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sábado, outubro 31, 2015

Moacir Andrade: paixão perene pela cultura amazônica (2)


Em 1946, Moacir Andrade começou a trabalhar durante o dia como auxiliar de escritório da firma comercial Ciex S.A., de Isaac Benzecry, que se tornou seu grande amigo e um dos principais incentivadores para que o artista se dedicasse ao paisagismo amazônico, e na parte da noite, dava expediente como revisor do Jornal do Commercio.

Durante uma reunião informal de jornalistas, no Café do Pina, na Praça da Polícia, ele conhece Aristóphano Antony, proprietário do vespertino “A Tarde”. A conversa entre os dois sobre cultura, antropologia e folclore amazônico rendeu a Moacir um convite para colaborar no vespertino.

Seus primeiros textos, indicando uma futura carreira de escritor, historiador e poeta, são publicados em “A Tarde”. Foi também no Café do Pina que Moacir conheceu o lendário jornalista Ubiratan de Lemos, um dos mais talentosos repórteres da revista O Cruzeiro, pertencente ao empresário e jornalista Assis Chateaubriand.

Em 1948, Moacir foi contratado como desenhista de construção civil da empresa Mário Novelli, que construiu o Sanatório Adriano Jorge, no bairro da Cachoeirinha. No mesmo ano, a convite do jornalista Assis Chateaubriand, realiza sua primeira exposição no Rio de Janeiro, no salão de eventos do charmoso Hotel Glória, onde conhece os grandes intelectuais da então capital da República: Austregésilo de Ataíde, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Vinícius de Moraes, Pascoal Carlos Magno, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Guilherme de Almeida, Dinah Silveira de Queiroz, Antônio Olinto, David Nasser, Graciliano Ramos e Leandro Tocantins, entre outros.

O jornalista e escritor Graciliano Ramos é um dos mais empolgados com a exposição e publica o seguinte texto no jornal carioca Correio da Manhã:

Moacir Andrade, pintor, historiador, poeta, investigador, desenhista, é homem de mil atividades culturais, ressaltando-se, e com justa razão, a de pintor, na qual sua contribuição às artes do Brasil é incalculável. A vocação de artista plástico veio-lhe muito cedo, quando ainda era uma criança de apenas seis anos. Aos quatorze anos já demonstrava o seu poder inato de um futuro artista. Mais tarde, muito mais tarde, nos idos de 1941, o pintor já mostrava para os céus as suas poderosas asas de pássaro de grande voos. Caracterizou-o, entretanto, um acendrado amor pela sua terra, pela sua gente e se existe obra que possa ser chamada de brasileira é a dele.

Moacir Andrade não tem somente o amor pelo Brasil, tem também o orgulho e, na defesa de seu nacionalismo, empenha-se em polêmicas que se tornaram famosas. Se seus assuntos são o homem e a terra do Brasil, apanhados do Norte a Sul, a forma com que os explora é também brasileira, pela sintaxe das cores que emprega em seus quadros e pelos modismos que introduz nos pequenos retângulos de sua obras, pois foram seus quadros que lhe deram nomeada nacional e foram, inclusive, mostrados nos salões oficiais deste Brasil. O Brasil do campo, o Brasil dos beiradões dos rios amazônicos e dos pequenos povoados estão presentes em sua obra luminosa, assim como o homem da sociedade, o homem da rua e o caboclo dos igarapés.

Moacir Andrade, como um ambicioso esteta, abarcou em suas telas os aspectos mais variados da nossa sensibilidade e da nossa formação, constituindo sua obra um painel a que nada falta, inclusive o caboclo aculturado que nela tem participação considerável. Moacir Andrade, como expoente máximo da arte brasileira, manifesta-se como um anjo do bem e do mal diluído em cores. Moacir Andrade é o expoente robusto da caboclitude, da expressão estética da nossa inteligência. Nenhum outro pintor tem em mais alto grau a alma brasileira materializada em quadros. Houve e há quem lhe aponte no estilo algo de pomposo e de declamatório com a sua paixão pela natureza, de que sempre se utiliza em suas características e imagens.

Moacir Andrade foi o primeiro artista brasileiro a usar suas tintas à base de seiva de plantas, obtendo, com isso, um resultado surrealista e abstrato. Ele é um virtuoso da paleta, cujos valores consegue explorar na direção que pretende, seja reproduzindo o clima variado da sua região, seja usando o diapasão mater, seja ostentando numerosas outras direções estéticas simbolistas modernas na sua maneira livre de criatividade, em sua composição medida, versátil e hábil, todas essas diretrizes que se observam em sua obra. Hoje, com apenas vinte e um anos, desfrutando os mais altos degraus da fama, Moacir Andrade certamente desfrutará, ainda neste século, o que nenhum artista nacional ou estrangeiro desfrutará nas enciclopédias. Recebe, pois, o meu abraço, Moacir Andrade.


Em 1950, Moacir Andrade se junta ao engenheiro José Florêncio da Cunha Batista e dá início a um escritório de desenhos técnicos e projetos de construção civil, localizado na Rua da Instalação nº 109, onde trabalharia por 20 anos. Simultaneamente, Moacir fez vários concursos para professor conquistando sempre os primeiros lugares. Por conta disso, exerceu o cargo de professor de desenho e educação artística na Escola Normal São Francisco de Assis, do saudoso professor Fueth Paulo Mourão, na Escola Normal Benjamin Constant, no Colégio Estadual do Amazonas, na Escola Técnica Federal do Amazonas, no Colégio Militar de Manaus e na Universidade do Amazonas. Moacir também fez um concurso para Cartógrafo do Ministério da Aeronáutica, obtendo a maior nota da região norte do país.

– Nos meus quadros, eu trabalho com o telurismo, com o regional, com as coisas autóctones, com todo o mistério que caracteriza a Amazônia – diz ele. – Mas não sou um pintor, sou antes de tudo um professor. Ser professor, para mim, é um estado de espírito e de bem-estar social. Pintar, fazer poesias e escrever ensaios antropológicos e memorialísticos foi apenas um desdobramento natural do fato de eu ser professor.

No dia 9 de maio de 1953, Moacir Andrade se casou com a senhora Graciema Britto de Andrade, com quem teve cinco filhos: Gracimoema, Lúcia Regina, Graciema, Maria do Carmo e Moacir Junior. O casal também adotou uma nova filha, Raimunda Santos da Cruz.

No ano seguinte, em companhia de Jorge Tufic, Anthístenes Pinto, Alencar e Silva, Saul Benchimol, Teodoro Botinelli, Farias de Carvalho, Francisco Vasconcelos, Óscar Ramos, Luiz Bacellar e Afrânio de Castro, entre outros, ele participa da fundação do Clube da Madrugada, sob o pé de uma frondosa árvore localizada na Praça da Polícia Militar, que denominaram de “Mulateiro” ou “Banco dos Patos”.

No mesmo ano, sob os auspícios da recém-fundada sociedade cultural, realizou uma exposição de seus quadros nos salões do Ideal Clube, ocasião em que recebeu grande consagração por parte do público que prestigiou o evento, e iniciou sua carreira de escritor com a publicação do livro de poemas “Lauréis”.

Em 1955, a pedido da União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas (UESA), Moacir Andrade inaugura um curso gratuito de desenho e pintura, com ênfase no ensino de desenho geométrico plano, aberto a todo e qualquer aluno filiado à entidade. No mesmo ano, expõe seus novos trabalhos no hall da Biblioteca Pública, localizada na Rua Barroso, esquina com a Av. Sete de Setembro. Em julho, a convite do jornalista Assis Chateaubriand, realiza uma nova exposição no Rio de Janeiro, dessa vez na Galeria Bonino, em Copacabana.

O poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto registrou o evento:

Gostei de ter conhecido, conversado e ter convolado amizade com esse sertanejo nortista da Amazônia, de ter observado com atenção, respeito e admiração, seus quadros construídos com o material mais caro e mais raro nos nossos tempos atribulados de hoje em dia: a imaginação criadora. Moacir Andrade não é igual à maioria de seus colegas pintores que tenho conhecido através desse mundo de Deus, nas minhas viagens como diplomata. Ele é autóctone, singular, único, solitário, no seu mundo artístico das selvas selváticas. Ele não imita, não rouba as ideias alheias. Ele arranca das regiões abissais de suas entranhas toda uma população de fantasmas que habitam o seu mundo interior, agasalhados como tesouros indevassáveis em sua alma de artista genial.

Sim, porque Moacir Andrade é um gênio que materializa em cores, formas e conteúdos toda uma multidão de seres mitológicos que habitam aquela região alagada por muitas águas de que ele é feito. Descendente de nordestino – seu pai, Severino, filho de portugueses, trocou o sertão seco, esturricado, faminto do nordeste, pelo sertão úmido e afogado daquela incomensurável pátria das águas –, ele se manifesta um telúrico, um amazônida impregnado de todas essas cicatrizes ancestrais de portugueses e índios.

Moacir não pode escapar de sua ancestralidade que manifesta não só em seus quadros monumentais, mas na poesia, na maneira de falar, de se comunicar com as pessoas. Homem de cultura superior e jornalista, poeta, conferencista, contador de histórias (o seu humor é inimaginavelmente empático), tem o poder de logo conquistar as pessoas. Basta saber dos convidados que afluíram à sua mostra na Galeria Bonino, em Copacabana, patrocinada pelo patrono da comunicação que é o jornalista Assis Chateaubriand onde compareceram artistas como Manoel Bandeira, Ubiratan de Lemos, Marcos Acyoli, David Nasser, Pascoal Carlos Magno, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Áureo Melo, Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Paulina Kaez, além de dezenas de convidados, todos seus amigos e admiradores. Seus quadros, depois dessa mostra, deverão viajar para a Europa onde, certamente, receberão a consagração que bem merecem.

Moacir Andrade ainda faria mais duas exposições, em Manaus, antes de sair para conquistar o resto do Brasil e, de lá, conquistar o mundo: em 1957, nos salões do Ideal Clube, e em 1958, novamente no hall da Biblioteca Pública.

Em 1958, patrocinado pelo empresário Adalberto Vale, Moacir Andrade viaja para Brasília (DF) e mostra seu trabalho nos salões do Brasília Palace Hotel. Entre os ilustres convidados que prestigiaram a exposição estava o presidente Juscelino Kubitschek.

– Belíssimos quadros. O Amazonas é grande até nos seus artistas! – declarou JK.

Foi o primeiro elogio público recebido por Moacir Andrade de uma alta autoridade federal. Talvez por conta desse “empurrãozinho” presidencial, ele vendeu todos os quadros que expunha no mesmo dia.

Ainda patrocinado pelo empresário Adalberto Vale, Moacir Andrade realiza uma nova exposição no Museu de Arte de São Paulo, o famoso MASP, encantando a Pauliceia Desvairada.

– Esse artista amazonense conseguiu atingir a plenitude de uma obra pictórica – assegurou Pietro Maria Bardi, presidente do museu. – Seus quadros são de um colorido equilibrado e bem distribuído. Parabéns ao Dr. Adalberto Vale por ter trazido ao Museu de Arte de São Paulo um artista do quilate de Moacir Andrade.

– A pintura do artista Moacir Andrade tem a marca forte e segura do mestre maduro que já traçou o seu caminho na difícil saga da criatividade – observou o importante crítico Sérgio Milliet. – Ele sabe aplicar com maestria as tonalidades do verde, do azul e do amarelo, da mesma maneira como dispõe as figuras no formidável cenário amazônico, manifestado em cada quadro que compõe a sua magnífica obra, toda ela uma sinfonia de amor e sentimento. Há equilíbrio, harmonia, muita beleza que despertam empatia e muita emoção estética no conjunto, assim como uma grande sensação de movimento e dinamismo em todos os componentes do quadro. Parabenizo o meu velho amigo Pietro Maria Bardi pela oportunidade de mostrar, ao público de São Paulo, este singular artista amazonense e sua excelente obra.

No final de 1959, Moacir Andrade mostra seus novos trabalhos na Galeria Montmarte-Jorge, em Copacabana, no Rio de Janeiro.

– Quando Ubiratam me disse que Moacir Andrade era um gênio, não duvidei, mas agora vi que seus quadros são realmente lindos – suspirou a cantora Dolores Duran.  – Parabéns!


O ensaísta e jornalista Otto Maria Carpeaux escreveu um pequeno texto para o jornal Correio da Manhã, dando conta da impressão positiva que aquelas obras haviam produzido no seu espírito:

Numa casa à beira de um barranco, deitado sobre o rio Solimões, um menino loiro, magro, olhos rasgados em forma de amêndoas, olhava os imensos cardumes de botos cinzentos que boiavam de instante em instante à superfície das águas barrentas como se dançassem um ritmo qualquer de balé. Talvez, naquele instante de silêncio e observação, um mundo de personagens mitológicos estivesse alicerçando um edifício estético na mente daquela criança magra, que se comprazia em riscar a superfície das praias brancas, que afloravam do rio na baixada de suas águas.

Como um Anchieta caboclo, o menino desenhava horas e horas sobre a areia, um poema mitológico, talvez uma mensagem ancestral psicografada pelo inconsciente, de datas sem cronologia. Ouvia estórias de velhos índios aculturados, seus parentes recuados que lhe transmitiam uma mensagem tão antiga como sua origem. Cada palavra que ouvia registrava em seu subconsciente como uma gravação em fogo. Aquilo era uma linguagem mágica para os ouvidos do pequeno caboclo que dormia e sonhava com mundos inconscientes, imagens fantásticas e indefinidas.

Esse menino, que cresceu alimentado pelas águas e as lendas da grande calha amazônica, jamais pensou que hoje, 33 anos depois, viesse situar-se entre os melhores pintores do Brasil. Seu nome? Moacir Andrade.

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