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quinta-feira, novembro 23, 2006

LEMINSKI: O BANDIDO QUE SABIA LATIM

























Ademir Assunção (*)

O encontro foi numa tarde de outubro de 1986, no apartamento da cantora e compositora Neusa Pinheiro, na rua Apinagés, bairro Sumarezinho. Leminski estava em São Paulo para dar um curso promovido pela editora Brasiliense: "Poesia em Cinco Noites". Não lembro se chovia ou fazia sol. Lembro bem que ele tinha pressa (mas não aquela pressa competitiva, tão em moda nesses tempos de yuppismo globalizante). Talvez porque já percebesse que sobrava pouco tempo de vida. Muito também porque era dono de uma personalidade intensa, ligada o tempo todo, marcada por um sentido de urgência.

Esta personalidade eletrificada, de um poeta em tempo integral, transparece em toda a sua obra. Em Leminski, o foco de interesses não está centrado num cânone restrito. Sua multiplicidade atrai referências de diversas épocas e culturas: da poesia clássica chinesa ao blues afro-americano, da patafísica de Jarry ao vigor samurai de Yukio Mishima, dos clássicos gregos ao rock'n'roll, do haicai japonês ao tropicalismo, de Cruz e Souza a Leon Trotsky, de James Joyce a John Fante, de Samuel Beckett à Cartola, de poemas do Egito Antigo ao videotexto, do supraerudito ao supremo popular, do universo cósmico de uma biblioteca aos movimentos mundanos.

Não se confunda essa capacidade imantadora com um simples ecletismo oportunista. Não. Ciente de que arte e cultura são matéria viva, para vivos, Leminski soube construir pontes, estabelecer links entre ricos tecidos culturais. Onde houvesse inconformismo, densidade, criatividade extremada, lá estava ele. Dono de vastíssimo repertório, está decibéis acima do neochique intelectualismo (reaça pra caralho) que graça e glosa pelas plagas brasileiras.

Embora muitos tentem minimizar a sua importância, ora situando-o como um simples apêndice concretista ou tropicalista, ora como um mero frasista de espírito polêmico (o que disseram de Oswald de Andrade?), ou ainda apontando dedos para um suposto looping decadente no final de sua breve vida, o tempo certamente vai recolocá-lo em seu devido lugar: como um dos poetas brasileiros fundamentais dessa metade de século. Se tal afirmação ainda parece exagero, que respondam: quais outros nomes poderiam substituí-lo?

Mas de afirmações de "maior poeta", "um dos mais importantes", e coisas do tipo, o inferno está cheio. O importante é saber: por que Leminski tem tal estatura?

Um pouco de contexto não faz mal a ninguém, ainda mais em se tratando de alguém que fez questão de alterar o texto para bagunçar o contexto: "Sou daqueles que se colocam dentro de uma perspectiva histórica" – disse em uma de suas primeiras longas entrevistas, à Almir Feijó (revista Quem,1978).

Leminski nasceu em 1944, um ano antes da explosão da bomba atômica em Hiroshima. O cogumelo atômico estilhaçou definitivamente a realidade. E imprimiu um sentido de urgência à geração que veio ao mundo sob a sua enorme sombra ameaçadora. De repente, havia a impressão de que nada poderia ser deixado para o dia seguinte, simplesmente porque não havia mais certeza de que haveria o dia seguinte.

O holocausto atômico não se resumiu à Hiroshima. Através das imagens (da fotografia, do cinema), explodiu no mundo inteiro. Com a tecnologia avançada dos meios de comunicação de massa, o planeta foi se tornando cada vez menor e uma nova era se instaurou, de maneira um tanto dramática. Bem vindos à Idade Mídia.

Tudo começou a acontecer muito rapidamente, num século que já se inaugurara deslizando sobre os trilhos dos bondes elétricos e em poucas décadas fazia as notícias voarem pelos ares via satélite. Em Understanding Media, Marshall McLuhan escreve que "a velocidade elétrica mistura as culturas da pré-história com os detritos dos mercadólogos industriais, o iletrado com o semi-letrado e o pós-letrado".

E onde está Leminski no meio dessa chuva de estilhaços? Em uma espécie de manifesto, abertura para uma antologia de poetas jovens à época (revista Pólo Inventiva, 1978), organizada com Alice Ruiz, ele se autositua, junto de seus pares de antologia, na "geração 68": uma geração marcada pela rebeldia contra cânones autoritários, por uma ampliação das experiências poéticas (e humanas), eletrificação da sensibilidade, inconformismo, utopias, mas também, já naqueles anos (conforme antevê com lentes precisas) sofrendo as conseqüências de um "acirramento da competição na luta pela sobrevivência, a níveis darwinianos".

É bem esclarecedor o modo como o poeta focaliza alguns aspectos do contexto histórico e cultural em que aparece a "geração 68": "contestação, rebelião estudantil na França, "primavera em praga",/ os "powers" (black, red, gay, women's lib), a pílula, o aborto,/ o martírio do vietnã/ radicalização em sentido socialista, na américa latina,/ psicodelismo, zen, sociedade alternativa/ rock/ homem na lua, mcluhan, aldeia global, o meio é a mensagem/ contracultura".

Essa consciência do seu "ponto de partida" está expressa em uma entrevista a Régis Bonvicino (jornal GAM, 1976), na qual evidencia seu ímpeto de interferir em grandes contextos culturais, através de uma atuação crítica-criativa no jornalismo, nas letras de música, nos poemas em videotexto: "Não dá mais tempo para ser ingênuo. Puro. Inocente. Perante a investida multinacional da tecnocracia, tem que responder com uma plena consciência dos meios, códigos e linguagens".

Que esse breve esboço do contexto em que surge não sirva para reduzir Leminski a um poeta típico dos anos 60 ou 70. Ledo engano ou deslavada sacanagem de yuppies que pretendem aprisionar qualquer tentativa de rebeldia a pulsões demodée, "coisa do passado". Leminski era um erudito. Conhecia poesia profundamente. Mas não se enquadrava no modelo de intelectual bem-comportado. Era um radical. "Um bandido que sabia latim".

Tudo somado, o sentido de urgência e a necessidade de rebelião marcaram profundamente sua poesia. É da primeira safra o poema seguinte:

nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado,
hasta la vista

queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
– cala a boca
e pro relógio
– abaixo os ponteiros

O fraseado rápido, telegráfico, musical, chega junto, surpreendente como o golpe de espada de um samurai experiente. O mesmo tom está impresso em outra peça da mesma fase, na qual demonstra sua malandragem no trato com a "função poética":

pariso
novayorquizo
moscoviteio
sem sair do bar

só não levanto e vou embora
porque tem países
que eu nem chego a madagascar

Num lance "quase chinês", o poeta transforma substantivos em verbos ("pariso", "novayorquizo", "moscoviteio") dando um autêntico giro pelo planeta sem sair do próprio terreno da linguagem – ao contrário: contraindo-a ao máximo. Em três versos assimila conquistas vitais dos estudos modernos de linguagem. Mas ainda, dentro desse poema, e dentro da própria linguagem, insere uma de suas marcas registradas: o humor, o nonsense.

Se Oswald de Andrade foi um dos primeiros a incorporar em sua poética a rapidez dos primeiros anos do século, e os poetas concretos a perceber a simultaneidade dos novos tempos, Leminski já faz parte de uma geração que teve a sua sensibilidade "reprogramada pelos modernos meios de comunicação de massa", como teorizou McLuhan, dando um passo além ao clássico ensaio de Walter Benjamim, "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica".

Talvez seja o primeiro poeta brasileiro, junto com Torquato Neto, com plena consciência de que o mundo estava irremediavelmente interligado via satélite. Nisso, não há uma adesão a-crítica, mas uma percepção de que "os tempos já eram outros".

A par das rebeliões comportamentais, da negação da persona do intelectual clássico, Leminski sabia da necessidade de uma outra rebelião: a rebelião da linguagem. Com maestria, jogou toda a sua energia poética contra o racionalismo linear aristotélico/cartesiano. Judoca zenbudista, desconfiava das palavras e remetia seus leitores à experiência concreta: no seu caso, a experiência com o próprio texto: em vez de refletir a realidade (como um bom escritor naturalista acreditaria), transformava a escrita numa realidade em si.

Com isso, seus poemas, conscientemente elaborados, vão se transformando em quase koans. As frases rápidas, carregadas de musicalidade e sentidos se encarregam de dar um nó no pensamento lógico/cartesiano e o poema vai se tornando uma experiência que compreende cada vez mais uma totalidade corporal:

          Quem nunca viu
que a flor, a faca e a fera
tanto fez como tanto faz,
e a forte flor que a faca faz
na fraca carne,
um pouco menos, um pouco mais,
quem nunca viu
a ternura que vai
no fio da lâmina samurai
esse, nunca vai ser capaz.

A estratégia já estava sendo semeada desde Catatau, o primeiro livro. Não por acaso o personagem central é Descartes, assombrado pela paisagem tropical do Brasil, atacado pelo zumbido intermitente dos mosquitos e cercado por jibóias, antas e preguiças. Com seu pensamento lógico, o filósofo francês não consegue decifrar a paisagem do Novo Mundo, e espera alguém que lhe traga as explicações, como um personagem beckettiano "esperando Godot".

No texto "Transmatéria Contrasenso", espécie de prefácio do livro Distraídos Venceremos (trocadilho zen com o bordão de esquerda "Unidos Venceremos"), Leminski explicita, mais uma vez, sua flecha lançada em direção a um alvo "longamente almejado: a abolição (não da realidade, evidentemente) da referência, através da rarefação". Como epígrafe ao livro, re-utiliza de maneira sintomática um trecho do próprio Catatau:

"Que flecha é aquela no calcanhar daquilo? Pela pena, é persa, pela precisão do tiro, um mestre. Ora, os mestres persas são sempre velhos. E mestre, persa e velho só pode ser Artaxerxes ou um irmão, ou um amigo, ou discípulo, ou então simplesmente alguém que passava e atirou por despautério num momento gaudério de distração".

Distraídos Venceremos foi malhado por parte da crítica. Muitos não perceberam o passo adiante na estratégia do poeta.

O passo adiante significou também um adensamento de sua poesia e uma visível mudança de tom: o bom humor da fase inicial dá lugar ao ceticismo. Leminski já pressentia a morte se avizinhando. Os próprios títulos dos dois últimos livros de poesia que deixou organizados (publicados pós-morte) já indicam isso: La Vie en Close e O Ex-estranho. Antes, havia traduzido Sol e Aço, de Yukio Mishima, um tratado de morte, o suicídio ritual do último dos samurais, e Malone Morre, de Samuel Beckett.

Mas paralelo à constante autobiográfica, é possível ler na fase final da sua produção poética, uma profunda negação da caretice yuppie que predominou nas últimas décadas do século. Possivelmente o poeta se decepcionava com a realidade cruel, estúpida e mesquinha do Brasil oficial.

Talvez não tivesse estômago, caso sobrevivesse mais alguns anos, para deparar-se com o narcisismo (muito bem remunerado) de antigos rebeldes que hoje cultivam o patético prazer de mostrar suas caras e casas na Caras, e insistem em manipular a história cultural sempre a seu favor.

Não seria uma evidente tomada de posição o que transparece no poema "1987, Tende Piedade de Nós"?:

          anos ímpares
são anos vítimas
anos sedentos
de sangue e vingança
todo gozo será punido
e o deserto será nossa herança

E como se pode ler o poema sintomaticamente entitulado "Campo de Sucatas"?:

          saudade do futuro que não houve
aquele que ia ser nobre e pobre
como é que tudo aquilo pôde
virar esse presente podre
e esse desespero em lata

Ambos os fragmentos pertencem ao livro póstumo O Ex-estranho (1996), para o qual deixou anotado um pequeno texto introdutórioa: "Este livro... expressa, na maior parte de seus poemas, uma vivência de despaisamento, o desconforto do not-belonging, o mal-estar do fora-de-foco, os mais modernos sentimentos".

Paulo Leminski, que um dia definiu a poesia como "a liberdade da minha linguagem", deixou, de fato, uma poesia impregnada de vida e uma vida impregnada de poesia. Não se escondeu atrás dos versos: ao contrário, abriu o peito (e o cérebro) e expôs as experiências de um ser único passando pelo planeta e deixando sua marca, como fizeram Rimbaud, Pessoa, Whitman e tantos outros. Leminski tinha o que dizer e o soube dizer. Essa a diferença.

(*) Ademir Assunção é jornalista, poeta, compositor e músico. Este texto foi publicado na revista MEDUSA n.º 6, p. 2-6, 1999.

Quem quiser conhecer um pouco mais sobre Leminski pode acessar http://paginas.terra.com.br/arte/PopBox/kamiquase/nindex.htm

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