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quarta-feira, abril 01, 2009

Na rádio da onda


Érika Tatiana no primeiro dia em que entrou na BICA, com Mario Toledo no gogó, Cid, meio encoberto, de backing vocal, e Arnaldo estraçalhando o sete cordas


Uma gazela sensual desfilando na cova dos leões


Érika Tatiana exibindo sua segunda fantasia para a turma do gargarejo


Chicão Cruz, Érika Tatiana, Jomar Fernandes e Joana Meireles colocando a BICA pra zoar

Era uma quarta-feira, no início de novembro de 1998. De repente, um dos diretores de bateria do GRES Andanças de Ciganos, Mestre Bá, me procurou na rádio Novidade FM para tratar de um assunto da maior gravidade. Além de ser meu amigo de adolescência desde os tempos heróicos da Cachoeirinha, de vez em quando o Bá trabalhava como meu “motorista particular”, em virtude de possuir um táxi. A conversa soou meio esquisita.

Ele tinha uma candidata a rainha do Carnaval que, inexplicavelmente, havia sido “limada” pelo presidente da escola, meu velho amigo Edson Jaburu. Como, pela primeira vez, a Associação do Grupo Especial de Escolas de Samba de Manaus (Ageesma), promotora do evento, estava aceitando inscrições avulsas, ele queria saber se a rádio Novidade FM poderia apadrinhar a candidata.

Argumentei que não era diretor da rádio, que precisava primeiro falar com o Armandinho, etc e tal, mas ele não se deu por vencido. Praticamente me levou à força para conhecer a candidata, que aguardava na recepção da emissora. Bom, foi colocar meu olhar clínico em cima da menina para perceber que estava diante de um verdadeiro monumento.

Fiquei tão empolgado com o que vi que, na mesma hora, invadi a sala do Armandinho com a menina a tiracolo. Armandinho ficou mais empolgado ainda. Expliquei rapidamente a situação. Começamos a conversar com a menina. Apesar das medidas exuberantes (1,75cm, 56 kg, 90 de busto, 65 de cintura e 98 de quadris), ela era estudante da oitava série do Colégio Militar e tinha somente 14 anos. Depois de meia hora de conversa, nos despedimos da garota. Ela e Bá foram embora.

Armandinho, que nessa época havia descoberto os prazeres eflúvios do narguilé e queria me iniciar na prática, acendeu o tabaco, colocou a piteira na boca, deu uma longa baforada na minha direção e abriu seu coração de sufi naqshbandi:

– Velho, isso aí é encrenca na certa... No mínimo, vão nos acusar de pedofilia... Os caras (leia-se “a imprensa de Manaus”) vivem querendo acertar o passo do meu pai (leia-se “o então governador Amazonino Mendes”)... Pra evitar problemas, não aceito nem mídia paga do governo... Se a gente entrar nessa, escreve aí, eles vão nos sacanear... É uma pena, porque ela é muito bonita, simpática, desinibida e tem tudo pra ganhar o concurso...

Contra-argumentei. A gente podia criar a Banda da Novidade FM. Seria um lance de carnaval, igual a tantos outros. Tipo a Banda do Coração Blue. Ou a Banda da Difusora. Armandinho se mostrou irredutível. Fiquei tão puto que nem toquei no narguilé.

No dia seguinte, liguei pro Bá, pra dar a má notícia. O meu motorista ficou desolado. Na realidade, ele precisava apenas de umas merrecas pra pagar a fantasia da menina, que já havia sido confeccionada. Falei que, quanto a isso, ele ficasse despreocupado que eu arranjaria a grana.

Na mesma noite, expliquei o acontecido pra diretoria da Banda Independente Confraria do Armando (BICA). Como o GRES Reino Unido da Liberdade resolvera homenagear Armando Soares e a BICA no enredo de 1999, para falar dos 500 anos de descobrimento do Brasil, a gente adotara o samba-enredo da escola como marchinha da banda. Daí que as atividades da diretoria limitavam-se a administrar o pardieiro e esperar pelo desfile da BICA e da Reino Unido.

Os vagabundos também não botaram fé no meu relato. Se era para inscrever alguém da BICA, que eu inscrevesse a Petronila, nossa musa sexyxagenária, que assim a gente desmoralizava de vez o evento da Ageesma.

Resolvi pegar o pião na unha (é, homeboys, eu continuava empolgado pela moleca). Autorizei o Bá a inscrever a Érika Tatiana (esse, o nome da deusa) como representante da BICA e lhe dei a grana para pagar a fantasia da menina. Com uma condição: na quinta-feira seguinte, ela ia entrar fantasiada no Bar do Armando e fazer um pré-show pra rapaziada.

Na quinta-feira seguinte, eu, Dinari, os pais da deusa (Paulo e Cristina, se não me engano), Bá e sua digníssima Marcita (cabeleireira, porta-bandeira e aderecista do GRES Andanças de Ciganos), Marcos Gomes e Érika adentramos no gramado e ficamos concentrados ao lado do boteco, no pátio da casa onde hoje funciona o Itec, do Carlos Araújo.

Quando o grupo Pró-Álcool – com o carismático Mário Toledo nos vocais, mestre Arnaldo no violão de sete cordas, Cid no repique de mão e no backing vocal, Helinho do Parque no tamborim e Ari de Castro Filho no banjo envenenado – começou a incendiar o cabaré, eu aproveitei um dos intervalos musicais para anunciar o novo desafio da BICA (disputar o título de Rainha do Carnaval amazonense) e chamei a Érika, para se exibir pra cachorrada.

A sacana entrou quebrando, mostrando muita ginga, sensualidade, samba no pé e (desculpem, mas é verdade) um popozão simplesmente magistral. Teve gente que quase enfartou. Durante meia-hora, ela hipnotizou a platéia. Me senti o próprio John Casablanca ao revelar pro mundo a Gisele Bundchen...

Deixamos o pardieiro por volta da meia-noite e fomos comemorar a belíssima apresentação da moleca no bar do Charles. Fiquei amigo íntimo dos meus futuros sogros, digo, dos pais da Érika, que eram bem mais novos do que eu. Conversei com a nossa rainha por quase duas horas (lance profissional, apenas para ter subsídios para elaborar os releases pra mídia). Fiquei encantado com sua pureza angelical (sim, era virgem). Estava noiva de um tenente do Exército e ia casar de véu e grinalda.

A diretoria da BICA resolveu apoiar integralmente a candidata, desde que toda quinta-feira ela aparecesse no mafuá e sambasse um pouquinho com a galera, no que ela concordou. Coube a Jomar Fernandes e Chicão Cruz encabeçar a cota para confeccionar mais duas fantasias para a beldade. Fiquei encarregado de representar a banda no concurso. A imprensa começou a fazer matérias do cacete sobre a nova epopéia dos biqueiros. Uma farra!

No dia do concurso, uma sexta-feira de janeiro de 1999, no Sambódromo, eu e Dinari estávamos com o coração na mão porque havíamos combinado com ela de nos encontrarmos na minha casa, às 19h, e às 20h, ela ainda não havia dado sinal de vida. Desconfiei que a Érika havia desistido. Adolescente é um bicho complicado.

Por volta das 20h30, quando a gata finalmente chegou, foi um alumbramento. Apesar de nervosíssima, ela estava simplesmente exuberante (tinha 14 anos, pois não!). Sua nova fantasia era de tirar o fôlego. A Marcita havia se superado. O ódio de não ter uma máquina fotográfica para registrar aquele momento ímpar até hoje me corrói as entranhas.

Chegando no Sambódromo, nós quatro (eu, Dinari, Bá e Marcita) falamos o básico: ela não estava ali colocando sua vida em jogo. Perder ou ganhar não significavam nada. Bastava ela relaxar e fazer o que sabia, que era sambar divinamente bem. A Érika ficou mais calma e foi para os bastidores.

Aí, quem ficou nervoso foi a gente. Pra acalmar a galera, fui ver quem eram os jurados. Os sete (não vou nomear, porque senão vira sacanagem) eram todos meus amigos do peito. Falei que a BICA tinha uma candidata (cinco deles eram biqueiros de carteirinha), mas que eles ficassem à vontade pra dar a nota que quisessem. Pela conversa que tivemos, discretamente, qualquer nota inferior a dez que a Érika tirasse seria motivo pra eu armar o maior barraco.

As candidatas começaram a se apresentar. Como eu era dirigente oficial da BICA, fiquei a dois metros de distância do palco, enchendo a cara de (argh!) cerveja Skol em lata, praticamente ao lado da mesa de jurados. Cada um deles daria três notas, de 5 a 10: simpatia, samba no pé e performance (eufemismo pra “corpão fazendo o créu”). Quando percebi o nível das outras candidatas, comecei a achar que o título estava no papo.

Além de ser, disparada, a mais novinha e exuberante entre as outras dezenove candidatas concorrentes, Érika Tatiana tinha outra virtude: era a única que sabia sambar com uma sandália-plataforma de 15 cm. Com seus 1,75cm de altura, 90 de busto, 65 de cintura e 98 de quadris, ela virava uma gigante diante das outras raquíticas candidatas. Sua vitória estava escrita nas estrelas.

A apresentação dela deixou todo mundo arrepiado. Acho (não tenho certeza) que ela me localizou ali na frente do palco e imaginou estar sambando só pra mim. O tempo todo sorrindo e sem tirar os olhos desse vosso escriba, ela fez coisas que até Deus duvida. Quebrou legal, de samba de pagode a cripto-marchinhas estilo frevo, jogando os braços com uma classe de deixar qualquer um boquiaberto.

Basta dizer que na hora do “créu”, a Érika, com a dignidade de uma princesa munduruku, deu um giro de 90 graus, ficou de costas para os jurados, segurou as pernas abaixo do joelho e fez seu popozão sacolejar em 220 volts. A galera foi à loucura. Os aplausos, ensurdecedores. Depois, deu outro giro de 90 graus e saiu sambando de costas até sair do palco. Carmem Miranda teria tirado o chapéu.

Depois de meia-hora, que pra mim demoraram um século, Edson Jaburu (sim, ele mesmo!) veio dar o resultado. Em primeiro lugar, Irlane Vasconcelos, candidata do GRES Andanças de Ciganos, com 196 pontos. A Érika havia ficado em quarto lugar com 190 pontos. Pedi pra conferir as notas dos jurados. Jaburu falou que, pelo regulamento da Ageesma, só os presidentes de escolas do grupo especial tinham acesso ao documento. Se o Mestre Bá não me segurasse, eu tinha enchido ele de porrada ali mesmo.

A Érika, claro, estava inconsolável. Chorava igual a uma criança. Decepcionadas e irritadas, Dinari e Marcita tentavam consolar a princesa, mas era inútil. Fui peitar os jurados. Todos eles juraram de pés juntos que haviam dado as notas máximas pra Érika e que não sabiam o que havia acontecido. Como eu estava meio alcoolizado (cerveja Skol em lata é uma merda!), não percebi a ladroagem primária: duas notas da Érika simplesmente não haviam sido computadas. Ela havia feito 210 pontos.

Se, na pior das hipóteses, a nossa rainha tivesse tirado duas notas mínimas nesses dois quesitos faltantes, ainda assim teria chegado aos 200 pontos e vencido o concurso – o que dá pra perceber a medida da “mão grande” desses vagabundos da Ageesma.

Na terça-feira, por meio do jornal Amazonas em Tempo, denunciei a esculhambação – inclusive mostrando uma cópia do resumo de apuração das notas, onde faltavam as duas pontuações da Érika. Os diretores da Ageesma, covardemente, se fizeram de mortos.

Em protesto, a BICA resolveu nunca mais participar dessas vagabundagens oficiais. Érika Tatiana passou a ser a primeira e única “Rainha do Carnaval da BICA” (a Petronila, claro, continua reinando soberana como musa inspiradora e rainha da banda). Na seqüência, o GRES Reino Unido ganhou o carnaval daquele ano, com a Érika Tatiana de destaque na Ala dos Biqueiros.

Não vejo a minha musa há dez anos. Soube que ela casou (não sei se com o tenente do Exército) e que agora é mãe de dois moleques. Espero sinceramente que ela esteja feliz. Noblesse oblige. Pelo destaque que deu ao nosso carnaval daquele ano, Érika Tatiana merece muito mais do que isso. O resto é história.

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