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sábado, janeiro 11, 2020

BICA 2020: De volta para o futuro!



No início da terceira década do Terceiro Milênio, a civilização se vê às voltas com uma série de questões que muitos julgavam já terem sido superadas: o descaso pelo aquecimento global, a escalada do genocídio indígena, o aumento da intolerância religiosa e a negação da própria ciência (o crescimento dos defensores da conspiratória teoria da Terra Plana está no cerne de todas as muvucas anteriores).

Com o tema “Pirralha faz pirraça e a BICA entra na graça”, sugerido pela biqueira Neidinha, esposa do Manuel Batera, a banda carnavalesca mais escrachada de Manaus resolveu cutucar a onça com vara curta e mostrar que o aquecimento global é uma ameaça real que precisa ser combatida, nem que seja com doses cavalares de ironia e bom humor.

A exemplo dos anos anteriores, o tema foi escolhido na segunda quinzena de dezembro do ano passado durante uma reunião da velha guarda dos biqueiros no Bar do Armando, regado a cerveja e xis-porco.

– Não deixar a Amazônia se transformar em uma nova Austrália me parece uma questão fundamental, como já denunciava o maestro Adelson Santos nos anos 80 – resumiu o artista plástico João Rodrigues, um dos biqueiros presentes na reunião.

Mas os biqueiros não estão sozinhos nessa tarefa. Basta lembrar que, recentemente, a “pirralha” Greta Thunberg foi eleita a personalidade do ano pela revista Time, por inspirar movimentos estudantis de todo o ocidente na luta contra o aquecimento global e em defesa da natureza. Aos 16 anos, ela é a mais jovem personalidade contemplada com esse título.

Também não é a primeira vez que a BICA investe na questão ecológica. No carnaval de 1992, com o tema “No Reino do Jacaré”, os biqueiros denunciaram a tentativa de se introduzir no Amazonas a caça seletiva de jacarés a partir de uma notícia nunca confirmada de que havia uma superpopulação de répteis assassinos no município de Nhamundá.

A marchinha da banda ia direto na ferida: “Assim não dá pé / Assim não dá pé / Pegar pra pato / O pobre do jacaré / Tão me culpando de tudo / Por todas as mazelas da população / Escola e Saúde falidas / Falta d’água, esculhambação / Querem tirar o meu couro / Sou o culpado pela devastação / A Lourdes disse e o Armando confirmou / Jacaré não é boto nem vilão / É ou não é?... / Coitado do jacaré!”

Os biqueiros também recuperaram uma tradição quase esquecida de homenagear como letristas os foliões da banda que atravessaram o espelho. A letra da marchinha deste ano é atribuída ao cantor e compositor Afonso Toscano (um dos fundadores da banda), ao radialista Joaquim Marinho, ao poeta Almir Graça e ao pagodeiro Agnaldo do Samba, todos falecidos no ano passado.

– É uma maneira de perpetuarmos a memória dos verdadeiros baluartes da brincadeira! – explica Ana Cláudia Soeiro, atual responsável por colocar a banda na rua desde o falecimento de seu pai, o comerciante Armando Soares, em abril de 2012.

Segue abaixo a letra oficial, que será gravada pelo rei Davi Assayag, com arranjos do maestro Reina e também homenageia o cantor e compositor Adelson Santos:

Não mate a mata por favor

Tem toco cru pegando fogo pelo chão

Não mate a mata, não mate a mata não

A verde virgem bem que merece consideração


Não tem culpa eu, não tem culpa tu

Não tem culpa ninguém

Mas culpa todo mundo tem

Salve a selva hoje

Pra vida salvar também


A pirralha faz pirraça

E a BICA entra na graça

A Greta quer ver pau em pé

A BICA abunda, bate forte e bota fé

Pois pau pegando fogo

Só quem quer ver é mané!


A hora é essa pra salvar o planeta

Chega de papo, não vem com mutreta

Não entra nessa de quebrar o galho

Se não, ora pois, vá pra casa do c'aralio


Entra na BICA pra não se queimar

A BICA é grande, você vai gostar

Só dá prazer e não faz mal

Levanta sua bandeira nesse carnaval

Um comentário:

Osiris Silva disse...

O Blog do Simão comprova: felizmente ainda há vida inteligente na terra de Ajuricaba. A abordagem da Ana Claudia Soeiro, bem como o artigo do próprio Simão sobre "os encontros e desencontros" da BICA 2020 são simplesmente geniais. Viva os biqueiros e seus compositores. Irreverência é cultura. Da melhor qualidade. Quem leu Machado, Millor, Mario e Oswald de Andrade, Jorge Amado, Aldizio ou Babá Beça sabe do que estou falando.