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sexta-feira, novembro 24, 2006

Saudades do Exocet-Leminski
















CLARO ENIGMA, por Wilson Bueno

Pois é, polaco, que bruxaria foi essa tua, tão bandoleira, de inventar de ser eterno? Que sonho, no avesso do sonho, de virar pura memória – fino cristal que se dissolve no pródigo ar curitibano?

Quando a gente era imortal e nem sabia, entre rocks, poemas, guitarras, haikais, reviramos as noites da city, morremos a morte nossa com a delicadeza surpreendida da borboleta que se desconhece terminal mal sobrevenha o fim do dia. A gente era assim e olhavam por nós, as coisas dúbias, uns olhos de menino.

Que bom te ver, na casa dos quarenta, bródão, compadre, esperneando, mugindo, incindindo, acontecendo e fazendo acontecer, disturbando a cena morta deste país de opereta – as mãos, a tua mão traduzida – incidental e múltipla – em incêndios de sofrida beleza, gestos, gritos, berros, uivos, as mãos, as tuas mãos que eram capazes da maior ternura.

Polir o vitral do outono foi o teu maior ímpeto de viver.

Você que bem podia ter-se devotado às artes e aos ofícios da grana, preferiu a grama-mais-bacana, verduras & versos, tênis, cactos, trotskis, rosas, guimarães, catataus, bashô, daryos, ulisses, ítacas, sertões, bilacs, sousândrades, concretos, hebraicos, gregos, sumérios & aramaicos.

Você preferiu a palavra mais exata para arrancar da pedra.

E, surpresa de amigos: entre as suas coisas, uma velha mala, e dentro dela um estilingue.

Atingidos, de todos os lados em que a morte põe ovos, quase não há palavra agora que ouse contar ao mundo o luxo de tua lenda.


CABEÇA A MIL, por Jamil Snege

Ao contrário de uma poesia bovina, que rumina os quintais da lírica deixando atrás de si aquelas bolotas de pasto processado...

Ao contrário do poeta dominical, tomador de mingau, que aguça seus dentinhos antes do bote errático sobre o vulto da quimera...

Ao contrário do versejador de suspensórios, da poetisa encadernada de celulite, do amestrador de pulga, do engolidor de espada, do Píndaro de galochas, do Safo tomador de ki-suco, do provençal de proveta, do Ovídio que se relaciona com a poesia usando camisinha-de-vênus...

Ao contrário dos verbi-voco-visuais que jamais olfataram uma carreira de cocaína, uma laranja esprimida com álcool, uma maconha misturada com bosta de cavalo...

... o Exocet-Leminski, brevê de haicais/micase, curto-circuitando, fundindo seus chips em busca do inexprimível que habita a zona morta de todos os códigos.

Make it new, Ezra Pound dixit.

Leminski foi mais fundo.


SAYONARÁ, LEMINSKI-SAN, por Jaques Brand

Nós que lamentamos a ausência de Paulo Leminski sabemos bem por que. Os que não a lamentam também sabem. O alívio que eles sentem é porém precipitado. Leminski deixou para trás uma carga de mensagens que somente agora começa a revelar o pleno teor explosivo.

Ele era um poeta singularmente bem talhado para cumprir a tarefa mais urgente e mais difícil da poesia atual: a de ultrapassar o hiato entre as tradições do humanismo e as demandas estéticas, políticas e existenciais da sociedade industrial (e pós). Não foi à toa que Leminski procurou a canção eletrônica. Nem foi a esmo que ele foi fundo na criação publicitária. O seu programa poético tinha por mais alta meta a de comunicar-se e comunicar entre si mundos díspares.

Para chegar a tanto, era preciso saber traduzir de todas as diferenças, transitar no campo do inimigo, fazer um ostensivo contrabando de sinais, abrir clareiras e, sobretudo, fazer-se professor-aluno, aluno-professor.

Atento às lições de Ezra Pound, Leminski levou longe a divisa – “Make it new” – do Fabbro. Neopitagórico – como Alice Ruiz insistia, nas noites de neblina do Pilarzinho, em considerar-nos a todos – buscava as linhas do homem novo baseado em valores – alguns em largo desuso nesta Idade da Lata – que alcançava pela disciplina do sentimento, o exercício monástico da renúncia, a concentração “zen”. Considerava essencial essa têmpera íntima para dar conta do recado.

O sucesso espetacular da práxis poética que cumpriu e deixou formulada foi o melhor sinal de que Leminski estava certo nas suas avaliações do papel do artista em nosso tempo. Este sucesso, avesso exato da solidão e do confinamento ressentido, lhe valeu também o ódio e a inveja de muitos senhores do pedaço. Ele conseguia, porém, batê-los em seu próprio terreno e com suas próprias armas. E empregava neste jogo, que o divertia, uma erudição monumental, traduzida para aqui e agora.

Leminski abriu caminhos novos, inventou novos territórios, descobriu novas percepções, que sobrevivem inteiros nos seus textos. Para a experiência curitibana, Paulo foi um infante Henrique que de sua Sagres no Pilarzinho mapeava os lugares e tempos da melhor poesia e enviava naus em todas as direções.

Vale lembrar que ele nunca pediu benevolência – ver a epígrafe do “Catatau – mas, ao contrário, a controvérsia, a polêmica (anagrama de Paulo Leminski, da raiz grega da guerra: pólemos).

A última vez que nos vimos – Paulo ao lado de Berenice Mendes – rolou, aliás, uma conversa sobre a possibilidade de se tirar da leitura de Clausewitz uma álgebra do conflito que pudesse ser útil a toda a gente. Era típico isso, nele: trazer para a existência diária, distribuir, já como pragma, os latifúndios do saber.

Leminski foi assim: livre, áporo, guerreiro até o fim.


GIANTS, por Helena Kolody

Paulo Leminski foi uma brilhante labareda que iluminou seu tempo e se consumiu em sua própria intensidade.

Sua inteligência privilegiada, ávida de saber, nutriu-se dos mais variados conhecimentos, hauridos em todas as fontes do mundo.

Poliglota, Leminski leu os grandes autores no idioma original. Seu talento incomparável floresceu na poesia, na prosa, na crítica, no ensaio, na música.

Quando o conheci, no início da década de 60, ele era muito jovem ainda e já se destacava no movimento concretista de São Paulo, colaborando nas revistas “Invenção” e “Noigandres”. Compulsando essas revistas, que ele me emprestava, tomei conhecimento do concretismo e de seus mais importantes representantes.

Paulo Leminski sempre mergulhou fundo nos assuntos que o apaixonavam. Conheci-o estudando japonês, para impregnar-se do espírito deste idioma, antes de aventurar-se a traduzir e a compor hai-kais.

Seu talento criador renovou nossa literatura.

Leminski deixou a marca indelével de seus passos em todos os caminhos que percorreu.

Os gigantes não cabem em seu tempo. Crescem futuro afora.


LEMINSKI 1968, por José Maria Correia

A última conversa que tive com o Leminski, mais de vinte anos depois, foi como a primeira.

As mesmas coisas continuavam a nos encantar e tanto já tinha mexido com as nossas vidas.

O cinema, Kurosawa, o herói do judô Sanshiro Sugata, os filmes chambara no Santa Maria, os diálogos que sabíamos de cor, eu em português, ele como sempre no original.

Andei com o Paulo por muitos caminhos, campanhas políticas, faculdade de direito, boemia, não sei bem porque as artes marciais foram o referencial comum mais forte e duradouro.

Mesmo quando o cheiro forte de palha de arroz do tatame já era uma lembrança remota, nossos encontros provocavam tentativas de golpes surgidos desajeitados e ofegantes.

Uma ou outra vez, lutávamos na madrugada em meio à cerração, repetindo uma cena clássica que a memória teimava em conservar como um negativo defeituoso e gasto.

O Paulo era assim, um envolvimento absoluto em tudo que fazia, não bastava saber judô, precisava buscar as relações com o Zen, tínhamos de início só um livro que se lia e discutia com o respeito devido a um Torá.

O judô, Kurosawa, Zen eram partes na busca da cultura oriental popularizada pelo esporte, pelo cinema e por alguns movimentos undergrounds.

A universalidade que nos fascinava a todos, mas que só Paulo conseguia expressar, e com que talento!

Como privilegiado de uma geração assisti ao nascer da fase dos hai-kais, da poesia concreta, as interpretações de Bashô e Maiakovsky enquanto o mundo mudava e nós com ele.

O samurai de espada mortal e olhar penetrante cedeu seu enredo trágico ao merchandising do Jaspion do vídeo e pistola a laser.

O Paulo se foi, virou a curva da estrada e deixou de ser visto como no cancioneiro de Fernando Pessoa.

Para onde, Paulo? Onde te levou tua poesia em estrofes aladas? Deixa o endereço, amigo, para que eu possa te encontrar na imensidão dessa noite sem fronteira, para rolarmos conversa em paz, dessa vez sem medo que o alvorecer nos surpreenda.

(Textos publicados no zine Memória de Vida, editado em Curitiba, em agosto de 1989)

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