Por Raphael Vidigal
“A gente pensa numa coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa… e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita.” (Mario Quintana)
É de um intelectual a constatação de que o amplo entendimento do duplo sentido no Brasil remonta ao período da escravidão. Em outros países essa cultura não seria tão difundida. De acordo com a tese se vivia naquela época sob uma realidade de mentira, em que a hipocrisia era dominante e as pessoas, escravos preponderantemente, tinham que recorrer a artimanhas para se comunicar e expressar com seus companheiros. Já que não podiam falar abertamente, a exclusão da liberdade lhes foi o mote para criar o “duplo sentido”.
Como muitas contribuições da cultura negra no país, o duplo sentido se estendeu para as artes, com especial alcance na música, principalmente a nordestina. Se o nome do intelectual se esqueceu, o sentido duplo permanece.
“Eu dei…”, de Ary Barroso, talvez tenha sido a marchinha de carnaval a iniciar a malícia do duplo sentido na cultura musical com acento tipicamente brasileiro. O que muito se explica em razão da conotação da festança, que tem nos deuses do vinho e do prazer, como Dionísio, todo o seu efeito e sentido.
“Eu dei…” composta por Ary Barroso e lançada por Carmen Miranda em 1937 já brincava com a relação sexual entre a expressão e as múltiplas possibilidades que ela desperta no imaginário. O desejo de cada um é que define o que foi afinal que deu Carmen, afinal ela não revela, e “adivinhe se é capaz…”.
Genival Lacerda é um dos ícones da música de duplo sentido no Brasil. Natural de Campina Grande, na Paraíba, criou um estilo caricatural, pautado nas vestes espalhafatosas e na famosa dança ‘sensual’ em que põe a mão na barriga, influenciando nomes da região que também fizeram sucesso no Brasil, como Reginaldo Rossi e principalmente o cantor Falcão.
Em 1975, esse gênero musical que sempre esteve ligado às camadas mais populares, viu nascer o forró “Severina Xique-Xique”, de Genival e João Gonçalves. Com uma letra mais óbvia do que na época das marchinhas, mas ainda ambígua, não se precisa de muito para imaginar o que é a butique da protagonista… “E ele tá de olho / É na butique dela…”.
Em 1980 o baiano Raul Seixas, que sempre gostou de mesclar o rock a ritmos brasileiros e idolatrava tanto Elvis Presley quanto Luiz Gonzaga, também entrou na onda do duplo sentido, bem à sua maneira. Criou com o parceiro Cláudio Roberto a história da cobra que observa a briga de duas aranhas, numa óbvia alusão aos apelidos dados aos órgãos sexuais no Brasil. E como era de costume fazia troça de qualquer movimento que se insurgia pretensiosamente, no caso, alas mais radicais do feminismo.
A relação lésbica é observada por Raul com curiosidade e desejo, ansioso por participar dessa festança da natureza. “Vem cá mulher, deixa de manha / Minha cobra quer comer sua aranha…”.
Sérgio Reis começou a carreira cantando rock na Jovem Guarda, e teve êxito com a música “Coração de Papel”, de sua autoria, mas fez mesmo sucesso foi como cantor sertanejo. Em 1983, já com uma longa estrada percorrida, lançou a canção da dupla Moraezinho e Auri Silvestre, “Panela Velha”.
O sucesso foi tão grande que mesmo quem não a conhece, se é que isso ainda é possível, é capaz de cantar o refrão, que impregnou-se como ditado na nossa cultura. O duplo sentido faz referência ao elogio que o protagonista dirige à mulher amada, com o uso de outra gíria muito típica da nossa cultura. Afinal de contas, “não interessa se ela é coroa / panela velha é que faz comida boa…”. Entenda como quiser.
Duas personagens importantes e carismáticas estão ligadas à música “Prenda o Tadeu”. Clemilda (que divide a autoria com Antônio Sima) e Maria Alcina, intérprete que a popularizou para o Brasil inteiro. As duas a gravaram no mesmo ano, em 1985. Com interpretações que variam entre a irreverência e o ritmo mais tradicional do forró, ambas sublinham o duplo sentido da canção, na história característica do folclore da região, em que uma moça perde a virgindade para um tal garanhão, no caso, o temido Tadeu.
Claro que a preocupação da família, e especialmente das irmãs, é nítida. “Prenda o Tadeu” é parte dum imaginário riquíssimo da cultura de duplo sentido nordestina, que conta ainda com nomes de peso como Anastácia, que também abasteceu o repertório de Maria Alcina, e Sandro Becker, além de obras de domínio público como “É mais embaixo” e “Calor na Bacurinha”, todas cantadas pela mineira de Cataguases que lançou Fio Maravilha no Festival da Canção de 1972. “Seu delegado / Prenda o Tadeu / Ele pegou a minha irmã e / Oh!…”.
O pagodeiro Bezerra da Silva praticamente não assina nenhuma das composições que tornou célebres no Brasil inteiro. O estilo particular e característico é tão próprio que soa limitado classificar como “samba”, afinal de contas Bezerra da Silva canta num outro ritmo, melhor entendido como “Bezerra da Silva”.
Muitos dos autores dessas músicas, inclusive, não tinham os nomes divulgados, mas sim, codinomes, por serem procurados pela polícia pelos mais diferentes motivos e transgressões da ordem. Logo, não é de se espantar que como os escravos, das quais a maioria descende, eles utilizem de uma linguagem própria, codificada, para tratar de temas como violência e uso de entorpecentes proibidos pelo Estado.
“Tem coca aí na geladeira”, registrada como de Regina do Bezerra, esposa do cantor, faz uma óbvia brincadeira com o produto amplamente aceito e propagandeado pelo império norte-americano que soa como aquele outro, proibido e perseguido pelos mesmos barões da situação. Afinal de contas, a diferença entre o remédio e o veneno é a dose. É dose!
Um dos maiores hits brasileiros com duplo sentido é “Vou de Táxi”, da Angélica. O sucesso da cantora e apresentadora tem várias interpretações, mas uma em específico é bem polêmica para a época. Ao se lembrar do rapaz do táxi por quem se apaixonou, ela canta “Mas no banho / Foi só me tocar / De repente / Lembrei do teu olhar”.
A dupla Sandy e Junior lançou vários sucessos infantis, mas, em plenos anos 90, era difícil não procurar um significado oculto por trás das letras. Em “Pingolim”, Junior fala sobre uma estrela de brinquedo com esse nome, com a qual ele adorava brincar. No entanto, o verso “Se pinta uma garota que ele fica afim / Já quer mostrar o seu pingolim”, além de várias outras referências, é bastante sugestivo de outro significado.
As canções infantis de Xuxa sempre foram abertas a várias interpretações. Uma delas é “Xuxerife”, que o público cantava de outra forma do que a letra original, mas que fazia total sentido para o contexto da época. No verso em questão, a cantora fala sobre o tal Xuxerife: “Fugiram feito lagartixa e o povo atrás gritava (legal)”. Claro que, para rimar, as pessoas cantavam “Bicha”, de uma forma nada legal.
“O Pinto”, canção do Raça Pura, do álbum homônimo que ganhou o disco de ouro, é mais explícita ainda, mas não ao ponto que crianças não possam cantar. Apesar de falar sobre um galinheiro, com pintinhos e galinhas, o sujeito claramente não está falando sobre um filhote de galo adotado pelo seu pai.
“A Pipa do Vovô” é outra que com certeza já foi cantada por muitas crianças que não fazem ideia do seu significado duplo. Apesar de falar sobre um vovô que não consegue empinar pipas, a compositora da letra, Ruth Amaral, escreveu com a ideia de falar, implicitamente, sobre os problemas de desempenho que vem com a idade.
A banda “É o Tchan” colocou todo mundo para dançar com axé nos anos 90. A música “Na Boquinha da Garrafa” virou um hit, mas claro que a maioria nunca prestou atenção na letra. Em “Vai ralando na boquinha da garrafa / É na boca da garrafa”, a canção não está sendo tão literal assim e não fala, bem, de uma garrafa.
Outra das mais famosas músicas de duplo sentido nacionais veio do Só pra Contrariar em um dos seus primeiros hits, “A Barata”. Na faixa, lançada em 93, Alexandre Pires encontra “a barata da vizinha” todo dia que chega em casa, e não é possível que a mulher que more ao lado realmente tenha este inseto de estimação. Trecho da música: Toda vez que eu chego em casa / A barata da vizinha está na minha cama / (...) / Eu vou dar uma paulada / Na barata dela”.
Um dos maiores sucessos da banda de axé é a música “Minha Pequena Eva”, eternizada na voz de Ivete Sangalo e que todo mundo canta em todo carnaval – sem nem prestar atenção na letra. A canção fala sobre Adão e Eva, que fogem em uma astronave durante o apocalipse, ou “Olha só, hoje o sol não apareceu / É o fim da aventura humana na Terra”. Metal pesado!
A música da banda Titãs fala sobre flores, como o próprio título entrega, mas há um significado controverso – e bastante mórbido – por trás da letra. “Flores” poderia estar falando sobre suicídio, como em “Os punhos e os pulsos cortados / E o resto do meu corpo inteiro” e “As flores tem cheiro de morte / A dor vai fechar esses cortes”. Hardcore.
Outra música que ficou muito famosa foi “Lepo Lepo”, do Psirico, em 2017. O refrão grudento colocou todo mundo para cantar a sina de um homem que não tinha muito dinheiro, mas que queria manter o relacionamento com a mulher amada. Em “Eu não tenho carro, não tenho teto, mas se ficar comigo é porque gosta do meu lepo lepo”, estamos falando de… bem, você já entendeu.
O funk também é mestre em fazer isso, e o clássico acima de todos é de Tati Quebra-Barraco, em “Fogão Dako”. A letra é bem simples, e por mais que ela peça calma, é difícil de imaginar que Tati esteja realmente fazendo uma música para elogiar a marca Dako. Trecho da música: “Entrei numa loja, / Estava em liquidação / Queima de estoque / Fogão na promoção / Escolhi da marca Dako, / Porque Dako é bom / Dako é bom / Dako é bom / Calma, minha gente, é só a marca do fogão!”
“No Cume”, do cantor cearense Falcão, vai na mesma linha. Trecho da música: “No alto daquele cume / Plantei uma roseira / O vento no cume bate / A rosa no cume cheira / Quando vem a chuva fina/ Salpicos no cume caem / Formigas no cume entram / Abelhas do cume saem”.
“O Gato Tico-Tico”, de Sandro Becker, não fica atrás. Trecho da música: Tico-Tico é um gato / Que a Maria quer bem / Não dá, não vende, nem troca / E não empresta a ninguém / O Tico tem um defeito / Que nem dá pra consertar / O defeito do Tico / É que é danado pra miar / Tico mia na sala, Tico mia no chão / Tico mia na cozinha, encostado no fogão / Tico mia no tapete, Tico mia no sofá / Tico mia na cama, toda hora sem parar”.
O cantor Leonardo lançou a canção “Água de Coco” em 2000, falando sobre uma mulher que está tomando água de coco de um jeito bem provocante. Porém, não era bem sobre o coco que ele estava falando, como mostra o verso “Ela segurava o coco / E alisava o canudinho / Pra me deixar no sufoco / Dava um tapinha no coco / Só pra me deixar doidinho / Ela balançava o coco / E também meu coração / E eu ali naquela sede / Parecendo o coco verde / Que ela passava a mão”.
Outras canções sertanejas, que hoje rivalizam com o funk na onda do duplo sentido:
“A Gata do BMW”, de Cezar & Paulinho. Trecho da letra: “Eu vou meter ela no pau / A gata do BMW me xavecando, xavecando / E o que eu quero é receber / Eu vou meter ela no pau / É top model, é sensual / Mas com ela eu jogo duro / Eu vou meter ela no pau“.
“Garagem da Vizinha”, de Sandro & Gustavo. Trecho da música: “Põe o carro / Tira o carro / A hora que eu quiser / Que garagem apertadinha / Que doçura de mulher / Tiro cedo, ponho a noite / E também de tardezinha / Tô até trocando óleo / Na garagem da vizinha”.
“Quem Quer Verdura”, de Felipe & Falcão. Trecho da música: “Quem é que quer verdura / Quem quiser pode falar / Você deu uma risadinha / Você quer verdura minha / E tá sem jeito de pegar”
“Eu Já Fui de Você”, de Gino & Geno. Trecho da música: “Eu só fui de você, / Eu não fui de mais ninguém / Você me fez feliz / E eu te fiz feliz também / Mas você foi embora / E nunca mais veio me ver / E eu só fico lembrando / Quando eu fui de você / Eu já fui de você, / Eu já fui de você / Meu amor eu não me esqueço / Que eu já fui de você”.
“Só Dou Carona pra Quem Deu pra Mim”, de Teodoro & Sampaio. Trecho da música: “Mas eu venci e dei a volta por cima / Mas quem me dava carona lembro bem eu sei quem é / Hoje eu tenho e meu carro importado / Que roda sempre lotado de gatinhas junto a mim / Quando recordo o passado fico pensando / E por isso que tô mudando o meu jeito de agir / E é por isso que eu sou assim, / Eu só dou carona pra quem deu pra mim”.
E tem gente se escandalizando com esse trecho da marchinha da BICA: “A pirralha faz pirraça / E a BICA entra na graça / A Greta quer ver pau em pé / A BICA abunda, bate forte e bota fé / Pois pau pegando fogo / Só quem quer ver é mané!”
Ah, vá chupar prego até virar tachinha, criatura! E pare de tanto mimimi...
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