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quarta-feira, abril 29, 2009

A pimenta dos índios


Raimundo, Luiz Castro, Pauderney, eu e Wilsinho, no beiradão do rio Waupés, em Iauaretê

Agosto de 1998. Uma semana depois do sufoco em Barcelos, lá estavam eu, Frank Sena e Pauderney Avelino no aeroclube, às 6h30 da manhã, se preparando para viajar para São Gabriel da Cachoeira, que fica a 860 km de Manaus.

A aeronave escolhida dessa vez era um bimotor Cessna 301, do tamanho de uma van, com capacidade para cinco passageiros, autonomia de vôo de cinco horas e velocidade média de cruzeiro de 300 km/h.

Nossos novos companheiros de odisséia eram o ex-prefeito de Envira, Luiz Castro, candidato a deputado estadual, e o professor Raimundo Silva, assessor do candidato.

Como aquela manhã de sábado estava luminosa, o vôo foi bastante tranqüilo e desembarcamos no aeroporto de Waupés (ele manteve o nome original do município) por volta das 10h da manhã. O prefeito Amilton Gadelha já estava nos esperando.

Eleito pelo PT, Amilton Gadelha havia comprado uma briga federal com os caciques do partido no Amazonas por conta de nomeações para cargos de confiança, acabando por se desligar da legenda. Apesar de tudo, ele estava fazendo uma boa administração, tanto que no ano seguinte, em 1999, São Gabriel da Cachoeira foi um dos cinco municípios brasileiros agraciado com o prêmio “Prefeito Criança”, da Abrinq, disputado por 180 concorrentes.

Nosso destino final, entretanto, era o distrito de Iauaretê, localizado na garganta da famosa “Cabeça do Cachorro” do mapa nacional, na fronteira com a Colômbia, onde vivem cerca de 4 mil pessoas. Mal descemos no aeroporto, já fomos conduzidos pelo Wilsinho, assessor do prefeito, para uma aeronave Búfalo C-115, da FAB, que nos levaria até lá.

Além do prefeito e de Wilsinho, juntaram-se ao nosso grupo o secretário municipal de Educação Gersen Baniwa, alguns assessores técnicos da prefeitura e vários militares. Foi um vôo tão tranqüilo que cheguei a cochilar. Chegamos a Iauaretê por volta do meio dia. Quer dizer, de repente foi como se tivéssemos viajado de Manaus a São Paulo, com escala em Brasília...

Ficamos alojados no quartel do 1º Pelotão Especial de Fronteira, onde fomos tratados pelos militares como verdadeiros paxás. O almoço estava marcado para as 14h, só que a gente sequer havia tomado o café da manhã. Por sugestão do Pauderney, nós resolvemos dar uma volta pela cidade pra tentar encontrar uma lanchonete. Caminhamos pelas ruas de barro, sob um sol inclemente, por quase meia hora e nada.

Wilsinho explicou que na vila não havia padaria. Nem mercadinho. Nem açougue. Nem feira livre. Nada. A população só comia enlatados, embutidos e ovos, vindos de Manaus ou contrabandeados do lado colombiano pelos guerrilheiros das Farc. Ninguém produzia absolutamente nada. Peixe no rio Waupés, a exemplo do rio Negro, era ficção científica.

Resolvemos apelar. Entramos numa birosca e convencemos um velho índio dessana, dono do pedaço, a esquentar numa frigideira três latas de sardinha, três latas de conserva desfiada e arrematar tudo quebrando meia dúzia de ovos em cima. O “grude” ficou simplesmente intragável, já que até mesmo o nosso velho e conhecido sal, lá praquelas bandas, custa uma fortuna.

Acostumado a comer pimenta malagueta com torrada no café da manhã, Pauderney perguntou ao índio velho se ele não tinha “um pouco de pimenta”. O índio lhe estendeu uma espécie de saleiro com um conteúdo que me pareceu pimenta do reino.

– Essa aí é a nossa famosa kapé itsa yotxi (“pimenta catinga do jacaré”), que o pessoal chama de kina – explicou Gersen Baniwa. “Dizem que ela é muito boa pra memória...”

Pauderney polvilhou uma parte da gororoba com a pimenta kina, deu uma colherada de respeito, enfiou na boca e em menos de 30 segundos começou a lagrimar e a tossir. Seus lábios ficaram inchados e vermelhos como os do Idi Amim.

– Puta que pariu, meu amigo, mas essa merda arde pra caralho! – reagiu.

O velho dessana limitou-se a dar um sorrisinho safado e passar pro deputado uma garrafa pet de dois litros contendo suco de jenipapo, pra ver se amenizava o desconforto.

De volta para o quartel, perguntei discretamente do Gersen Baniwa se havia algum estudo científico demonstrando que aquela pimenta era mesmo boa pra memória.

– Olha, estudo eu não sei se tem não, mas que é boa pra memória, isso eu posso te garantir – explicou, rindo. “Daqui a seis horas, o deputado ainda vai estar se lembrando dela...”

Depois do almoço, no quartel, o comandante do Pelotão, tenente Daniel Carvalho, um gaúcho extremamente educado e prestativo, nos deu uma verdadeira aula sobre a importância do Exército Brasileiro na Amazônia.

– Aqui, a gente faz de tudo um pouco – garantiu. “Nós somos a única presença do Estado nesse fim de mundo. Não fosse a presença militar, isso aqui seria uma região entregue à própria sorte. Ou, pior, entregue à sorte alheia”.

Em virtude de a população de Iauaretê ser “pobre, pobre, pobre, de marré, marré, marré”, uma vez por mês os quase 200 militares do Pelotão participam de um jejum de 24 horas. Os gêneros alimentícios que deixam de ser consumidos nesse período são transformados em cesta básica e distribuídos para a população. Existe maior exemplo prático de solidariedade? Desconheço.

O comando dos Pelotões de Fronteira está sediado em São Gabriel. De lá partem as provisões e o apoio logístico para as unidades construídas à beira dos principais rios fronteiriços: Iauaretê, Pari-Cachoeira, Querari, Tunuí-Cachoeira, São Joaquim, Maturacá e Cucuí.

Anteriormente formado por militares de outros Estados, os pelotões hoje recrutam soldados nas comunidades das redondezas. Essa opção foi feita por razões profissionais: “O soldado do Sul pode ser mais preparado intelectualmente, mas na selva ninguém se iguala ao indígena”, explicou o tenente.

Na entrada dos quartéis, uma placa dá idéia do esforço para construí-los naquele ermo: “Da primeira tábua ao último prego, todo material empregado nessas instalações foi transportado nas asas da FAB”.

Os pelotões atraíram as populações indígenas de cada rio à beira do qual foram instalados: por causa da escola para as crianças e porque em suas imediações circula o bem mais raro da região – salário.

Para os militares e suas famílias, os indígenas conseguem vender algum artesanato, trocar farinha e frutas por gêneros de primeira necessidade, produtos de higiene e peças de vestuário. No quartel existe possibilidade de acesso à assistência médica, ao dentista, à internet e aos aviões da FAB, em caso de acidente ou doença grave.

Cada pelotão é chefiado por um tenente com menos de 30 anos, obrigado a exercer o papel de comandante militar, prefeito, juiz de paz, delegado, gestor de assistência médico-odontológica, administrador do programa de inclusão digital e o que mais for necessário assumir nas comunidades das imediações, esquecidas pelas autoridades federais, estaduais e municipais.

Tais serviços, de responsabilidade de ministérios e secretarias locais, são prestados pelas Forças Armadas sem qualquer dotação orçamentária suplementar.

Os quartéis são de um despojamento espartano. As dificuldades de abastecimento, os atrasos dos vôos causados por adversidades climáticas e avarias técnicas e o orçamento minguado das Forças Armadas tornam o dia-a-dia dos que vivem em pleno isolamento um ato de resistência permanente.

Esses militares anônimos, mal pagos, são os únicos responsáveis pela defesa dos limites de uma região conturbada pela proximidade das Farc e pelas rotas do narcotráfico. Não estivessem lá, quem estaria?

Por volta das 15h30, fomos dar uma “zoiada” nas corredeiras do rio Waupés, na frente da cidade. As pedras que formam as corredeiras do rio são especialmente importantes aos Tariano, uma das etnias mais numerosas do povoado.

– Grande parte da toponímia de Iauaretê refere-se às transformações de Okomi, um dos seres do começo dos tempos, que foi devorado pela gente-onça. Os Tariano referem-se a ele como “nosso avô”, pois seriam seus descendentes em linha direta, resumiu Gersen Baniwa.

No começo da noite, participamos de uma reunião de moradores sobre política educacional, no centro comunitário do distrito. Havia umas 500 pessoas, incluindo velhos caciques, jovens guerreiros, mulheres e crianças, representando as 22 etnias do lugar (tukano, baniwa, curipaco, pira-tapuia, cubeu, dessana, ianomâmi, tariano, hupda, etc).

Era uma reunião interessante. Um cacique fazia uma pergunta na língua de sua etnia, Gersen Baniwa traduzia para o português, o prefeito Amilton Gadelha ou o deputado Pauderney Avelino respondiam em português, Gersen traduzia a resposta para o idioma do cacique, e a discussão prosseguia. Não tenho certeza, mas desconfio que ele sabe falar todas as línguas indígenas existentes no Amazonas...

Inconformados com a reunião, alguns militantes do PT começaram a atirar pedras e bombas “catolé” no telhado do centro comunitário, provocando um início de pandemônio, felizmente contido pela intervenção enérgica do prefeito Amilton Gadelha, que pediu o reforço de uma patrulha do Exército. Os baderneiros se escafederam.

Voltamos para o quartel por volta das 2h da madrugada. O deputado ainda continuava com um beição de Idi Amin. Sim, com certeza ele estava se lembrando da pimenta kina.

Na manhã seguinte, após um lauto café da manhã em companhia dos militares, embarcamos no Búfalo C-115 e voltamos para São Gabriel da Cachoeira. Apesar de a gente não conseguir pegar mulher nem pra remédio, comecei a gostar de fazer campanha eleitoral pelo interior.

2 comentários:

Chrys Braga disse...

Simãããããão, pede pro Simas esperar até sábado, por favor. :D
Dia de semana fica difícil por causa do trabalho, mas prometo que não vou deixar de ir. Sábado de manhã passo lá sem falta, pode ser? Beijo! E brigaaaaada mais uma vez.

Chrys Braga disse...

Ieeeeeba... Acabei de chegar em casa. Fui cedinho no Sebão da Cidade. Ameeeeeeeeeeeei todos os livros. Vou começar a ler... AGORA!

Muito, muito, muuuuito obrigada mesmo. De coração!!!