Augusto Nunes
“Não quero morrer amanhã e tudo isso ficar na tumba, eu
quero falar e fechar a página”, disse Mirian Dutra para justificar a punhalada
desferida nas costas de Fernando Henrique Cardoso, com quem teve um caso
amoroso quando trabalhava na TV Globo em Brasília e o ex-presidente era ainda
senador. O romance durou seis anos. Durou quase 30 o silêncio quebrado nesta
semana por duas entrevistas. O pote até aqui de mágoa, esse vai durar para sempre,
avisa o caótico desfile de denúncias contraditórias, acusações explícitas ou
insinuadas, fatos e fantasias irrompendo de braços dados, cobranças indevidas e
cachos de queixumes. Tudo somado, está claro que Mirian Dutra é uma prisioneira
do ressentimento.
Não há cura para esse oitavo pecado capital. Primo da ira,
do orgulho e da cobiça, o ressentimento costuma ser equivocadamente confundido
com a inveja, da qual é irmão. As diferenças superam as semelhanças. Invejar,
por exemplo, pode ser intransitivo; a inveja frequentemente dispensa objetos
diretos. Ressentir (que segundo os dicionários significa “sentir novamente”) é
verbo necessariamente transitivo. É sempre conjugado contra alguém, alguma
coisa, alguma entidade. No caso de Mirian Dutra, os alvos do ressentimento são
FHC, que responsabiliza por não ser feliz, e a TV Globo, que obstruiu os
caminhos que a levariam ao sucesso profissional.
“A memória do ressentido é uma digestão que não termina”,
constatou o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. O ressentido pensa todo o
tempo no ajuste de contas. E invariavelmente acredita que sua infelicidade
resultou de erros cometidos por outros. A mulher ressentida precisa acreditar
que seu único erro foi amar demais. Aos 55 anos, segue enxergando no espelho
uma jovem ingênua apaixonada pelo sedutor desalmado que, depois de induzi-la a
dois abortos, tratou de afastá-la do país quando o filho Tomás nasceu, para
manter em segredo um pecado que, descoberto, colocaria em risco o projeto
presidencial acalentado desde criancinha. Com a cumplicidade da Globo, que
ampliou a sequência de erros com a decisão de não renovar o contrato vencido em
novembro.
As estações do calvário impostas pela emissora de TV são de
espantar o mais cruel legionário romano. Redesenhada pela memória de uma
ressentida juramentada, a vida mansa em capitais europeias virou desterro, o
expediente curto ficou com cara de menoscabo e o salário de milhares de dólares
tornou-se um quase nada se comparado ao tamanho do talento sufocado. “Sou a
última exilada”, comunicou a desterrada de araque. Haja conversa fiada. Até o
gramado do Congresso sabia da relação extraconjugal entre o senador e a jornalista.
Em 1994, Ruth Cardoso foi informada pelo próprio marido do que ocorrera. E
Mirian reiterou anos a fio que um biólogo era o pai do menino que FHC sempre
tratou como filho.
Além das quantias em dinheiro com que foi contemplado desde
o dia do parto, o fruto do romance malogrado ganhou do ex-presidente um
apartamento avaliado em 200 mil euros. Em 2009, Fernando Henrique assumiu
publicamente a paternidade de Tomás. Meses depois, dois exames de DNA atestaram
que o pai biológico era outro. Amparado nos laços afetivos, FHC não mudou de
ideia. “Ele sempre será meu filho”, explicou. Mirian contestou a autenticidade
dos exames, afirmou que a admissão de paternidade nunca foi oficializada,
culpou FHC pela fragilidade dos vínculos que unem Tomás à mãe e acusou o objeto
do ressentimento de ter forjado contratos com uma empresa com braços no
exterior para consumar as remessas de dinheiro.
“Mas os recursos sempre saíram da renda dele”, ressalvou.
Foi o que ressaltou o ex-presidente na nota divulgada no mesmo dia da entrevista
publicada pela Folha. Com a elegância possível, a vítima do acesso de cólera
dissipou as zonas de sombra produzidas pela entrevistada, rebateu as acusações,
declarou-se pronto para outros testes de DNA e deixou claro que, por mais
constrangedoras que tenham sido as declarações, não tem motivos para
preocupar-se com o que diz a ex-namorada. De novo, FHC fez o contrário do que
Lula faz. Mas o PT reagiu à providencial reaparição de Mirian Dutra com a
euforia dos colonos de velhos faroestes que, entrincheirados no círculo de
carroções atacados por índios, ouvem o clarim que anuncia a chegada da
cavalaria americana.
Apavorados com as evidências de que as bandalheiras no sítio
em Atibaia e no triplex do Guarujá anteciparam a morte política de Lula, alguns
devotos da seita agonizante se empoleiraram na manifestação de ódio da
ex-amante sem esperança para convencer o país de que nada do que o chefe fez é
mais grave do que FHC foi acusado de fazer. Como no PT não há limites para o
cinismo, nem para o ridículo, querem que o ex-presidente seja investigado pela
Operação Lava Jato. Se houver algo a apurar sobre Fernando Henrique, que venham
as investigações. Mas que sigam adiante, e em ritmo menos exasperante, os
inquéritos e processos que cuidam dos crimes cometidos por Lula e sua amante
Rosemary Noronha. O Brasil decente exige que seja concluído o que a Operação
Porto Seguro começou em 23 de novembro de 2012.
Faz três anos e três meses que o país que presta aguarda o
desfecho do escândalo em que o chefe supremo se meteu ao lado de Rose ─ e a
punição dos delinquentes que embolsaram milhões de reais com o tráfico de
influência e o comércio de pareceres pilantras. Faz três anos e três meses que
os que cumprem as leis são afrontados pela mudez malandra do farsante que
promoveu uma gatuna de quinta categoria a chefe do escritório da Presidência da
República em São Paulo. Faz três anos e três meses que o Estado Democrático de
Direito é desafiado pelo poço de arrogância que nunca deu um pio sobre a
chanchada pornopolítica que estrelou em dupla com a Segunda Dama.
Abalroado pela divulgação parcial das patifarias desvendadas
pela Operação Porto Seguro, o reizinho enfim destronado reprisou o ritual a que
obedece quando pilhado em encrencas de bom tamanho: emudeceu, evadiu-se da cena
do crime e foi para o exterior esperar que a poeira baixasse. Três semanas
depois, recuperou a voz para dizer que nada tinha a dizer sobre “assuntos
íntimos”. De lá para cá, não recitou uma única e escassa palavra aproveitável
sobre o caso de polícia que apresentou ao país, além da Primeiríssima Amiga, os
bebês de Rosemary.
Foi o primeiro escândalo que Lula não pôde terceirizar. Não
houve intermediários entre os parceiros de alcova. Não há bodes expiatórios a
mobilizar. É compreensível (e intolerável) que fuja como o diabo da cruz de
pelo menos 20 perguntas sem resposta:
1. Onde e quando conheceu Rosemary Noronha?
2. Como qualifica a relação que manteve com Rose durante
pelo menos 12 anos?
3. Por que escolheu uma mulher sem experiência administrativa
para chefiar o gabinete presidencial em São Paulo?
4. Por que pediu a Dilma Rousseff que mantivesse Rose no
cargo?
5. Por que Rose foi incluída na comitiva presidencial em
mais de 20 viagens internacionais?
6. Por que Rose usava passaporte diplomático?
7. Por que o nome de Rosemary Noronha nunca apareceu nas
listas oficiais de passageiros do avião presidencial divulgadas pelo Diário
Oficial da União?
8. Todo avião
utilizado por autoridades em missão oficial é considerado Unidade Militar. Os
militares que tripulavam a aeronave sabiam que havia uma clandestina a bordo?
9. Por que Marisa Letícia e Rose nunca foram incluídas numa
mesma comitiva?
10. Quais eram as tarefas confiadas a Rose durante as
viagens?
11. Como foram pagas e justificadas as despesas de uma
passageira que oficialmente não existia?
12. Por que nomeou a pedido de Rose os irmãos Paulo e Rubens
Vieira para cargos de direção em agências reguladoras? Conhecia os nomeados?
13. Por que Rose tinha direito ao uso de cartão corporativo
da Presidência?
14. Por que foram mantidos em sigilo os pagamentos feitos por
Rose com o cartão corporativo?
15. Como se comunicava com Rose? Por telefone? Por e-mail?
16. Sabia das reuniões promovidas por Rose no escritório da
presidência? Depois das reuniões, era informado sobre o que fora decidido pelos
integrantes da quadrilha?
17. Por que os honorários dos advogados de Rose são pagos
por Instituto Lula?
18. Encontrou-se com Rose nos últimos 3 anos e 3 meses?
19. Nunca soube de nada?
20. O que foi que disse em casa?
Sem medo da sordidez do PT, FHC replicou imediatamente ao
que disse a ex-amante ressentida. Favorecido pela tibieza da oposição oficial,
Lula jamais comentou o que fez a concubina vigarista.
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