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sexta-feira, novembro 24, 2006

A poesia porosa de Paulo Leminski











Áurea, Leminski e Gustavo

esta vida é uma viagem
pena eu estar
só de passagem
inverno
é tudo o que sinto
viver
é sucinto
abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri
antigamente eu era eterno
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover em nosso piquenique
eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
este poema me olha
o velho leon e natália em coyoacán
desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando
nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando
não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando
nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás de outro vindo
você e eu sonhando e dormindo
hoje o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher lingüiça
entre um triunfo e um waterloo
ascensão apogeu e queda da vida paixão e morte
do poeta enquanto ser que chora enquanto
chove lá fora e alguém canta
a última esperança de chegar
à estação da luz e pegar o primeiro trem
para muito além das serras que azulam no horizonte
e o separam da aurora da sua vida
vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
soubesse que era assim
não tinha nascido
e nunca teria sabido
ninguém nasce sabendo
até que sou meio esquecido
mas disso eu sempre me lembro
eu ontem tive a impressão
que deus quis falar comigo
não lhe dei ouvidos
quem sou eu para falar com deus?
ele que cuide dos seus assuntos
eu cuido dos meus
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência

DIONISIOS ARES AFRODITE
               
aos deuses mais cruéis
juventude eterna
eles nos dão de beber
na mesma taça
o vinho, o sangue e o esperma
 
 este planeta, às vezes, cansa,
almas pretas com suas caras brancas
suas noites de briga braba,
sujas tardes de água mansa,
minutos de luz e pavor

casa cheia de doce,
ondas tinindo de dor,
acabou-se o que era amargo,
pisar este planeta
como quem esmaga uma flor
 
 RAZÂO DE SER
  Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
Preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
  
INVERNÁCULO
 Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quando o sentido caminha,
a palavra permanece.
Quem sabe mal digo mentiras,
vai ver só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
 
ÚLTIMO AVISO
caso alguma coisa me acontecer,
informem a família,
foi assim, assim tinha que ser
tinha que ser dor e dor
esse processo de crescer
tinha que vir dobrado
esse medo de não ser
tinha que ser mistério
esse meu modo de desaparecer
um poema, por exemplo,
caso alguma coisa me suceder,
vá que seja um indício
quem sabe ainda não acabei de escrever
 
DISTÂNCIAS MÍNIMAS
    um texto morcego
se guia por ecos
    um texto texto cego
um eco anti anti anti antigo
    um grito na parede rede rede
volta verde verde verde
    com mim com com consigo
ouvir é ver se se se se se
    ou se se me lhe te sigo?
 
MERDA E OURO
Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.

Cagam ricos, cagam padres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da pessoa amada.
pra que cara feia?
na vida
ninguém paga meia.
 
das coisas
que eu fiz a metro
todos saberão
quantos quilômetros são

aquelas
em centímetros
sentimentos mínimos
ímpetos infinitos
não?
 
  podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano

eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
 
Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetive, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

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