Moacir Andrade é o nome artístico de Moacir Couto de
Andrade, filho de Severino Galdino Andrade e Jovina Couto de Andrade, nascido na
Santa Casa de Misericórdia, em Manaus, às 10 horas do dia 17 de março de 1927,
numa manhã chuvosa em plena época carnavalesca, dia em que se comemorava o aniversário
de Santa Gertrudes, sua padroeira.
O professor Temístocles Pinheiro Gadelha foi escolhido como
padrinho de Moacir e como madrinha, a professora Clotildes de Araújo Pinheiro,
filha única de Fausto Pinheiro, um importante comandante fluvial da Amazon
Rivers & Company Limited. Seu batizado foi realizado pelo frei José de
Leonissa, capelão da igreja de São Sebastião.
Logo após o seu nascimento, Severino e Jovina, com o filho
Mozart, de apenas um ano, e Moacir, com poucos dias de nascido, viajaram para a
zona rural de Manacapuru, onde a família de Jovina possuía um vasto terreno.
Sem trabalho em Manaus, pois Severino era mestre-de-obras e já há muito as
construções estavam completamente paralisadas na cidade pela absoluta falta de
dinheiro decorrente do debacle da borracha, ele resolveu tentar a vida no
interior como agricultor, pescador e caçador de subsistência.
Severino instalou sua família num terreno de mais de 5 mil
metros de frente para o rio Solimões. Ali, o mestre-de-obras construiu sua
barraca de palha e paxiúba, onde acomodou sua mulher e os dois filhos. Jovina
era professora normalista assim como suas outras irmãs, Maria (“Mariquinha”),
Josefa e Camila. Enquanto Severino cuidava da roça, Jovina ensinava as
primeiras letras para os caboclinhos da vizinhança. Com cinco anos, Moacir e
Mozart já sabiam ler, escrever e contar.
Em 1933, quando Moacir Andrade tinha apenas seis anos de
idade, a família resolveu retornar para Manaus a fim de dar uma melhor educação
aos filhos. Ao chegarem a Manaus, instalaram-se num hotel de seringueiros no
final da Av. Joaquim Nabuco, depois se mudaram para um quarto de estância à Rua
Miranda Leão e depois para a Rua dos Andradas, onde os meninos foram
matriculados no Grupo Escolar Nilo Peçanha, na Av. Joaquim Nabuco. Algum tempo
depois, se mudaram outra vez para a Rua Ramos Ferreira e, finalmente, foram
morar na Rua Dr. Machado nº 115.
Foi nesse tempo que Moacir começou a frequentar a residência
de sua madrinha Clotildes de Araújo Pinheiro, localizada na Av. Joaquim Nabuco,
nas proximidades da Primeira Igreja Batista de Manaus. Ali, Moacir, incentivado
pela sua madrinha, começou a desenhar em papel com lápis da marca alemã Johan
Faber nº 6, muito comum naquela época.
Mais tarde, sua mãe o matriculou no Grupo Escolar Ribeiro da
Cunha, na Rua Silva Ramos, onde o menino estudou do terceiro ao quinto ano do
curso primário. Foi também nesse grupo que Moacir conquistou seu primeiro
prêmio como artista plástico, por ter desenhado à mão livre a fachada daquele
colégio público, quando cursava o quarto ano primário, em 1937.
Segundo o próprio Moacir Andrade, a grande influência para
sua dedicação precoce às artes plásticas veio da profissão de seu pai:
– No final do século 19, aí por volta de 1896, 1897, quando
Manaus foi incendiada pela febre das construções residenciais provocada pelo
dinheiro fácil oriundo do alto preço da borracha, muitos pedreiros portugueses
chegaram à cidade, vindos dos mais distantes recantos de Portugal, para se
dedicarem à construção de prédios com as características da art noveau da
época, experiência que eles já haviam exercitado nas colônias africanas
ultramarinas.
Eles eram exímios construtores de casas com fachadas de
uma porta e duas janelas altas, pé direito com cinco metros e porão arejado com
gateiras que correspondiam ao número de janelas. Meu pai, apesar de
pernambucano, foi um desses profissionais que ajudaram a fazer da capital
amazonense a cidade sorriso, com suas casas pintadas de várias tonalidades de
cores quentes, forradas em dois níveis com madeira importada, telhados com
quatro águas e fachadas encimadas com belíssimos frontões, cheios de desenhos
em alto relevo e monogramas com as iniciais dos proprietários e o ano de suas
construções.
Todas as ruas do centro da cidade eram cheia dessas
construções, que datam de 1898 até 1920, quando a borracha perdeu sua
competitividade internacional e o sonho acabou. Dentre os grandes pedreiros que
se dedicaram a esse ofício e construíram os mais belos frontões de Manaus
estava o português Clara, um sujeito de altura avantajada, vermelho como um
pimentão, olhos profundamente azuis, que muitas vezes vi sobre os altos
andaimes, esculpindo ou reformando velhos frontões das muitas casas de Manaus,
em companhia do meu pai. Lonas enormes cobriam o local de trabalho do Clara,
pois todo esse exercício era realizado longe da vista dos curiosos e de outros
colegas que desejavam imitá-lo. Clara tinha o cuidado de esconder seu trabalho
para não revelar o segredo da criação de tão belas peças, que trouxera consigo
de Lisboa, onde aprendeu a profissão.
Meu pai trabalhou muitos anos como ajudante do Clara.
Considerando que o português era sem dúvida o mais capacitado e o maior artista
nesse ramo da construção civil, meu pai teve a oportunidade de ouro de aprender
com esse excelente profissional o segredo de esculpir em cimento e cal aquelas
belíssimas obras de arte, das quais são poucas as remanescentes da destruição
provocada pelo advento da Zona Franca de Manaus. Meu pai morreu em fevereiro de
1945 e deixou num velho barracão de madeira, no fundo do quintal de nossa
residência, dezenas de formas com os mais variados padrões de ornamentos. Muito
deles eu cheguei a reconhecer em vários frontões, antes que começasse a
derrubada desse singular patrimônio arquitetônico pelos comerciantes que
invadiram a cidade, atraídos pelos incentivos da área de livre comércio. No meu
livro “Manaus, Ruas, Fachadas e Varandas”, de 1984, eu conto em detalhes essa
triste história.
Terminado o curso primário, Moacir Andrade foi matriculado
no 1º ano ginasial do Ginásio Amazonense Pedro II, em 1939. Com a notícia da
abertura do Liceu Industrial de Manaus, dedicado ao ensino profissionalizante,
cuja inauguração oficial de suas novas instalações ocorreria no dia 10 de
novembro de 1941, data da implantação do Estado Novo pelo caudilho Getúlio
Vargas, seus pais, em comum acordo com seus padrinhos, decidiram interna-lo
nesse novo estabelecimento de ensino secundário profissional, tendo em vista
que o menino era um exímio desenhista e suas pinturas já despertavam admiração
nas autoridades da época.
Para as solenidades de inauguração das novas instalações da
escola, o Diretor de Instrução Pública, Dr. Claudiomiro Leite, juntamente com o
Diretor do Liceu, Dr. Luiz Paulo Sarmento, resolveram realizar uma mostra de
seus desenhos e pinturas, cuja exposição foi carinhosamente organizada pelo
então professor de desenho Pojucan Rafael de Souza, seu antigo mestre e amigo.
Assim, a primeira mostra de arte individual de Moacir
Andrade, com os desenhos que ele vinha fazendo na residência de sua madrinha
desde 1934, acabou se transformando em um evento muito concorrido dentro do
programa oficial.
Em fevereiro de 1942, sua mãe internou-o no Liceu Industrial
de Manaus, onde ele ficou até 1945, quando concluiu o curso industrial – equivalente
ao curso ginasial. Na sequência, Moacir Andrade matriculou-se no Colégio
Brasileiro, do professor Pedro Silvestre da Silva, onde concluiu o curso de
contabilidade, e depois fez o curso científico no Ginásio Amazonense Pedro II,
atual Colégio Estadual do Amazonas.
Dotado de uma memória prodigiosa, Moacir Andrade guarda
algumas recordações pitorescas dessa sua época de adolescente.
– Eu fui internado no Liceu Industrial de Manaus para fazer
o primeiro ano industrial um mês antes de completar meus 15 anos. Por ser muito
tímido, eu acreditava em tudo que os mais velhos me falavam, principalmente se
fossem professores, que eu considerava uma classe extremamente importante e
impoluta.
Em 1943, em plena guerra mundial, havia dois médicos no liceu
que eram muito queridos pelos alunos: o Dr. Djalma da Cunha Batista, tisiólogo
de grande capacidade e festejado por toda a sociedade de Manaus, e o Dr. Jorge
Abrahim, sendo que ambos eram amigos íntimos do professor Kideniro Teixeira e
do antropólogo Nunes Pereira.
Os quatro se reuniam diariamente para discutir assuntos
literários e científicos. Kideniro Teixeira era poeta e professor de português
do Liceu Industrial de Manaus, que depois passou a chamar-se Escola Técnica de
Manaus, depois Escola Técnica Federal do Amazonas, depois Centro Federal de
Tecnologia (CEFET), hoje Instituto Federal do Amazonas (IFAM).
Em dezembro daquele ano, época das provas finais do curso,
eu estava estudando biologia numa das salas de aula, quando, de repente, entrou
na sala o Dr. Djalma Batista, acompanhado de Nunes Pereira e Kideniro Teixeira.
O antropólogo aproximou-se de mim e perguntou-me o que eu estava estudando.
Respondi-lhe que estava estudando a parte da biologia que diz respeito ao
sistema digestivo, que seria minha prova oral. Eu havia feito um resumo e
estava decorando o texto para não esquecer nenhuma palavra. Nunes Pereira
mandou que eu lesse o resumo para que eles ouvissem. Não me fiz de rogado. Li
toda a lição começando pela boca e terminando pelo reto.
Nunes Pereira, que eu conhecia somente de vista, me parecia
um homem muito importante e sério, pois só falava com o Dr. Djalma Batista e
Kideniro Teixeira, daí eu confiar plenamente em tudo que ele dizia. O
antropólogo falou que o que eu estava decorando não correspondia com a verdade,
explicando que o sistema digestivo não terminava no reto, mas num esfíncter
chamado cu, fato confirmado pelos seus dois acompanhantes. Ele mandou que eu
recitasse alto, de novo, mas desta vez dizendo que o sistema digestivo terminava
numa abertura ou esfíncter chamado cu. Fiz o que ele me pediu, já que confiava
plenamente na palavra de Nunes Pereira, ainda mais contando com a aprovação de
outros dois renomados intelectuais.
Alguns dias depois, com a sala cheia de alunos que seriam examinados,
fui chamado pela professora que, por sinal, era extremamente moralista e
católica fervorosa. A lição estava decorada na ponta da língua. Não demorou
muito e fui chamado pela banca examinadora, constituída de três mestres, para
falar sobre o assunto. Cheio de vaidade e orgulho besta, comecei a declamar bem
alto a lição, começando pela boca até finalmente concluir que o aparelho
digestivo terminava em uma abertura vulgarmente denominada de cu. Ao ouvirem
essas palavras, meus colegas de classe irromperam em uma estridente gargalhada,
a qual logo se seguiu um silêncio tumular. A professora, espumando de ódio,
olhou para mim e perguntou:
– Terminou?
– Sim, professora, terminei! – respondi, timidamente.
Ela bateu nervosamente na campainha sobre a mesa, chamando o
inspetor de alunos:
– Leve esse boca-suja daqui, imediatamente! – disparou. – E,
como castigo, coloque ele sete dias na prisão disciplinar! Também não esqueça
de deixar bastante sabão e creolina pra ele lavar a boca...
Eu não sabia onde me esconder, de tão nervoso que fiquei. Tirei
zero na prova oral. Como tinha tirado dez com louvor na prova escrita não fui
reprovado. A nota mínima para ser aprovado era cinco. Naquela época, a
disciplina do colégio era ministrada pelo Exército, que tomava conta
principalmente dos alunos internos. O inspetor de alunos era um sargento
camarada, mas cônscio de suas responsabilidades militares. Fui trancado numa
sala no pavimento superior, entre o teatro e o dormitório, onde tinha um
banheiro, uma cama e um armário, além de uma janela que dava para o pátio
interno. Só saía dali para as refeições, para assistir as aulas ou para ir à
enfermaria por algum problema, mas sempre acompanhado por um soldado.
Quando os autores da minha desgraça souberam o que havia
acontecido foram à sala onde eu estava preso, oportunidade em que expliquei o
que ocorrera. Na mesma hora, Nunes Pereira foi buscar um dicionário de Cândido Figueiredo
e me mostrou que eu estava certo, que a palavra era aquela mesma e que estava
devidamente inserida no mais importante dicionário do país. O antropólogo me
garantiu ainda que eu devia lutar pelos meus direitos e que deveria mostrar ao
diretor a injustiça que estava sofrendo por ter simplesmente citado uma palavra
de uso comum e já devidamente dicionarizada.
Nunes Pereira ensinou-me como explicar a situação para o Dr.
Paulo Sarmento, que além de diretor do liceu, era presbiteriano, exigente e
muito rígido na aplicação disciplinar. Como estávamos em plena ditadura de
Getúlio Vargas, argumentou o antropólogo, ficava muito mal para eu ter a minha
ficha suja com aquela prisão por indisciplina, principalmente em se tratando de
uma instituição federal. O próprio Nunes Pereira escreveu numa folha de papel
tudo o que eu devia dizer ao diretor, devidamente decorado, sem esquecer uma
vírgula.
Fui à diretoria, acompanhado do inspetor de alunos, pedi
licença à secretária e, conforme havia sido instruído, falei ao diretor:
– Senhor Diretor. Por que somente os cabelos, os olhos, os
braços, as pernas, o corpo, as mãos – veja as mãos de Eurídice, existe poema
mais lindo? – são glorificados em prosa e verso e não o cu, palavra de uso
corrente e perfeitamente dicionarizada pelos nossos maiores linguistas? Por que
essa discriminação abjeta contra o cu, quando todos nós sabemos de sua extrema
importância para o organismo, embora tenha nascido tão escondido e esmagado por
duas muralhas da bunda? Por que essa discriminação arbitrária contra o pobre
cu, sempre asfixiado, coitado, sob o peso do corpo que sentamos? Por que,
senhor Diretor, me diga por quê?...
O diretor, fixando-me com seus olhos intensamente azuis, sem
dizer uma palavra, fez um sinal quase imperceptível para o inspetor de alunos se
aproximar e me deu 30 dias de prisão...
Um comentário:
Esse era o poeta. GENIAL>
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