Fernando Gabeira
“Como vai você/ assim como eu/ uma pessoa comum/ um filho de
Deus/ nessa canoa furada/ remando contra a maré.” Esses versos de Rita Lee
cantados por Marina Lima me vêm à cabeça neste momento da crise brasileira. Uma
canoa furada remando contra a maré. Dois personagens centrais brigam pela
imprensa. Dilma e Cunha estão numa gangorra. Se um deles parar de repente, o
outro voa pelos ares.
Dilma pensa na queda de Cunha, ele pensa na queda dela.
Nenhum dos dois parece capaz de realizar esse feito. Para derrubar Dilma é
preciso um processo conduzido por alguém que não esteja envolvido no escândalo.
Para derrubar Cunha é preciso um tipo de pressão que seus oponentes não fazem.
Na queda de Renan Calheiros, lembro-me bem de que ele não
conseguia presidir sessões do Congresso porque os opositores não deixavam. Não
sei se isso é possível na atual e sinistra correlação de forças na Câmara. No
fundo, seria mais uma paralisia num quadro de desalento e grandes dificuldades
econômicas. Esse impasse político faz da retomada do crescimento, ainda que em
novas bases, uma outra canoa furada. Com todos os personagens centrais, Renan
incluído, tentando se equilibrar, falta energia para pensar no país.
O projeto de Joaquim Levy passa pela CPMF. Mais uma furada.
O imposto não será aprovado no Congresso, mesmo se usarem parte dele comprando
deputados. Ninguém vende o próprio pescoço num momento em que os eleitores
estão atentos. Levy sempre poderá buscar outros meios, como a Cide, de
combustíveis, por exemplo. Mas, derrotado com a CPMF, teria força para esse
novo movimento? Além disso, há as repercussões inflacionárias.
O ajuste possível e necessário para avançar não tem chance
de ser feito. O clima político é de salve-se quem puder. Se fossem personagens
de House of Cards, a série de TV americana, até que seria divertido ver o
desenrolar de seu destino.
Não canso de lembrar: eles estão aqui, entre nós. Já vamos
encolher este ano e em 2016. O número de desempregados cresce e isso é um tema
ofuscado pela briga lá em cima da pirâmide.
Outro tema que passa batido são os impactos econômicos do El
Niño. As chuvas provocam grandes estragos no Sul e a seca em muitas partes do
Brasil é intensa. Pode faltar água nas metrópoles do Sudeste. Com a seca vêm as
queimadas. Os incêndios em áreas de conservação em Minas cresceram 77%. São 421
focos. O governo do estado lançou um plano de emergência de R$ 8 milhões, mas
os prejuízos são muito maiores e talvez o dinheiro seja curto. Se computarmos
os estragos das cheias, da seca e das queimadas, vamos nos dar conta de que
estamos num ano de forte El Niño.
No Brasil é um El Niño abandonado. Não houve planejamento.
Em Minas o procurador de meio ambiente, Mauro Fonseca Ellovitch, culpa a
imprevisão do governo. Mas é um problema nacional. Quem vai cuidar do El Niño
com tantas batalhas políticas pela frente?
O fogo comendo aqui embaixo e os malabaristas divertindo a
plateia com seus saltos. O PT é o mais sofisticado deles. Resolveu se opor a
Joaquim Levy.
Dilma arruinou o país e precisou de Levy para sanear as
contas. De modo geral, isso ocorre em eleições, quando o perdedor deixa para
trás uma terra arrasada. Mas o PT ganhou as eleições. Se tivesse perdido,
ficaria mais confortável na oposição ao ajuste. Na ausência de um governo
adversário, o PT coloca um adversário no governo. Sabendo que Levy propõe
medidas duras e tende a fracassar, o PT estará com seu discurso em dia.
O movimento é mais sutil porque tenta atribuir todas as
dificuldades do momento à política de Levy, mascarando o imenso rombo deixado
pelo próprio governo. Duvido que Dilma e o PT não tenham combinado o clássico
movimento morde e assopra. Tanto ela como o PT precisam de Levy: ela para
acalmar os mercados e o partido para bater nele.
Outra figura polivalente para o PT é o próprio Eduardo Cunha.
Derrubá-lo ou não derrubá-lo? É preciso um bom número de deputados do partido
para assinar o pedido no Conselho de Ética. E um bom número para ficar calado,
uma tática de não agressão. É preciso ser contra Cunha e trabalhar nos
bastidores para mantê-lo. Enquanto encarnar a oposição no Parlamento, Cunha
será apenas um roto falando do esfarrapado.
Em Estocolmo, Dilma alvejou Cunha, referindo-se ao
escândalo: pena que seja com um brasileiro. É um pequeno malabarismo para
reduzir o maior escândalo da História a um samba de um homem só. Ainda assim,
os aliados acharam que foi um movimento de guerra. Talvez tenha sido inábil no
quadro de um acordo de paz, em que ninguém derruba o outro.
Dilma foi à Suécia ganhar o Prêmio Nobel de inabilidade. Foi
inspecionar os objetos mais caros que o Brasil comprará: os caças de US$ 4,5
bilhões. Nada contra a Aeronáutica nem contra os caças suecos. Vivemos na
penúria perdendo empregos, lojas fechando, cortes de gastos. Recém-condenada
pelo TCU por esconder um rombo no Orçamento, ela escolheu como gesto político
reafirmar a compra dos caças. E nos deixou como consolo o corte de 10% no
salário dos ministros.
Os tempos mudaram tão rapidamente que já não consigo
entender a lógica das agendas presidenciais. Alguém deve ter dito: vamos dar
uma resposta ao TCU posando diante dos caças suecos, isso levanta o ânimo da
galera. Depois de pedalar, Dilma entra num caça. Recentemente, testou um carro
sem piloto. Ela parece gostar de veículos, movimento. Amante da poesia mineira,
corre o risco de parafrasear Drummond: no meio do caminho, havia um trator.
Para muitos, o processo ainda parece dar-se num universo
distante e autônomo, como se fosse mesmo um programa de TV ao qual se pode
assistir, mas não alterar o seu curso. Aos que não acreditam nisso, resta a
esperança da ação, a certeza de que presidentes caem e sistemas políticos perversos
como o brasileiro podem ser reformados.
Ainda que palhaços e malabaristas nos divirtam, será preciso
botar fogo no circo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário