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terça-feira, julho 31, 2018

Recordando a velha Manaus




Por Felix Valois
Plantada ali na esquina das ruas Luís Antony e Alexandre Amorim, em Aparecida, a Casa Dias era talvez o último remanescente do comércio como ele existia nos meados do século passado, muito antes da Zona Franca. Vendia de tudo, de ferragens a alimentos, indo do ferro de engomar a carvão ao leite Nestogeno. Era ali que o professor Valois fazia as compras criteriosamente listadas por dona Lucíola em um caderno, no qual o balconista anotava os preços a serem honrados no final do mês. 
Não se sabia o que era cartão de crédito e o uso do cheque era restrito a uns poucos capitalistas que conseguiam manter contas no Banco do Brasil ou no Banco da Borracha, como era conhecido o Banco da Amazônia. Outros particulares corriam por fora, como o Banco Ultramarino, de capital acentuadamente português, e o Loyd Bank, herança remota dos tempos em que os ingleses aqui mandavam e desmandavam, até levarem nossa seringueira para a Ásia e abandonarem o porto de lenha com seus bondes e o cais flutuante. 
Uma tarde dessas passei em frente à Casa Dias. Já não é a mesma, atingida, creio, por essa coisa inexorável que, com maior ou menor exatidão, chamamos de progresso. A mixórdia de produtos parece ter deixado de existir e são eles exibidos com a regularidade monótona dos supermercados, a forma dinâmica do comércio nos dias atuais. Fazer o quê? Se a mola do sistema é o lucro e se este depende da superação da concorrência, não seria sensato esperar que a estagnação acabasse por inviabilizar o empreendimento. Mas que senti saudades, lá isso senti, não posso negar. 
Um saudosismo que se basta a si mesmo, sem necessidade de explicações profundas e complicadas, por isso que decorre apenas dos tempos de infância, vividos numa rua Leonardo Malcher de terra batida e esburacada, à ilharga do igarapé de São Raimundo, ainda sem poluição e sem programas megalomaníacos que lhe vão implicar no assoreamento. 
Antes da Casa Dias se foi para sempre A Renascença, sua irmã gêmea, esta fincada na rua Joaquim Nabuco, entre a avenida Sete de Setembro e a rua Quintino Bocaiúva. Acrescento, para os detalhistas, que era bem próximo ao Canto do Quintela, mas na certeza de que os mais jovens hão de imaginar que fiz uso de alguma porção da “cannabis sativa” a ponto de resolver escrever em aramaico. Não é nada disso, juventude. O tal Canto do Quintela nada mais era que o cruzamento da avenida Sete de Setembro com a Joaquim Nabuco, onde, dou de colher de chá, ficava o edifício Sombra. 
E assim me pilho a falar de coisas da Manaus que sucedeu à “belle époque”. E já que estou a fazê-lo (claro que sem a autoridade de Etelvina Garcia ou Robério Braga), por que não perguntar que fim levou a Curva da Morte? Ficava na Cachoeirinha e dela sempre me falou com precisão e melancolia o meu irmão Alfredo Cabral, ele próprio criado e vivido no bairro, na sua casa tosca em que a singela frente de alvenaria escondia as dependências de madeira e onde dona Cândida lutava com furor de guerreira pela sobrevivência da família. Também era daquelas paragens a Casa Amarela, tudo marcado apenas na memória das pessoas, uma vez que os “google maps” e os GPS não eram cogitados nem nas mais ousadas historietas de ficção científica. 
Outra lembrança que vai soar como adivinhação para os moços: o “ferro de engomar”, no Alto Nazaré. O que era isso e onde ficava? Sigam pela rua Silva Ramos até o ponto em que ela encontra a Joaquim Nabuco, nas proximidades do Colégio Auxiliadora, e vão ver que é possível perceber que o formato mesmo do local é o próprio ferro, mas tenho que confessar minha completa ignorância quanto à segunda denominação, já que nunca soube, nem procurei saber, a razão do nome “Nazaré”. 
Vamos para o centro. Na avenida Eduardo Ribeiro, sem camelôs, como hoje felizmente voltou a ser, ficavam o Odeon e o Avenida. Eram os dois cinemas mais chiques da cidade, sendo que o primeiro teve o privilégio de inaugurar o sistema de ar refrigerado, o que era uma novidade monstruosa no calor da província. Próximo a eles ficava o Café da Paz, lugar onde a macharada se reunia para jogar sinuca e bilhar, ao mesmo tempo em que aumentava as estatísticas de consumo das cervejas XPTO e Brahma. Tudo a um passo do Canto do Fuxico, no cruzamento da Eduardo Ribeiro com a Henrique Martins, lugar onde todos falavam da vida de todos no entremeio de discussões supostamente intelectualizadas. 
E é impossível deixar de falar no Bar Americano e no Bar Avenida, nas esquinas da mesma Eduardo Ribeiro com a Sete de Setembro e a Saldanha Marinho, pontos da boemia mais requintada da Cidade Sorriso. Isso sem falar na Pensão Maranhense e no Restaurante Central, pioneiros na arte de servir comida. Foi-se tudo. Só as recordações ficaram. Mas são elas tão fortes que, mesmo tendo presenciado e vivido a inchação da cidade, deixaram para sempre a marca do amor por este pedaço de terra chamado Manaus. Tórrida, cabocla, modesta, és a Manaus dos meus amores. Te amo mesmo.

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