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terça-feira, abril 21, 2009

O rapto de Pocahontas


Crianças da Terra Indígena Tikuna Umariaçu, próximo de Tabatinga


Pocahontas na versão Hollywood. Não seria ela a tikuna do Luiz Pereira?

Não existe rio na Amazônia que não seja singrado pelos regatões. Assim são chamados os barcos dos mascates fluviais que garantem a maior parte do consumo de bens industrializados num mercado de 6 milhões de pessoas. Calcula-se que haja mais de 10 mil regatões espalhados pela região.

Numa terra onde só se consegue morar à beira dos rios e lagos, eles partem carregados das cidades maiores e vão se embrenhando na floresta, passando em cada casa de caboclo, em cada birosca, em cada aldeia de índios.

Oferecem latarias, utensílios, mantimentos, pilhas, sabonetes, cachaça, querosene, sal, charque, fósforos, fumo, munição para armas de fogo, quinquilharias, fazendas ou tecidos ordinários, roupa-feita para homens e mulheres, agasalhos, cobertores e mil outras bugigangas.

E recebem nas moedas de que se dispõe na mata: pélas de borracha, peixe-salgado, carne de jacaré, quelônios, rede de tucum, chapéu feito de fibra de palmeira, peneiras, abanos e outros utensílios produzidos pelo artesanato nativo. De vez em quando, também em reais.

No fim de uma viagem de quinze dias, uma carga que custou R$ 50 mil rende R$ 15 mil de lucro para o dono do barco, depois de pagos os dois ajudantes, o cozinheiro e o óleo diesel. No meio da selva, uma bacia de plástico custa 50 reais, 1 quilo de café, 20 reais e um botijão de gás, 60 reais.

– A gente sabe que eles cobram até três vezes o preço normal, mas é mais barato comprar do regatão do que viajar dois dias até a cidade –, explicou Jair Alves, que mora com os filhos e a mulher numa palafita no igarapé Mapatá, município de São Paulo de Olivença, a 72 horas de viagem da sede do município.

Ex-prefeito de Amaturá, o comerciante Luiz Pereira era um dos regatões mais respeitados da região do rio Içá. Seu concorrente direto era Fernando Tavares, que tinha o hábito de empreender viagem somente dois dias depois de Luiz Pereira ter partido.

Lotados, os dois batelões se assemelhavam a verdadeiros bazares flutuantes. E eles subiam os rios à procura da freguesia, composta de extrativistas, silvicultores, ribeirinhos e indígenas, essa população infeliz que tenta a sorte nos socavãos dos igarapés, furos e à margem dos afluentes do rio Amazonas.

Luiz Pereira gostava de negociar com um cacique tikuna, que sempre lhe vendia com exclusividade – e a preço de leite de pato – partidas monumentais de castanha, juta, malva e madeira de lei.

Numa das viagens, o regatão ficou apaixonado por uma indiazinha adolescente, filha do cacique, que acabou entrando em uma negociação envolvendo uma partida de peles de gato maracajá e se transformando em concubina oficial do ex-prefeito.

Como se sabe, as tikunas são famosas pela docilidade e beleza e essa Pocahontas nativa, em particular, era mansinha, mansinha. Vivia sorrindo o tempo todo. Não se queixava de nada. Nunca abria a boca pra falar. Uma beleza! Se dependesse da vontade de Luiz Pereira, nada no mundo os fariam se separar.

Um seis meses depois do início do romance de Luiz Pereira com Pocahontas, cantado em prosa e verso pelos regatões da região, o comerciante Fernando Tavares resolveu antecipar a sua partida e subiu o rio Içá dois dias antes do ex-prefeito.

Ele parou no porto da aldeia tikuna. O cacique desceu o barranco desconfiado.

– Cadê Luiz? – disparou o cacique.

– Olha, cacique, aconteceu um acidente com ele em Manaus – explicou Tavares. “Ele quebrou a perna, teve que operar às pressas e vai passar três meses sem aparecer aqui! Ele me pediu para comprar a sua mercadoria.”

– Pra você vendo não! – bufou o cacique. “Só vendo pra Luiz. Cadê Luiz?...”

Pacientemente, Tavares explicou a situação mais uma vez. O cacique continuava irredutível. Não ia vender a mercadoria de jeito nenhum. E tome blá, blá, blá.

Depois de quase duas horas de conversa, o cacique aquiesceu diante da oferta (Tavares resolveu inflacionar o mercado pagando o dobro do que Luiz Pereira costumeiramente pagava) e autorizou os índios a colocarem os produtos dentro do barco.

No meio da discussão, a indiazinha Pocahontas veio ver o que estava acontecendo e Tavares ficou maravilhado com aquele seu (dela) jeito sexy de ser. Não contou conversa.

– Outra coisa, cacique! – explicou ele, na maior cara de pau. “Como o Luiz Pereira vai passar três meses hospitalizado, ele me pediu para levar a cunhã poranga dele pra Manaus...”

O cacique reagiu, indignado:

– Filha minha não vai não! Filha minha não vai não! Essa só vai daqui com Luiz. Cadê Luiz?...

Mais duas horas de conversa e um novo desembolso financeiro, a título de seguro de vida, e a Pocahontas, que se limitava a sorrir de tudo, foi embarcada no batelão. Fernando Tavares seguiu viagem.

Dois dias depois, o batelão de Luiz Pereira para no porto da aldeia tikuna. Ao ver o comerciante lépido e fagueiro, o cacique começou a suar frio.

– E aí, cacique, cadê a minha mercadoria?... – indagou o ex-prefeito.

Tremendo mais do que vara verde, o cacique contou o ocorrido.

Luiz Pereira ficou louco da vida:

– Aquele Fernando Tavares é um filho da puta! Aquele Fernando Tavares é um escroto! E o senhor, cacique, é um otário por ter caído na conversa daquele cretino! Puta que pariu! Puta que pariu!

Aí, tentando se recompor, tomou um gole d’água, enxugou o suor que lhe empapava a testa, respirou fundo e suplicou:

– Tudo bem, tudo bem! Me chama aí a Pocahontas, pra ela me fazer um pouco de carinho...

Quando o cacique contou o ocorrido, Luiz Pereira gemeu alto como um porco sendo castrado e desabou:

– Puta que pariu, cacique, mas eu não acredito que o Fernando tenha feito uma merda dessa! Isso é muita sacanagem! Puta que pariu, cacique, mas eu não acredito que o Fernando tenha feito uma merda dessa! Isso é muita sacanagem!– e ficou repetindo esse mantra, andando pra lá e pra cá, como se estivesse se preparando para um ataque cardíaco fulminante.

Tão desesperado quanto o comerciante, o cacique bem que tentou amenizar a situação:

– Olha, seu Luiz, mamãe tá ali em cima na rede e ainda é boa de fudê!... Mamãe tá ali em cima na rede e ainda é boa de fudê!... Se o sinhô quiser, pode entrar na véia...

O ex-prefeito fez que não ouviu e deixou a aldeia dos tikuna completamente transtornado. Ele também nunca mais soube do paradeiro de Pocahontas.

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