Murilo Gontijo
Diante daquela cena, a sala de aula "quedou paralisada, pronta pra virar geléia", como diriam os versos de Chico Buarque em Geni e o Zepelin. Respondendo a inocente pedido da fessora, Joãozinho acabara de recitar um poema de Sebastião Nunes, escritor maldito que há décadas cutuca ferozmente as panelinhas literárias, subvertendo o sentido usual da poesia com a utilização de linguagem escatológica e apropriando-se de citações.
Mas como Joãozinho tomou conhecimento daquilo que, em 1988, deputados mineiros chamaram de pornografia? A exemplo dos parlamentares, talvez Joãozinho tenha lido Nunes numa edição do jornal Ponta de Lança, da Fundação Clóvis Salgado, que precisou ser recolhida a pedido dos nossos então representantes. Outra possibilidade: precoce, o garoto leu a tese de doutorado de Fabrício Marques de Oliveira, que explora a obra poética de Nunes a partir dos livros Antologia Mamaluca I e II, compêndios de textos redigidos pelo autor mineiro entre 1968 e 1989.
Neste caso, Joãozinho descobriu também que Sebastião Nunes, um ex-publicitário mineiro, pode ser compreendido como guerrilheiro cultural, que aponta o seu vernáculo para a mídia e o consumismo das sociedades contemporâneas, além, é claro, de colocar na alça de mira seus coleguinhas de panela literária. Segundo Fabrício Marques, a precisão de seus tirambaços deriva de apropriações das técnicas jornalística e publicitária e do uso corrente de citações, além de seu apuro visual. Sim, porque a poesia de Nunes não está apenas em palavras; incorpora desenhos e outros itens não-verbais. "Ele é grafiscritor, faz poesia visual em que a leitura do poema não se resume ao texto. Tudo o que está à sua volta tem sentido e significado", explica o pesquisador. Detalhe: tecnicamente arranjadas, às vezes, as palavras e as imagens complementam-se; em outras ocasiões, repelem-se com virulência.
Com essa mistura, Nunes tenta, de acordo com Marques, boicotar o establishment literário. "Uma das técnicas do guerrilheiro é a sabotagem", diz o pesquisador, ressaltando que a poesia pode funcionar como uma espécie de ação contra o poder estabelecido na literatura. A bomba nos trilhos literários explode quando o poeta acentua e expõe contradições de uma sociedade ocidental consumista, na qual o homem perde o papel de sujeito e se transforma em objeto. "Mas Sebastião não é o único a fazer isso. Ele se insere numa tradição de outros criadores que pensaram a questão", ressalva Fabrício Marques. Segundo ele, a obra do poeta mineiro apresenta semelhanças com as de Gregório de Matos, Apollinaire, Cummings e Alberto Pimenta.
Depois de 22 anos redefinindo as fronteiras da poesia, Sebastião Nunes abandonou esse gênero literário em 1989. Na seqüência, emendou dois livros espinafrando a publicidade (Somos todos assassinos e Sacanagem pura) e migrou para a literatura infantil.
Tese: Guerrilha mamaluca - um estudo da poesia de Sebastião Nunes a partir da articulação entre poesia e técnica
Autor: Fabrício Marques de Oliveira
Orientadora: Maria Zilda Cury
Defesa: 16 de abril
Programa: Estudos Literários da Faculdade de Letras
Metralhadora literária
Um dos alvos da artilharia pesada do poeta Sebastião Nunes são os próprios colegas escritores, que, segundo ele, formam uma "panelinha literária", como se vê no poema abaixo.
Oh que estúpido fui!
Quebrei minha panelinha literária
No dia em que nasci.
Voaram cacas, caquinhos e cagões
Fedendo como nunca vi.
Desde então sou poeta solitário
Corajoso, forte e temerário
Orgulhoso pra caralho
Mas no borralho
Quem me empresta nova panelinha?
Quero que me puxem o saco.
Exijo ser chamado gênio.
Preciso cagar regras.
Ai que saudades de uma cagadinha
Na minha literária panelinha.
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