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sexta-feira, novembro 24, 2006

A POLIVALÊNCIA DE BRAULIO TAVARES














Julio Ludemir (*)

O escritor paraibano Bráulio Tavares vive em mundos simultâneos, como se fosse um dos personagens da ficção científica de que tanto gosta e da qual é um dos maiores especialistas no Brasil. O link que o transporta para universos aparentemente antagônicos, como a literatura de cordel nordestina e o cinema surrealista de Luis Buñuel, é a palavra que aprendeu a amar e a manejar nos livros da vasta biblioteca do pai, o jornalista Nilo Tavares. Foi com ela que se tornou parceiro de Lenine em algumas pérolas da música popular brasileira, ajudou a dar projeção internacional ao artista multimídia Antônio Nóbrega e vendeu mais de 50 mil exemplares com as piadas que rechearam “Como Enlouquecer um Homem”. “Para mim, tudo isso é literatura”, simplifica.

Um poderoso Hubble para radiografar os mundos de Bráulio Tavares é o livro 243, no qual reúne todos os artigos que publicou entre os dias 26 de março e 31 de dezembro de 2003, no Jornal da Paraíba. Essa obra só obedeceu a um critério de seleção: os artigos seguem uma ordem cronológica. Mas se o objetivo dessa publicação é pretensioso (“quero facilitar as futuras pesquisas dos estudiosos da minha obra”), a sua concepção se dá por intermédio de uma maneira toda própria de pensar, onde a capacidade de associar idéias é muito mais forte do que a capacidade de criar conceitos abstratos generalizantes. “Gosto de pegar duas coisas e mostrar o que elas têm de parecido e de diferente”, explica. É assim que consegue enxergar a cadeia de relações que une o folclore e a cultura digital, título de uma coluna que publicou em junho de 2004, que fará parte da coletânea 314, cujo lançamento está previsto para 2005.

O bom humor, tão presente em sua vida quanto a sua polivalência, dá a falsa impressão de que Bráulio Tavares é uma espécie de Dorival Caymmi da literatura. Redondo engano, como se pode constatar com a aterrissagem de dois outros recentes títulos de sua autoria nas livrarias. Um deles é “A Tradição do Romanceiro” (o título ainda não havia sido definido pela Editora 34 até o fechamento desta edição), livro resultante de um curso que ministrou para professores da rede pública de São Paulo, em uma de suas muitas parcerias com Antônio Nóbrega. O outro é “Os Martelos de Trupizupe”, uma coletânea dos martelos agalopados que escreveu nos últimos 30 anos.

Bráulio Tavares também está envolvido na criação de pelo menos três roteiros cinematográficos, dentre os quais está a adaptação do livro “Faca”, do cearense radicado em PE, Ronaldo Correia de Brito. Homem de trato afável, ele tornou-se um mestre na criação de parcerias artísticas, dentre as quais a mais longa e mais importante talvez tenha sido a que fez no final da década de 1970 com a conterrânea Elba Ramalho. Foi graças a ela que abandonou as noites olindenses, onde, no improvisado palco do Centro Cultural Luiz Freire, fez o primeiro show de sua vida ao lado de Zé Rocha, o Batida de Madrugada.

O sucesso da gravação de “Caldeirão dos mitos” levou-o ao Rio de Janeiro num semileito da Itapemirim, sonhando com uma carreira de letrista nos moldes da de Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Ronaldo Bastos. Mas o apadrinhamento de Elba Ramalho, para quem escreveu o roteiro do show Coração Brasileiro, em 1983, não foi o bastante para que se afirmasse nesse mercado de cartas marcadas. “A luz no fim do túnel só apareceu depois da metade da década, quando comecei a traduzir histórias de amor para a Rio Gráfica, que mais tarde virou Editora Globo”.

Era a sonhada entrada no mercado editorial, no qual se sentia muito mais seguro do que com um violão que nunca teve paciência de afinar e a sua inconfundível voz rouca. “O livro sempre foi o meu aquário, nele eu nado como peixe”. As conquistas foram surgindo naturalmente, como o ensaio “O que é ficção científica”, que publicou pela então prestigiada coleção Primeiros Passos, da saudosa Brasiliense. Depois veio o Prêmio Caminho de Ficção Científica de 1989, com o livro “A espinha dorsal da memória”.

Bráulio Tavares desconfia das pessoas que apresentam suas vidas de modo linear e seqüencial, principalmente quando estão falando das influências que vão determinar a sua produção artística. Mas não é à toa que, em apenas duas horas de conversa, faz duas referências ao tsunami de modernização que o então reitor Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque promoveu na vida cultural da Paraíba, quando contratou uma série de jovens, em sua maioria cariocas e paulistas recém-formados.

Foi nessa mesma onda que se transferiram para Campina Grande quatro integrantes do Quinteto Armorial (Antônio José Madureira, Fernando Farias, Fernando Barbosa e Edilson Eulálio). “Eles se tornaram meus companheiros de farra”, lembra. Embriagou-se, então, de cerveja e da cultura popular nordestina, redescoberta pela juventude depois da publicação de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna.

A convivência com os cantadores também vai influenciar os seus textos teatrais, que começou a escrever muito mais por causa do amor pela atriz Arly Arnaud, sua primeira mulher e mãe de sua filha Maria, do que por afinidade com esse tipo de narrativa. Começa então a fase de “subempregos eventuais na área artística”, como explica com seu característico humor no texto “As profissões do poeta”, publicado em “Os Martelos de Trupizupe”. Fez muito sucesso como cantador do espetáculo “Oxente, Gente, Cordel”, com o qual fez temporadas, sempre com casa cheia, em Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília.

Nessa mesma época, escreve “Quinze Anos Depois” e “O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei”, ambas escrachadas comédias populares, que iriam antecipar a estética que consagrou em “Brincante” e “Segundas histórias”, feitas em parceria com Antonio Nóbrega na década de 1990. Para ele, porém, o verdadeiro ponto de contato entre esses dois momentos é o mesmo que une todas as suas facetas: a palavra escrita. “Foi com ela que me tornei letrista, dramaturgo, jornalista e roteirista.”

Algumas pessoas o criticam por fazer várias coisas ao mesmo tempo, ora chamando-o de pretensioso, ora chamando-o de superficial. Para enxergar as invisíveis conexões entre uma cantoria de viola e a escrita automática de Breton, basta ler Braulio Tavares. Ainda que você só possa fazer isso vendo o cantador de “Parahyba, Mulher Macho”, filme de Tizuka Yamazaki sobre a vida de Anayde Beiriz, onde o escritor Braulio Tavares mais uma vez rouba a cena.

(*) Julio Ludemir é jornalista, escritor e autor de “Lembrancinha do Adeus”, entre outros. Esse texto foi publicado na revista Continente Cultural n.º 51, de março de 2005.

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