penetrar em seus olhos enquanto
mostrava fotos, destacava trechos de jornais antigos e falava dos desenhos
originais que mantém consigo em seu pequeno museu de ternura e carinho.
O lado brincalhão do humorista também aflorava quando ele ia
à redação entregar seus trabalhos. Preferia desenhar em casa. Às vezes deixava
na redação de O Cruzeiro até quatro desenhos adiantados e demorava a aparecer
por lá. Algumas raras ocasiões subia até o restaurante da empresa. O
organizador do tal restaurante só podia estar querendo acirrar as contradições
sociais, pois o salão era dividido entre os funcionários mais humildes e o
pessoal da diretoria. A precária divisão era feita com vasos de plantas.
O problema é que a cozinha ficava do lado do pessoal do
bandejão. Para chegar até a mesa da diretoria os pratos tinham que passar entre
as mesas dos funcionários. Era aquele desfile de assados e saladas magníficas
entre o pessoal do bandejão que comia seu arroz com feijão e alguma mistura.
“Eu sentava com a diretoria”, conta Ziraldo. “Às vezes o Péricles aparecia por
lá. Era um populista! Sentava com o pessoal do bandejão e ficava fazendo piada
sobre a gente!” Uma situação digna de seu Amigo da Onça. Se o personagem
tivesse caráter, é claro.
Mas o brincalhão Péricles também tinha seus momentos de
tristeza. E foi num desses dias em que a tristeza bateu mais fundo, que o
humorista resolveu escrever a palavra fim. Deixou uma dúvida para os amigos e
os fãs: qual o motivo que levou uma das pessoas mais famosas do país a deixar
seus leitores com um nó na garganta? Muitos correram atrás de explicações
poéticas, fazendo alusões à sua convivência diária, ou pelo menos semanal, com
seu herói sem nenhum caráter.
A revista O Cruzeiro tinha entre seus temas preferidos
reportagens sensacionalistas sobre xifópagos, pessoas que nascem ligadas
fisicamente por causa de problemas de gestação. Por ironia do destino, ou sei
lá de que, essa era mais ou menos a situação de Péricles e o Amigo da Onça.
Para os leitores, era como se eles tivessem o corpo grudado um no outro. Uma
inevitável confusão que aborrecia o autor.
“Ele não tolerava isso”, conta sua ex-mulher. Mas é
improvável que fosse se matar por uma coisa dessas. Talvez a data de sua morte
seja um dado mais importante. “Seu suicídio foi próximo a uma dessas datas de
grande chantagem emocional”, analisa Fortuna. “Hoje em dia não é tanto. Mas na
época era uma barra. No Natal, por exemplo, me dava vontade de partir para uma
sonoterapia e só acordar quando aquela data tivesse passado.”
Chegou o ano de 1962. Botafogo e Santos se enfrentavam no
Marcanã colocando frente a frente Pelé e Garrincha, duas estrelas que iriam
brilhar neste ano de Copa do Mundo. Elas usavam Pond’s e o país estava
mergulhado em uma de suas piores crises políticas. Nas páginas da primeira O
Cruzeiro do ano, que trouxe na capa a mocinha Tereza Rachel, as garotas do
Alceu já usavam biquíni e dançavam o twist. Em anúncios de página inteira, a
Caterpillar oferecia seus tratores para “abrir estradas pelo país”. A crise
política, resultado dos atos de Jânio Quadros, um dos maiores “amigos da onça”
deste país, misturava Jango, Amaral Peixoto, Juscelino Kubitscheck e Tancredo
Neves.
Na página 58 e em seu editorial, a revista dava a última
notícia sobre Péricles de Andrade Maranhão, seu mais popular humorista. Ele
havia aberto o gás no último dia do ano anterior. Péricles não ficou para ver o
bode que deu.
(texto publicado na revista “O Amigo da Onça”, da editora
Busca Vida, em 1987, com edição, planejamento visual e capa de Jota)
Para ler o que Millôr Fernandes escreveu sobre Péricles, clique aqui.
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