Por Felix Valois
Plantada ali na esquina das ruas Luís Antony e Alexandre
Amorim, em Aparecida, a Casa Dias era talvez o último remanescente do comércio
como ele existia nos meados do século passado, muito antes da Zona Franca. Vendia
de tudo, de ferragens a alimentos, indo do ferro de engomar a carvão ao leite
Nestogeno. Era ali que o professor Valois fazia as compras criteriosamente
listadas por dona Lucíola em um caderno, no qual o balconista anotava os preços
a serem honrados no final do mês.
Não se sabia o que era cartão de crédito e o uso do cheque
era restrito a uns poucos capitalistas que conseguiam manter contas no Banco do
Brasil ou no Banco da Borracha, como era conhecido o Banco da Amazônia. Outros
particulares corriam por fora, como o Banco Ultramarino, de capital
acentuadamente português, e o Loyd Bank, herança remota dos tempos em que os
ingleses aqui mandavam e desmandavam, até levarem nossa seringueira para a Ásia
e abandonarem o porto de lenha com seus bondes e o cais flutuante.
Uma tarde dessas passei em frente à Casa Dias. Já não é a
mesma, atingida, creio, por essa coisa inexorável que, com maior ou menor
exatidão, chamamos de progresso. A mixórdia de produtos parece ter deixado de
existir e são eles exibidos com a regularidade monótona dos supermercados, a
forma dinâmica do comércio nos dias atuais. Fazer o quê? Se a mola do sistema é
o lucro e se este depende da superação da concorrência, não seria sensato
esperar que a estagnação acabasse por inviabilizar o empreendimento. Mas que
senti saudades, lá isso senti, não posso negar.
Um saudosismo que se basta a si mesmo, sem necessidade de
explicações profundas e complicadas, por isso que decorre apenas dos tempos de
infância, vividos numa rua Leonardo Malcher de terra batida e esburacada, à
ilharga do igarapé de São Raimundo, ainda sem poluição e sem programas
megalomaníacos que lhe vão implicar no assoreamento.
Antes da Casa Dias se foi para sempre A Renascença, sua irmã
gêmea, esta fincada na rua Joaquim Nabuco, entre a avenida Sete de Setembro e a
rua Quintino Bocaiúva. Acrescento, para os detalhistas, que era bem próximo ao
Canto do Quintela, mas na certeza de que os mais jovens hão de imaginar que fiz
uso de alguma porção da “cannabis sativa” a ponto de resolver escrever em
aramaico. Não é nada disso, juventude. O tal Canto do Quintela nada mais era
que o cruzamento da avenida Sete de Setembro com a Joaquim Nabuco, onde, dou de
colher de chá, ficava o edifício Sombra.
E assim me pilho a falar de coisas da Manaus que sucedeu à
“belle époque”. E já que estou a fazê-lo (claro que sem a autoridade de
Etelvina Garcia ou Robério Braga), por que não perguntar que fim levou a Curva
da Morte? Ficava na Cachoeirinha e dela sempre me falou com precisão e
melancolia o meu irmão Alfredo Cabral, ele próprio criado e vivido no bairro,
na sua casa tosca em que a singela frente de alvenaria escondia as dependências
de madeira e onde dona Cândida lutava com furor de guerreira pela sobrevivência
da família. Também era daquelas paragens a Casa Amarela, tudo marcado apenas na
memória das pessoas, uma vez que os “google maps” e os GPS não eram cogitados
nem nas mais ousadas historietas de ficção científica.
Outra lembrança que vai soar como adivinhação para os moços:
o “ferro de engomar”, no Alto Nazaré. O que era isso e onde ficava? Sigam pela
rua Silva Ramos até o ponto em que ela encontra a Joaquim Nabuco, nas
proximidades do Colégio Auxiliadora, e vão ver que é possível perceber que o
formato mesmo do local é o próprio ferro, mas tenho que confessar minha
completa ignorância quanto à segunda denominação, já que nunca soube, nem
procurei saber, a razão do nome “Nazaré”.
Vamos para o centro. Na avenida Eduardo Ribeiro, sem
camelôs, como hoje felizmente voltou a ser, ficavam o Odeon e o Avenida. Eram
os dois cinemas mais chiques da cidade, sendo que o primeiro teve o privilégio
de inaugurar o sistema de ar refrigerado, o que era uma novidade monstruosa no
calor da província. Próximo a eles ficava o Café da Paz, lugar onde a macharada
se reunia para jogar sinuca e bilhar, ao mesmo tempo em que aumentava as
estatísticas de consumo das cervejas XPTO e Brahma. Tudo a um passo do Canto do
Fuxico, no cruzamento da Eduardo Ribeiro com a Henrique Martins, lugar onde
todos falavam da vida de todos no entremeio de discussões supostamente
intelectualizadas.
E é impossível deixar de falar no Bar Americano e no Bar
Avenida, nas esquinas da mesma Eduardo Ribeiro com a Sete de Setembro e a
Saldanha Marinho, pontos da boemia mais requintada da Cidade Sorriso. Isso sem
falar na Pensão Maranhense e no Restaurante Central, pioneiros na arte de
servir comida. Foi-se tudo. Só as recordações ficaram. Mas são elas tão fortes
que, mesmo tendo presenciado e vivido a inchação da cidade, deixaram para
sempre a marca do amor por este pedaço de terra chamado Manaus. Tórrida,
cabocla, modesta, és a Manaus dos meus amores. Te amo mesmo.
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