Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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segunda-feira, abril 13, 2009
Uma cilada para Roger Rabbit
A coxona sexy da Lucia Antony, o jeito sexy de ser do Amecy Souza e a barriga sexy do Zé Alfaia. Atrás, só na manha, os Demônios da Tasmânia e a docemente sexy Petronila, durante uma das saídas da BICA, no final dos anos 80
Agosto de 1977. No mês passado, aos 21 anos, eu acabara de me formar em engenharia eletrônica pela Utam (Universidade de Tecnologia do Amazonas, hoje Itam) e estava indo assistir minha primeira aula no curso de Administração (noturno), na FUA (Fundação Universidade do Amazonas, hoje Ufam).
O curso funcionava no antigo ICHL, ali na Rua Major Gabriel canto com a Rua Ramos Ferreira, onde hoje está a Faculdade de Estudos Sociais (FES). Eu havia prestado vestibular em janeiro, me matriculara no curso, pedira aproveitamento de várias disciplinas da Utam e trancara a matrícula, para retomar os estudos no segundo semestre. Fácil assim.
Dos “nove homens de ouro” (a turma que vinha estudando na mesma classe desde o 1º ano de Eletrotécnica, na ETFA, em 1971), apenas eu e Engels Medeiros havíamos optado por fazer o vestibular para Administração. Geraldo Nogueira havia viajado para os EUA para fazer pós-graduação no Massachusetts Institute of Technology, onde seu irmão, Vicente Nogueira, fazia doutoramento. Pauderley Avelino queria fazer um upgrade na Medave (na época uma assistência técnica de produtos eletrônicos, hoje, uma potência chamada Construtora Capital).
O gente fina Reinildo Cunha pensava em se devotar ao espiritismo e à criação de galos de briga. Professor da ETFA, Carlos Almeida estava de olho gordo em uma aluna (sua atual esposa e minha comadre, a engenheira e advogada Ana Maria). Sebastião Peixoto não tinha mais saco para professores imbecis (e ele vinha defendendo com galhardia o posto de melhor aluno da turma desde a ETFA). Funcionário da Gradiente, Aldenir Alencar estava interessado em abrir uma firma de consultoria. Paulo Saraiva se preparava para ser chefe de departamento da Telamazon.
Na verdade, eu ainda não sabia direito o que queria da vida – como não sei até hoje. Além de trabalhar como assessor do Diretor Industrial da Sharp do Brasil, estava sendo treinado pelos executivos da Sharp S.A., de São Paulo, para implantar o Departamento de O&M nas empresas de Manaus (Sharp do Brasil, Sharp Transportes, Sharp Componentes, etc). Calculei que cursando Administração poderia me desincumbir mais fácil da tarefa.
Nessa época, eu devia ser uma verdadeira metamorfose ambulante. Sabe-se lá como, mas eu conseguia me interessar tanto pelas teorias do Peter Drucker quanto pelas teorias do Carlos Castañeda, gostava tanto da filosofia de Taylor e Fayol quanto das teorias de Niezstche e Hegel. Acrescente a isso um verniz de anarquismo tardio via leituras apressadas de Proudhon, Bakunin e Malatesta e uma paixão desmedida por heavy metal, funk, dance music, birita, futebol e mulheres, e a hecatombe estava feita.
Meu ex-parceiro de trabalho no Departamento de Controle de Qualidade da Sharp, Engels agora estava trabalhando no Departamento de Engenharia da Philips. Daí que ele me telefonou explicando que não iria poder assistir à primeira aula na FUA, no primeiro tempo, mas que eu desse um jeito de marcar sua presença. Na seqüência, me passou as coordenadas da sua (dele) classe. Como eu não teria aula no primeiro tempo, resolvi quebrar aquela castanha.
A disciplina era “Introdução à Filosofia”. Já fiquei invocado quando entrei na sala do Engels. Os universitários tinham idade suficiente para serem meus pais. A maioria tinha jeito (roupas, gestos, atitudes) de funcionário público. Levei um susto. Afinal de contas, dos 40 alunos de nossa turma na Utam, apenas seis tinha mais de 25 anos. Nessa turma da FUA, apenas seis tinham menos de 30 anos – incluindo o professor de Filosofia. Não dava pra entender.
A merda é que, antes de ir pra sala de aula, eu havia feito uma “blitzkrieg” no entorno do ICHL para descobrir os botecos onde valia à pena encher a moringa. Dos quatro que visitara, tinha gostado muito do “Boteco do Reitor”, que ficava na Leonardo Malcher canto com a Major Gabriel, defronte onde era a Embratel (hoje edifício Samuel Benchimol, da UEA). Detonei meia dúzia de cervejas Antarctica em 40 minutos. Saí de lá alegre e inteligente feito o Einstein
Na sala de aula, no segundo andar do prédio, me sentei na turma do fundão. O professor iniciou a chamada. Quando ele falou “Engels Lomas de Medeiros”, limitei-me a levantar a mão. Ele anotou a presença. Pronto. Era só arranjar uma desculpa qualquer e escafeder-se dali. Mas a besta aqui resolveu continuar na sala de aula. Birita é uma desgraça! Ainda mais com o cara se sentindo alegre e inteligente feito o Einstein.
Acho que o professor estava falando dos filósofos pré-socráticos, quando levantei a mão para fazer uma pergunta. Ele assentiu. Mandei ver (não foi exatamente isso, mas foi nessa linha):
– Professor, Hegel afirmava que buscar a morte do outro implica em arriscar a própria vida. Por conseguinte, a luta entre duas consciências de si é determinada do seguinte modo: elas se experimentam a elas próprias e entre si por meio de uma luta de morte. Mesmo que queiram, não podem evitar essa luta, pois são forçadas a elevar ao nível da verdade sua certeza de si, sua certeza de existir para si. Cada uma deve experimentar essa certeza em si mesma e na outra. Porque, veja bem, só arriscando a própria vida é que se conquista a liberdade. Só assim é que alguém se assegura de que a natureza da consciência de si não é o ser puro, não é a forma imediata de sua manifestação, não é sua imersão no oceano da vida. Essa luta prova que nada existe na consciência que não seja perecível para ela, prova que ela, portanto, não é senão puro ser para-si. O indivíduo que não arriscou sua vida pode certamente ser reconhecido como pessoa, mas não atingiu a verdade desse reconhecimento como consciência de si independente. O que o senhor acha disso?...
O professor tomou um susto. Ficou branco como uma vela de defunto. Tartamudeando, ele tentou explicar que aquilo seria discutido na disciplina “Filosofia Moderna”, e retornou para seus pré-socráticos. A turma inteira ficou me olhando como se eu fosse um serial killer armado com um facão de cozinha na cintura.
O professor retomou a aula, explicando que Parmênides defendia que o ser é o ser e o não-ser é o não-ser, sustentando a tese de que nenhuma mudança acontecia, era tudo ilusão. Depois passou a falar de Heráclito, que dizia que tudo era mutável, extremamente incerto e inconstante. Que ninguém poderia banhar-se num mesmo rio duas vezes, pois o rio já seria diferente. E tome blá-blá-blá. Quinze minutos depois, levanto a mão novamente. Nervoso, o professor assentiu com um quase imperceptível movimentar de cabeça. Mandei ver:
– Professor, disso tudo que o senhor está falando, o que me chama a atenção é o seguinte. Na luta de duas consciências, Hegel examina simultaneamente a relação de dois “eu” e a relação de cada eu com sua própria vida. O “senhor”, aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Por conseguinte, ele é mais valoroso do que a própria vida, porque por sua coragem colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Por conseguinte, ele é, de início, escravo da vida e de seus objetos empíricos. Com certeza vai se tornar também escravo do senhor que o conserva a fim de ler em seu olhar temeroso e submisso o reflexo de sua vitória, a fim de se fazer reconhecer como consciência. Não é isso?...
Dessa vez, o professor quase enfartou. A turma inteira (dava pra ler nos olhos) queria me encher de porrada. Aqueles medíocres funcionários públicos, que estavam fazendo uma faculdade para ganhar 10% de aumento ou colocar o diploma emoldurado na mesa de trabalho, começaram a se incomodar com o moleque petulante (de camiseta “tye-dye”, macacão Lee, alpercatas nordestinas, cabelão encaracolado, sem um caderno, caneta ou livro nas mãos) que se divertia frescando com o insigne professor. Ele se safou legal:
– Sim, é isso mesmo. Mas, como já falei antes, essa discussão vai ser mais bem aprofundada quando vocês estudarem Filosofia Moderna. Por enquanto, vamos nos ater aos paradoxos de Zenão de Eléia sobre o movimento...
E começou a explicar que se Aquiles apostasse corrida com uma tartaruga, ambos correndo em linha reta com velocidades constantes, e desde que a tartaruga, por ser mais lenta, começasse a corrida por primeiro, Aquiles jamais voltaria a lhe alcançar.
O que despertava a fúria dos barnabés era o fato de eu fazer a pergunta, me debruçar pra trás e fechar os olhos, como se estivesse saboreando deliciosamente a possível resposta do mestre. Explicar que aquilo era reflexo de meia dúzia de cervejas ingeridas apressadamente seria convite certo para um linchamento.
Nessa época, as aulas duravam 50 minutos (uma eternidade!) e havia 10 minutos para o recreio. Faltando alguns minutos para a sirene tocar anunciando o fim da tortura, levantei a mão pela terceira vez. O professor fez que não viu, empolgado com sua descrição sobre os teoremas desconcertantes de Tales de Mileto. Fiquei de pé, de mão levantada. Ele me viu e abaixou a cabeça, resignado. Mandei ver:
– Professor, imagine Rousseau, Voltaire, Heine e Hegel reunidos numa mesma e única pessoa – e estou dizendo reunidos e não justapostos – e o senhor vai ter o filósofo Karl Marx. Então, me explique, como é que um apátrida de relacionamentos planetários, um pessimista com extrema confiança na humanidade, um homem sozinho – perseguido pelas polícias de todas as nações, desterrado até em seu campo de conhecimento – e cuja obra se encontrava ainda em estado de esboços desordenados no momento de sua morte, pode ser tão importante nos dias de hoje?...
O professor quase caiu pra trás. Ele começou a gaguejar de novo, as mãos tremendo como se estivesse diante do Capiroto em pessoa, quando tocou a sirene. Foi salvo pelo gongo. Sai da sala, sem olhar pra trás. Os impropérios da turma eram dignos de estivadores do cais do Porto. Foda-se. Nunca mais iria conviver com eles. O Engels que se virasse depois.
Desci para a cantina do ICHL, onde, no “mercado negro”, era possível descolar cervejas em lata. Tomei umas três e subi para, oficialmente, assistir minha primeira aula no curso de Administração. Encontrei no corredor o mesmo professor de Filosofia, sozinho e pensativo, diante da sala ainda vazia.
Meti a mão no bolso do macacão, tirei minha lista de disciplinas, e estava lá: “Introdução à Filosofia”, sala tal, horário tal. Era ali mesmo. Antes de eu entrar na sala, o professor me indagou:
– Você gostou tanto da minha aula que vai querer assistir de novo?...
Tive que explicar a presepada.
Ele riu e deu um toque definitivo: “Você não precisa assistir nenhuma das minhas aulas. Faça apenas as provas. Se depender de mim, você já está passado. A gente volta a se encontrar em Filosofia II, no próximo ano.”
O nome do professor? Amecy Souza, que na época devia ter uns 27 anos.
Muitos anos depois, durante um porre monumental em um dos ensaios da BICA, recordei a história para ele. O outro lado da história que ele me contou foi que quase me matou de susto.
Naquela época, ele lembrou, a gente estava no apogeu dos anos de chumbo. O exército brasileiro estava acabando de esmagar a guerrilha do Araguaia. Os arapongas do SNI estavam caçando colaboradores da guerrilha nos centros urbanos. Seu pai, Jamaxi Souza, ex-presidente do Sindicato dos Gráficos, era membro do Pecebão, camarada do velho Romeu Medeiros, pai do Engels. Ele conhecia a família toda (Romeu, Alice, Romeuzinho, Laiton, Sigrid, Engels e André). Quando me identifiquei como sendo Engels, ele começou a esperar pelo pior. Mas não passou recibo.
Quando insisti em discutir questões idealistas, a partir da ótica de Hegel, ele sentiu que estava diante de um “agente provocador” e se fechou em copas. Na hora em que enveredei pela discussão sobre Karl Marx, querendo que ele se posicionasse a respeito, ele deduziu que sairia dali algemado. Mesmo porque já haviam lhe avisado que havia quatro “arapongas” em sua sala de aula. O primeiro que ele identificara tinha sido eu, um moleque cabeludo, cheio de conversa fiada e jeitão de maconheiro.
Ele estava ali, sozinho, no corredor, antes da segunda aula, porque se os “homens da lei” chegassem para lhe prender, ele poderia gritar para o pessoal lá de baixo, denunciando o que estava acontecendo. Quando lhe expliquei a presepada, ele ficou aliviado.
Na mesma noite, em sua casa, Amecy falou do “incidente” para o seu pai. O velho Jamaxi falou com o velho Romeu. Não deve ter sido uma conversa amistosa.
No almoço dominical da família, o saudoso Romeu Medeiros cobrou explicações do Engels, que quase foi excomungado. Brincar com um assunto sério daquele em tempos tão sombrios, era um pedido formal de encrencas pesadíssimas com o Deops, Doi-Codi, Cenimar, Cisa, SNI e outras siglas que, só de pronunciar o nome, davam arrepios.
Em vez de me contar o acontecido, Engels passou uns seis meses me evitando. Depois, como soe acontecer, esquecemos o assunto. Éramos jovens, pois não.
A sorte é que, por alguma força superior do destino (na época, as turmas eram divididas por letras. Os alunos da letra “A” à letra “M”, estudavam numa turma. Os alunos da letra “N” à “Z”, em outra), acabei tendo como professor de “Filosofia II” o inefável escritor, poeta e padre L. Ruas.
Só voltei a rever o Amecy Souza dez anos depois, durante a fundação da banda da BICA, em 1987. Mas somos amigos de sangue desde aquele primeiro encontro. Acontece.
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2 comentários:
Era uma época pesada, qualquer coisa podia ser uma provocação, meu nome por exemplo, quantas explicações dei aos sulistas que aqui chegaram pelas empresas do pólo eletro-eletrônico. Eles sabiam pouco, mas a igreja não me batizou, queriam um nome santo para o batismo, tanta coisa e deu nisso.
Engels
O Amecy é o melhor professor de Filosofia que eu já conhecir...
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