Mário Chamie: o concretismo
como alvo
Ricardo Soares
Após destruir alguns dos pesados alicerces do concretismo e
levantar os do polêmico Centro Cultural de São Paulo – como Secretário
Municipal da Cultura na gestão de Reynaldo de Barros –, o poeta e ensaísta
Mário Chamie demoliu seus 10 anos de silêncio, cimentou seus versos escondidos
e ergueu A Quinta Parede, livro de
poemas que será lançado esta seman a pela Nova Fronteira.
Chamie, principal criador da poesia práxis (que na década de
60 se contrapôs à aridez verbal dos concretistas, defendendo a energia da
palavra), volta disparando críticas ao vazio cultural do país. Referenda o
tédio poético nacional e, ao completar 30 anos de literatura, continua
acompanhando com interesse as novidades poéticas que, para ele, são apenas
“videoteipes com rasuras”.
Autor de 10 livros de poemas e dezenas de ensaios, sua obra
foi reunida em 1977 sob o título Objeto
Selvagem. A experiência na administração pública serviu para o
enriquecimento do poeta, admite. Mas ele só a repetiria caso tivesse condições
de independência desvinculadas de compromissos políticos, como as que o
prefeito Reynaldo de Barros (na época ligado ao deputado Paulo Maluf) lhe
garantiu.
Além de A Quinta
Parede, Chamie, paulista de Cajobi, 52 anos, tem na gaveta um livro de
ensaios (O Mel e a Coivara) que
corresponde a seus novos posicionamentos literários e estéticos.
Chamie em 2001, no seu
escritório no bairro de Cerqueira César (São Paulo), em foto de Edu Simões
São 24 anos de
existência de Praxis, mas nos últimos 10 anos você ficou em silêncio. Por que?
De fato, de 1962 a 1975, Praxis atuou, com seus
instauradores, em equipe e combateu, nesse período o formalismo esterilizante
concretista e derivados. Restabeleceu a articulação do discurso poético,
criando condições históricas para a reconquista e a prática da fala coloquial e
da expressão livre de que a música popular das décadas de 60 e 70, a poesia
jovem, a nova ficção contestadora e parte do Cinema Novo foram o resultado. A
Tropicália, por exemplo, é um fruto oblíquo e indireto da Praxis.
Nos últimos 10 anos, de 1975 a 1985, mudei o mirante e a
minha forma de ação. O país, empurrado pelo inconformismo geral de que a Praxis
participava, passou a entrar num processo de decomposição progressiva do
autoritarismo, nos Governos Geisel e Figueiredo, deixando ainda sequelas que,
infelizmente, viriam afetar a Nova República. Nesse contexto, distanciei-me da
ação poética para adotar a poética da ação. Assim, se antes, no plano das
ideias e do texto, ajudei a mudar os rumos da poesia brasileira, depois, no plano
social, me propus a trabalhar para a mudança da relação entre cultura e poder
no Brasil.
Sem a retórica do ressentimento ideológico, e
descomprometido com os espartilhos paralisantes de quaisquer patrulhas ou
falsos maniqueísmos de direita ou esquerda, promovi em São Paulo uma
mobilização político-cultural transformadora, através da minha presença à
frente da Secretaria Municipal de Cultura.
Como você vê a
atuação da Praxis hoje?
Praxis nunca foi um movimento fechado e dogmático. Sempre
foi uma instauração aberta. Não ficou presa a regras e princípios rígidos. Cada
poeta prestava a sua contribuição individual, tendo em vista a preocupação
básica de transformar a linguagem em instrumento crítico e criativo de nossos
problemas e de nossa modernidade. Tanto é assim que, hoje, os integrantes de
Praxis continuam, com a experiência e o aprendizado adquiridos, a escrever seus
livros, sem necessidade nenhuma de agrupamento ou associação. Claro que existem
os criadores originais e o cordão de epígonos e penduricalhos que costumam ser
amostra grátis de qualquer nova tendência ou grupo de moda que surja.
Em que ficaram a sua
poesia e a poesia brasileira nesse período?
Sou o poeta que faz a biografia das crises e a paródia
corrosiva das utopias volúveis. Com um pé na realidade e a imaginação plantada
no centro de minha palavra poética, ergui um amplo painel épico e dramático do
tempo político e humano brasileiro, dos anos 50 aos dias de hoje.
Lavra Lavra
(1962) é um diagnóstico vivo e contraditório do então conflito explosivo entre
o campo e cidade. O descompasso entre progresso industrial, massificação do
consumo e miséria popular sofre o estigma satírico no livro Indústria (1967). A prepotência
institucionalizada e a violência rotineira contra os cidadãos percorrem, de
ponta a ponta, o longo curso do longo livro Planoplenário (1974).
A esses livros vem juntar-se agora A Quinta Parede, em que procuro, em nome de todas as pessoas,
lançar “os ácidos de meus açúcares” sobre todos os fantasmas de opressões,
censuras, ameaças, novos aprisionamentos na síndrome das quatro paredes do medo
que, nos últimos 10 anos, latejam no cotidiano de todos e de cada um como
cicatrizes e sequelas ativas.
Não trabalho com sentimento dodói nem derramo meus remorsos
sobre o umbigo. Essa misantropia portátil é privilégio de certa poesia em voga
que a pretexto de por vida na sua literatura, flagra em seus retratinhos
verbais a imagem chocha de um discurso gago e precocemente gagá.
Pior do que isso, só o buliçoso vazio mental de alguns colaboradores
do caderno Ilustrada, da Folha de
São Paulo, que, vestidos com a túnica da Klu-Klux-Klan da irremovível e
fascista seita concretista, vêm diariamente se esforçando para por o velho
disco empoeirado e emperrado dessa cantilena, que não sai do mesmo velho lugar,
em nova e grotesca rotação. Felizmente, esses anacrônicos filhotes de papagaio
já nasceram de bico quebrado.
NOTA DO MOCÓ: Esse texto foi publicado no Jornal do Brasil,
em março de 1986. O poeta Mário Chamie faleceu no dia 3 de julho de 2011, aos
78 anos. Para maiores detalhes, clique aqui.
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