Por Walcyr Carrasco
Vivo numa democracia. Como escritor, é difícil ter certeza disso. Acho que todo artista em algum momento teve a mesma sensação. Pessoas comuns também. A proibição em torno do que deve ser ou não falado é de lascar. As crianças são usadas como pretexto para proibições que nada têm de democráticas. Existe o veto claro, por meio de leis batalhadas pelas ONGs que se dizem bem-intencionadas. Mas também o realizado por grupos, professores e até pais de alunos que, eventualmente, criam situações constrangedoras para os mestres.
Houve um caso, há anos, em que uma professora adotou, num colégio, um livro em que dois adolescentes tinham uma relação sexual – a primeira e mais romântica de suas vidas. Um pai exaltado reclamou. A saída encontrada pela direção foi arrancar a página da cena em que se realizava o ato, de todos os livros já comprados. Mas Shakeaspeare não mostra, em seu inesquecível Romeu e Julieta, dois adolescentes passando uma noite juntos? Escrevo livros infantojuvenis. Nunca me aventurei a falar de sexo por um simples motivo: a maioria dos pré-adolescentes sabe bem mais do que eu poderia escrever!
Professores cedem à pressão. Escolhem livros que não ofereçam riscos de reclamação. Da mesma maneira, o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe colocar as crianças em situações constrangedoras. Aqui no Brasil, seria impossível filmar O exorcista, já que a menina possuída pelo demônio vive situações de violência.
Outro dia, estive num debate em que, como sempre, a televisão foi duramente atacada.
– Como vocês podem mostrar situações de violência? E as crianças?
Resolvi falar das histórias de fadas:
– Joãozinho e Maria são abandonados pelos pais numa floresta. Atraídos pela bruxa má, Maria se torna escrava doméstica e Joãozinho é preso em cárcere privado, para engordar. Será, então, devorado pela bruxa. Engana a canibal e mostra um ossinho de frango no lugar do dedo, para fingir que continua magro. Finalmente, ela resolve assá-lo. Com a ajuda de Maria, Joãozinho empurra a bruxa para dentro do forno. Apoderam-se de suas riquezas e voltam para os pais, que os recebem felizes.
Quando terminei, houve um silêncio. Ninguém pensara nesse e noutros contos de fadas, muito mais fortes que qualquer novela de televisão. Concluí:
– Mas o conto é instrutivo. Ajuda a criança a lidar, simbolicamente, com sentimentos de rejeição familiares. A saber que há um mundo difícil a enfrentar lá fora. Do ponto de vista do inconsciente, é rico em possibilidades.
As ONGs e os defensores do politicamente correto se apoiam em questões que julgam ser objetivas. Dividem o mundo entre bom e mau. Confundem o que é complexo com o nocivo. Mesmo a Cinderela, tão querida do público infantil, não pode passar por uma interesseira, que se casa baseada no status do príncipe? Hummm... mas a questão é que esse é um conto de formação, que novamente lida com a rejeição e a existência de qualidades intrínsecas ao ser humano, aquelas que sobressaem mesmo quando negadas.
O inconsciente não funciona como uma receita de bolo, em que determinados ingredientes levam aos mesmos resultados. É um sistema complexo e simbólico. Vivenciar a realidade por meio da ficção é uma preparação para a vida adulta e para este mundo, que não anda nada fácil.
As restrições já deixaram o campo da teoria. Além de livros inscritos num “índex educacional”, há escolas que aboliram o Dia das Mães e dos Pais. Argumentam que, com as novas famílias, divórcios, recomposições, deve ser comemorado o Dia da Família. Não é errado de um ponto de vista teórico. Poderia ser incorporado no calendário, assim como o Natal – que, para mim, sempre foi o dia da família, mas enfim... Defendo o Dia das Mães e dos Pais. É uma maneira de festejar um vínculo emocional, de reforçar os laços de amor, de dizer novamente: “Eu te amo”.
Estruturar o mundo por meio do politicamente correto é criar proibições que afetam as obras artísticas. Mais que isso, as relações com as crianças. De que adianta criá-las numa redoma, se o mundo lá fora está cheio de lobos maus e um dia será preciso enfrentar alguns deles?
Antes eu achava que o “politicamente correto” era apenas uma grande bobagem. É mais sério: tornou-se um exercício de controle, travestido de boas intenções. Sob a capa de democrático, revive anseio por um mundo autoritário e, por que não dizer, fascista.
(Publicado na revista Época em 27/10/2016)
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