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sexta-feira, novembro 24, 2006

O cordel do fogo encantado de Braulio Tavares




















O menestrel Braulio Tavares, por ele mesmo:


Nasci em Campina Grande (PB) em 1950. Sou de uma família de poetas, pelo lado paterno. Meu pai me ensinou desde cedo e à minha irmã, Clotilde, que atualmente edita uma revista eletrônica em NataL (RN), chamada “Labyrinto de Idéias”, disponível no endereço www.clotildetavares.com.br, a decorar sonetos, além de regras básicas de métrica e rima. Ele sabia centenas de sonetos de cor, era capaz de recitar durante horas, quando juntava os amigos em casa para beber e tocar violão. Com 10, 11 anos de idade eu sabia de cor inúmeros poemas de Castro Alves, Augusto dos Anjos, Olavo Bilac.


Ler poesia lá em casa era mais ou menos como ver televisão nas casas de hoje em dia. Era uma atividade normal da família, e eu estranhava quando via que meus colegas de escola não sabiam as coisas que eu sabia. A partir dos 16 anos descobri Drummond, os modernistas, etc.


Aos 20, comecei a me interessar pelo cordel e pelos poetas populares nordestinos. É tudo a mesma coisa. Leio poesia quase todo dia. De vez em quando "descubro" um poeta e fico digerindo tudo dele. No momento tenho lido muita coisa de Rudyard Kipling e do americano Robert Service, são dois caras que têm uma melodia métrica espantosa, é cordel puro, dá vontade de cantar em voz alta. Uma beleza.

Entre 1972 e 1976, morando em Campina Grande (de onde saí algumas vezes), fiquei amigo de cantadores de viola, e ajudei a organizar o Congresso Nacional de Violeiros, um festival que acontecia todos os anos. Era a época em que havia no Brasil inteiro a produção chamada "poesia marginal", "poesia independente", "geração mimeógrafo", etc.

Eram poetas que publicavam seus livrinhos de maneira artesanal, e promoviam recitais. Eu achava que os poetas cariocas e paulistas estavam refazendo o caminho que os poetas populares nordestinos tinham feito na virada do século 20, a partir de 1890: se não é possível publicar livros de verdade, publiquem-se livros "alternativos", e leve-se a poesia recitada para o meio da rua. O cordel surgiu assim.

Resolvi usar, em vez do mimeógrafo (que aliás teria sido mais fácil, meu pai tinha mimeógrafo em casa), o formato dos folhetos de cordel. Publiquei dois títulos em Campina Grande (“A pedra do meio-dia, ou Artur e Isadora”, em 1979, e “As baladas de Trupizupe, em 1980), e, em 1981, publiquei em Olinda "Cabeça elétrica, coração acústico". "A pedra do meio-dia" é um cordel tradicional, indistinguível dos cordéis "autênticos". Os outros dois não, são meras coletâneas de poemas e canções.

Trupizupe, o raio da silibrina, é um nome engraçado que minha mãe dizia lá em casa. Descobri depois que é um personagem do folheto "Chegada de Lampião no Inferno", de José Pacheco. No teatro, é o herói da minha peça "O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei", ou "Trupizupe, o Raio da Silibrina", de 1979. Um herói espertalhão, parecido com o João Grilo do "Auto da Compadecida". Mas já o utilizei em letras de música, em contos, etc. É um nome engraçado, marcante. E um personagem meio universal. Aliás, já o usei também num conto de ficção científica, "The Ghost in the Machine" (assim mesmo, com título em inglês), publicado na antologia "Verde... Verde...", no Rio, na década de 1980.

Ainda na seara poética, publiquei “Balada do andarilho Ramón” (Pirata, 1980), “Sai do meio, que lá vem o filósofo” (edição do autor, 1982) e “O homem artificial” (Sette Letras, 1999). Nesse meio tempo, também toquei em banda de rock, fui professor do 2.º Grau, repórter futebolístico, crítico de cinema em jornais, ator e escrevi peças de teatro de rua.

Já morando no Rio, traduzi muitos livros, escrevi roteiros para TV, fui puxador-de-samba em blocos de carnaval cariocas, pesquisei literatura fantástica brasileira e estrangeira, fiz shows voz-e-violão Brasil afora durante anos, tenho mais de 40 músicas gravadas e 5 peças montadas profissionalmente.

Tenho uma filha de 23 anos, Maria Nayara, e um filho de 8, Gabriel. Estou casado com Emilia Veras há 20 anos. Morei em BH e Salvador, e estou no Rio desde 1982. Estudei cinema em Belo Horizonte (1970-71) e ciências sociais em Campina Grande (1973-76). Torço pelo Treze de Campina Grande, Sport do Recife, Atlético Mineiro e Flamengo do Rio. Continuo escrevendo 25 horas por dia. É uma maldição.



CAIS DO CORPO


eles
que têm
uma mulher
em cada porto

elas
que têm
um homem
em cada navio

(quente é o cais do corpo,
quando o mar é frio)



OFÍCIO POÉTICO


escreva no corpo dela
um poema
com seu pau.

faça um poema
bem longo.

goze no ponto final.



POEMA DA BUCETA CABELUDA


A buceta de minha amada
tem pelos barrocos,
lúdicos, profanos.
É faminta
como o polígono das secas
e cheia de ritmos
como o recôncavo baiano.

A buceta de minha amada
é cabeluda
como um tapete persa.
É um buraco-negro
bem no meio do púbis
do universo.

A buceta de minha amada
é cabeluda,
misteriosa, sonâmbula.
É bela como uma letra grega:
é o alfa-e-ômega dos meus segredos,
é um delta ardente sob os meus dedos
e na minha língua
é lambda.

A buceta de minha amada
é um tesouro
é o Tosão de Ouro
é um tesão.
É cabeluda, e cabe, linda,
em minha mão.

A buceta de minha amada
me aperta dentro, de um tal jeito
que quase me morde;
e só não é mais cabeluda
do que as coisas que ela geme ao meu ouvido
quando a gente fode.




ESCRITO NO ESCURO


Entre as negras paredes desta furna
eu incrusto meu ser. Aqui sucumbo.
Minhas asas, meus olhos são de chumbo,
o meu corpo insensível é uma urna
que encarcera a tarântula noturna
do pavor ante o próximo minuto;
um negror de pupila alastra o luto
sobre as faces imóveis que me escutam
(sobre os bichos, que, ávidos, disputam
meus despojos de espectro prostituto).

Sempre isto, o Real: sempre o negrume
de uma noite implacável e absurda
onde a fauna das víboras chafurda:
esse pântano mau de fel e estrume.
Sempre isto, o que sonho: o ardente gume
das visões imbecis que arquiteturo,
pão de cinzas, trepada atrás do muro,
cem fogueiras de sal no corpo inútil,
gargalhada de onça, voz de bútio
que prediz o terror do meu futuro.

Meus delírios que as frases não capturam.
Meus lacraus cravejados-me na nuca.

Minha mente-armadilha, uma cumbuca
onde aranhas ferozes retorturam
símias mãos que se arriscam, se aventuram
a colher os seus grãos ou suas frutas.
Vê, Razão: peias rotas e corrutas
mal sustentam o monstro, ele é só músculos,
os seus berros abalam os crepúsculos
e despertam morcegos lá nas grutas.

(Eu sofreio-te as rédeas) Ah, Loucura,
tu não vês que sou eu que te conduzo?
(Mas não sou, sei que não, estou confuso,
sei que é ela quem manda.) Esta procura
de desvãos vulneráveis na estrutura
do meu ser é em vão. (Não é: me oculto
procurando fugir a cada vulto
que a esconde.) Desiste: não me curvo.
(Curvarei, sei que um dia, e estarei turvo,
ressurreto, remorto e ressepulto).




O CASO DOS DEZ NEGRINHOS


(romance policial brasileiro)


Dez negrinhos numa cela e um deles não mais se move.
Manhã cedinho eles contam: e só tem nove.

Nove negrinhos fugindo; um deles, o mais afoito
dançou — os guardas pegaram — fugiram oito.

Oito negrinhos trabalham de revólver e canivete;
roupa cáqui vem chegando; correram sete.

Sete negrinhos seguiam pela rua de vocês.
Um pai chamou a polícia; fugiram seis.

Seis negrinhos dão o balanço: bolsa, anél, relógio, brinco...
houve um erro na partilha e viraram cinco.

Cinco negrinhos de olho na saída do teatro;
um vacilou, deu bobeira, sobraram quatro.

Quatro negrinhos tormbando. Todos quatro de uma vez.
Um deles o cara agarra — mas não os três.

Três negrinhos batalhando feijão, farinha e arroz.
Um deu-se mal: a comida... dava pra dois.

Dois negrinhos se embebedam de brama, cachaça e rum;
discussão, briga, navalha... fica esse um.

E um negrinho vem surgindo
do meio da multidão:
Por trás desse derradeiro
vem um milhão.




A RESPOSTA DO COMPUTADOR


homem com mulher
mulher com homem
homem com homem
mulher com mulher

homem e mulher
com homem
mulher e homem
com mulher

sexo não tem sexo
é quem gosta
com quem quer.




ARTIGO DE FUNDO


Eu quero é a orgia!
A safadeza!
A indecência!

Deixo pros padres
e pros militares
a continência!




O DIA EM QUE FAREMOS CONTATO


A nave quando desceu, desceu no morro.
Ficou da meia-noite ao meio-dia.
Saiu, deixou uma gente,
Tão igual e diferente,
Falava e todo mundo entendia.

Os homens se perguntaram,

Porque não desembarcaram
Em São Paulo, em Brasília ou em Natal.
Vieram pedir socorro,
Pois quem mora lá no morro,
Vive perto do espaço sideral.

Pois em toda Via Láctea,
Não existe um só planeta,
Igual a esse daqui.
A galáxia tá em guerra,
Paz só existe na Terra,
A paz começou aqui...

Sete artes e dez mandamentos,
Só tem aqui...
Cinco sentidos, terra, mar, firmamento,
Só tem aqui...
Essa coisa de riso e de festa,
Só tem aqui...
Baticum, ziriguidum, dois mil e um,
Só tem aqui...

A nave estremeceu, subiu de novo,
Deixou um rastro de luz no meio-dia
Entrou de volta nas trevas.
Foi buscar futuras levas,
Pra conhecer o amor e a alegria

A nave quando desceu, desceu no morro,
Cheia de "ET" vestido de orixá,
Vieram pedir socorro,
E se derem vez ao morro
Todo universo vai sambar.

Pois em toda Via Láctea,
Não existe um só planeta...
...Baticum, ziriguidum, dois mil e um,
Só tem aqui...


E pra mostrar que a "geração mimeógrafo" continua dando panos pras mangas, aí está uma relação de músicas de Braulio Tavares já gravadas (por intérprete):

ELBA RAMALHO: "Caldeirão dos Mitos", "Temporal", "A volta dos trovões", "Nordeste independente", "A roda do tempo", "Miragem do Porto", "Amanheceu"

ZÉ RAMALHO: "Temporal"

MPB-4: "Virou areia"

LENINE: "Acredite ou não", "Tuareg e Nagô", "O que é bonito", "O dia em que faremos contato", "O Marco Marciano", "Bundalelê", "Eu sou meu guia", "Na pressão", "Sonhei", "Mais além", "Umbigo"

DIONNE WARWICK: "Virou areia"

MESTRE AMBRÓSIO: "Sêmen"

ANTONIO NÓBREGA: "A viagem maravilhosa", "Carrossel do destino", "O rei e o palhaço", "Meu foguete brasileiro", "Estrela Dalva", "Lunário Perpétuo"

NEY MATOGROSSO: "Mais além"

TIM MAIA & OS CARIOCAS: "O amigo do rei"

MÔNICA SALMASO: "Tuareg e Nagô"

MARIA RITA: "Lavadeira do Rio"

"Como sempre acontece nesse tipo de lista, estou colocando apenas os intérpretes mais conhecidos; tem aqueles outros, muitas vezes amigos nossos, que sempre acabam ficando de fora, porque pouca gente conhece. A maioria destas músicas é em parceria (nos casos de Lenine e Nóbrega, com os próprios)", diz Braulio Tavares. Corram atrás das bolachinhas e curtam.

2 comentários:

Claudio Elias Do Nascimento 348.438.21 visualizações disse...

Muito bom...

Unknown disse...

Valeu Bráulio !

Poeta Brasileiro