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sexta-feira, novembro 24, 2006

Leminski ou com quantos versos se faz uma vida










Leminski & Alice Ruiz & Alice & Estrela & Áurea

Alice Ruiz (*)

24 de agosto de 1968 (Do you want dance?)

A Peggy me leva na tua casa. E ali estamos, frente a frente, no dia em que você faz 24 anos, nasce pra mim e eu para você. Fiquei naquela noite, saí no dia seguinte para voltar logo em seguida e ouvir você dizer: – Estou vidrado em você, guria. Não saí mais. Tínhamos em comum a paixão por Joyce, Maiakovski, Cae. Nos próximos dias você me mostra teus poemas e um romance ainda em projeto. Um romance experimental onde você busca atingir o ilegível, mas dentro do rigor. Não tinha nome, mas, em quatro páginas, já tinha começo, meio e fim. Somos cinco morando na casa. Você, eu, Neiva, Ivan e Kiko. Mais a população flutuante, Pedro, Lélio, Fredinho, etc. nasce o Grupo Áporo. Acreditamos nas bandeiras da contracultura e nos sentimos hippies.

14 de outubro de 1968 (A fool on the hill)

Você volta das aulas que dava no cursinho Abreu. 22h30. fazemos amor como todas as noites, mas nessa é diferente. Sei, de alguma forma misteriosa, que fizemos um filho.

11 de julho de 1969 (Wild horses)

Ele nasce. Quero dar o nome de Ângelo. Você, de Miguel. Miguel Ângelo. O catatau já tem umas oitenta páginas. Minha peça de teatro fica inacabada.

Agosto de 1969 (Be not to hard)

Você me escreve do Rio onde foi semear caminhos para depois vir nos buscar, me contando que o romance vai se chamar Catatau. Termina a carta dizendo: – Menina, quem te deixou prenhe foi um poeta que passou por aqui procurando uma etimologia.

24 de dezembro de 1969 (The look of love)

Você volta. Eu com Miguel na casa da minha família, você na dos teus pais. Nos vemos todos os dias. Um dia, depois que você se vai, fico sentindo o cheiro da tua mão na minha mão. Imagens poéticas cantam na minha cabeça antes de dormir. Você vai, compondo tua primeira canção “Flor do Cheiro”. Quando você mostra, as imagens são as mesmas do meu pré-sonho. Mais tarde você e Pedro compõem “Oração do Suicida”.

Maio de 1970 (Me and Bob MacGee)

Chegada ao Rio. Sou secretária em um escritório. Você escreve para revistas da Editora Bloch. Perco 8 quilos, você 12. mas da janela vê-se o Corcovado, o Redentor, que lindo.

Dezembro de 1970 (Suíte Judy Blue Eyes)

Você, Miguel, minha mãe, teu irmão e eu, novamente grávida. Todos no mesmo quarto. Não mostro meus poemas para ninguém. Só para você. Você escreve para o Pasquim. Paramos no bar e conversamos com Capinam e Luis Carlos Maciel. Janis morreu. Hendrix morreu. Quem será o próximo? Aparece um violão lá em casa e você toca até sangrar os dedos. O Catatau também não pára. Eu acompanho, frase a frase que nasce.

27 de fevereiro de 1971 (On the road again)

Volta para Curitiba, onde tem mãe, INPS, emprego, comida. Aqui não se desbunda porque todo mundo nos conhece. Passando por São Paulo, Augusto brinca com Miguel: – Você Guegué, mim Gugu.

2 de março de 1971 (Isn’t she lovely?)

Áurea nasce ao meio-dia, o nome é homenagem à tua mãe. Estamos no Labirinto do Minotauro, uma pensão onde ninguém se encontra. Dormimos eu, você, Miguel e Áurea numa só cama. Uma noite você não volta. Quando vem, às 10 da manhã, vem cantando “Luzes”, feita na madrugada.

1971 (Do you think 71 is gonna be a good year?)

Vamos morar na Água Verde. Nossa primeira casa, de verdade. Velhos e novos maigos. Marinho Galera, Getulio Tovar, Paulo Bahr, Pedro Brother, todos parecidos. “Duas pauladas e uma pedrada”. De noite, o Bactuque dos irmãos Stinghen. Cantamos todos. Tempos lisérgicos, mágicos. Você dá aulas, eu sou mãe. Escrevemos. Já não é uma comunidade. Somos ex-hippies? O trabalho intelectual é mais importante que qualquer dinheiro. Quero que você não venda teu tempo, para poder escrever mais. Conseguimos.

1972 (Nois fumo cantá numa festa. P.L. e A. R.)

Escrevemos na Joy. Rogério Dias faz a diagramação da revista. Compomos uma canção caipira sentados no Bife Sujo. A canção vira hino dos marumbinistas. Com o Miguel, o Pedro e a Elly via Marumby.

1973 (Energia solar P.L.)

O adeus do teu pai. Pedro entorta. Primeira briga feia com ele. A mãe vai morar conosco. Você quer terminar o Catatau, mas o trabalho não deixa. Pagam mal. A tua mãe ajuda a segurar a barra. O Miguel tem os primeiros sintomas da artrite e o pouco dinheiro que temos acaba em médicos.

1974 (Você é a última palavra P.L.)

Você reescreve mil vezes cada página do Catatau, que começa a passar a limpo. Eu te ajudo. Você compõe com a Chave. Doem as articulações do Miguel, ele desenha, lê e escreve o tempo todo. Continuo procurando a cura. Meus poemas fluem, você gosta, comenta cada solução, mas eles continuam indo pra gaveta. Escrevo “O que é a que é” e enfim, mostro.

1975 (Completamente poeta P.L.)

O Catatau está pronto. Você vai trabalhar na Paz e negocia com eles uma edição. Ernani Buchman e Kiko Krammer dão a maior força. Ninguém consegue montar nem pestapar o Catatau porque não tem parágrafos e as palavras não são velhas conhecidas. Eu tomo lições de pestape, diagramação e assumo esse trabalho. Conheço o Dr. Costa que começa a curar o Miguel. O Catatau é lançado em dezembro.

1976 (Adão P.L.)

Caetano e Gal vão à nossa casa nas Mercês. Mudamos para a Cruz do Pilarzinho. Fazemos uma horta, eu e o Miguel. Ele melhora lentamente. Vivemos de freelancer de redação publicitária. Tudo o mais é poesia. Até para o Miguel que faz seus primeiros poemas e começa a preparar um livro sobre os bichos.

1977 (lembrem de mim P.L.)

O Miguel fica ótimo. Você começa a viver só de jornalismo em casa. Eu, na propaganda. Tua mãe adoece. A minha, sofre um acidente.

1978 (Mudança de Estação P.L.)

Saio da publicidade e escrevo para a Grafipar, contos, ensaios, histórias em quadrinhos. Você faz parceria com o Retta, na Paz. Tua mãe morre no início do ano. Você rompe relações com o Pedro. Volto para a propaganda. Você cai de cama. Levo um médico em casa, ele diagnostica comprometimento do fígado. Você pára de beber. Minha mãe morre em junho.

Outubro de 1978 (Aqui e Agora)

O Miguel apresenta um gânglio superdesenvolvido. É feita a biópsia. Câncer. Você diz que, aconteça o que acontecer, não voltará a beber. Inicia o tratamento de quimioterapia do Miguel. Você fala em poesia. Você compõe e produz como nunca.

1979 (valeu P.L.)

Lançamento de 40 Clicks, álbum com fotos do Jack Pires. O Miguel é internado em maio. Metástase? Passo os dias com ele no hospital, escrevo lá mesmo, à mão, quando ele dorme. Você produz matérias para Correio de Notícias e cuida da Áurea. A produção não pára. Até julho, quando o Miguel nos deixa. A felicidade, que mesmo não acreditando, nós tivemos, não é mais possível.

Verão de 1980 (Live with me P.L. e Shakespeare)

Salavador. Todos os músicos já sabem de você. Ficamos amigos de Moraes.

Maio de 1980 (Crazy he call’s me)

Comemoramos dois anos sem beber. Eu, apenas por solidariedade. Mas você acha que um gole de cerveja não vai fazer mal e volta. Tudo de novo. Ainda em 80 fazemos a Estrela, você lança o “Não fosse isso...” e eu lanço “Navalhanaliga”.

7 de março de 1981 (A seed is a star)

A Estrela nasce junto com o sol. Você assiste ao parto e corta o cordão umbilical. Ouvimos “Verdura” gravada por Caetano, pela primeira vez. O ano prossegue com as primeiras parcerias com Moraes. A música puxa a poesia e teu nome. Você sente que é possível ser viável e fica tentado. Compro um telefone e um fusquinha 70. Já não somos mais hippies. Lanço as traduções dos haikaistas japoneses.

1982 (You’ve got a friend)

Músicas tuas nos LPs de Cor do Som e Paulinho Boca de Cantor. Volto para a propaganda. O arroz com feijão garantido, você começa a sonhar em viver só de cultura. Sai “Polonaises”.

1983 (Positive vibration)

Biografias de Cruz e Souza e Bashô. Caprichos e Relaxos. Meu Paixão Xama Paixão.

1984 (The game of love)

Você é pago, pela Brasiliense, para escrever “Agora é que são elas”. Sai a biografia de Jesus e as primeiras traduções. A grana não é suficiente e você escreve para a Folha de São Paulo. Você só toma vinho e cerveja. Eu, na propaganda. Lanço “Pelos pelos” pela Brasiliense.

1985 (Trust your self)

Ano das traduções e parcerias musicais. Vivemos para e pelo texto.

17 de dezembro de 1986 (Yes, he is my brother)

O Pedro se mata. Você é o único Leminski vivo do grande quarteto que aprendi a amar na Rua Bispo Dom José. Então, por que, pela primeira vez, você fala em morrer?

18 de dezembro de 1986 (Instant Karma)

Levo você para o Hospital do Coração, às pressas. Só um susto, disse o médico. Mas meu susto não passa mais.

1987 (Caroline in my mind)

Os valores mudaram. A pressa de viver como quem morre te faz ser outro. Um outro que eu não reconheço. Entre um gole e outro você fala em pedir as contas para a vida. Vou trabalhar em propaganda, fazer parceria com o Retta na Umuarama, me enfiar de cabeça no trabalho. O trabalho cresce, eu cresço profissionalmente. Quero que você viva. Você já não me reconhece. Freqüento os AA, para que você me siga. Você me segue, mas por pouco tempo. Nós brigamos. Nós silenciamos. As filhas ouvem as brigas e os silêncios. Talvez você precise de um problema real para querer viver.

24 de dezembro de 1987 (Loosing hand)

Eu, Áurea e Estrela nos mudamos. Na esperança de que, assim, você mude.

1988 (Don’t let me be misunderstood)

Você dispersa tua biblioteca, bebe mais, quer voltar, mas não muda. Sem mudar, nós não queremos. Agora, pela primeira vez, “nós” quer dizer apenas eu e as meninas. Você resolve ir para São Paulo. Em setembro você me liga dizendo que está com cirrose. Jura que vai parar de beber. Pára. Vou até São Paulo buscar você, Áurea e eu cuidamos de você. Você melhora e volta para São Paulo. Em novembro (how fragile we are) selecionamos os poemas de “La Vie em Close”, como nos velhos tempos. O momento é mágico e você quer voltar. Digo que ainda não estamos prontos. Volto para Curitiba. Você volta para votar e diz que vai ficar. Um dia antes das eleições me contam que te viram bebendo. Agora eu sei, definitivamente: “I’m loosing you”.

24 de dezembro de 1988 (Merry Cristhmas, Mr. Laurence)

Você vai nos visitar. Abre um vinho. Termina o sakê. Estamos distantes. Você me abraça e diz que vai me amar para sempre. Eu digo: – Mas não o bastante para viver por mim. Você responde que tem um destino. O mesmo de Mishima. Ainda tento argumentar, mas não consigo. Teus olhos estão molhados. Os meus também.

Fevereiro de 1989 (Forever young)

Estou me mudando para São Paulo. Você vai buscar o que tinha ficado comigo. Você diz que mesmo separados, nunca nos separaremos. Eu sei do que você fala. Em maio você me visita em São Paulo. Já não luto contra tua decisão. Faço meu luto em silêncio, enquanto você toma vodka e teoriza sobre tua desistência. Resolvo resguardar o que temos de melhor. Todos os dias, quando você me liga, só quero falar de poesia, fazer humor, conversar. No final do mês, de surpresa, te ligo procurando uma etimologia. A de intransigir. Peço que você me devolva o dicionário etimológico ou, pelo menos, xeroque e mande. Você diz que enquanto o dicionário estivesse com você haveria uma chance de que eu ligasse, pelo menos, para o disque-ótimo. Rimos muito. Consigo, mais uma vez, que você não fale tão triste.

2 de junho de 1989 (The shadow of your smile)

Você me liga mais triste do que de costume. Me diz teu último poema. Falamos da felicidade. Você pergunta da minha. Digo, como Borges, que “hay tantas otras cosas em la vida”, além da felicidade. Você me diz que ela ficou na Cruz do Pilarzinho, que felicidade, para você, is just memories. Eu canto, “memories, make it beatiful as yet”, tentando ainda ser leve, mas você me interrompe chorando e eu, mesmo sem querer, choro também.

6 de junho de 1989 (Se houver céu P.L.)

Estranho você não ter ligado nos últimos dias. De tarde, no trabalho, perco a consciência, desligo de repente e é como se sonhasse com você. Apenas te vejo, sorrindo, nítido como se estivesse mesmo ali. Acordo com o peito oprimido e um gosto de adeus na boca.


(*) Alice Ruiz é poeta, publicitária, jornalista e pau pra toda obra.

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