Wilson H. Silva
Trazendo toda a poesia e prosa de Torquato, além de parte de sua correspondência, Torquatália é essencial para quem quer conhecer um poeta que não só trabalhou com quem havia de melhor naqueles anos, como também, mesmo depois de sua morte, continua influenciando a cultura nacional. Basta lembrar que, em 1988, os “Titãs” musicaram seu poema Go Back.
Para completar o mergulho no universo de Torquato, há uma outra leitura possível e necessária. No início de 2005, Toninho Vaz lançou Pra Mim Chega! (Editora Casa Amarela), um resgate da vida e obra do poeta. Tomando como título uma frase deixada no bilhete de suicídio do poeta, o livro de Toninho Vaz trança um perfil de um sujeito em que melancolia constante, altas doses de timidez e introspecção se mesclavam com uma personalidade marcada pelo radicalismo, uma postura nitidamente anarquista diante da vida, levada na base dos excessos e da total entrega à paixão.
Uma vida marcada por sucessivas tentativas de suicídio, que culminaram na sua morte no dia 10 de novembro de 1972. Depois de festejar seus 28 anos, despediu-se da mulher, Ana Maria, trancou-se na cozinha, escreveu seu último texto e ligou o gás.
No livro, Toninho Vaz especula se a bissexualidade e uma possível paixão por Caetano estariam entre as razões do suicídio. Hipótese que levou sua ex-mulher a tentar desautorizar a publicação da obra. Independente, contudo, do que o tenha levado a uma morte tão prematura, lembrar de Torquato é lembrar de uma vida curta, mas muito bem vivida.
A alma da geléia tropicalista
Chamado por Toninho Vaz de o “ideólogo do movimento Tropicalista”, Torquato, de fato, talvez tenha sido o sujeito que melhor traduziu o movimento. O Tropicalismo foi uma reedição espontânea e anarquizada da concepção do modernista Oswald de Andrade, que,
Apropriando-se de elementos da cultura “pop”, que explodia mundo afora, festejando o “desbunde”, que revolucionava o comportamento sexual nos anos pós-pílula anticoncepcional, ainda marcado pela vaga de rebeldia que varrera o mundo, em 1968, mas, no caso brasileiro, cada vez mais presos às amarras da ditadura, que já se transformara em repressão assassina, os jovens tropicalistas tentaram mergulhar numa viagem cultural que re-oxigenasse um país cada vez mais sufocado e sufocante. Uma tentativa utópica e, por isso mesmo, digna de nota.
O anjo torto
O caráter “antropofágico” da obra de Torquato Neto é um reflexo de sua própria vida. Nele, a idéia de “geléia geral” é um fato. Sua vida e obra são resultados de uma mistura constante de coisas e “gentes” das mais variadas tradições. O poeta não se ateve aos limites das fronteiras regionais ou nacionais, aos limites das atividades “especializadas” ou à distinção entre os meios de expressão.
Nascido em Teresina (PI), estudou em Salvador e conheceu Caetano Veloso e Maria Bethânia. Em 1962, foi para o Rio de Janeiro. Em 1968, acompanhando a leva de artistas que haviam sido exilados ou optaram pelo auto-exílio, Torquato partiu com Ana Maria para Londres, onde ficou até o início de 70. De volta ao Brasil, ligou-se ao chamado Cinema Marginal, com Júlio Bressane (Matou a Família e Foi ao Cinema) e Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha). Ficou amigo de Ivan Cardoso, que anos depois produziu o documentário Torquato Neto, o Anjo Torto da Tropicália, cujo título é baseado na letra de “Let´s play that” (veja ao lado), que Torquato fez inspirado em um poema de Drummond.
Ainda na década de 70, Torquato escreveu para diversas publicações, com destaque para o jornal Última Hora, que, entre 1971 e 1972, publicou a antológica coluna Geléia Geral, cujos textos sobre música, artes plásticas, cinema, poesia e modo de vida tornaram-se a tradução mais viva do movimento Tropicalista. No período mais violento da ditadura, Torquato teve a ousadia de fundar uma série de jornais “alternativos”, como Presença e Navilouca.
Engrossando sua geléia com uma deliciosa sopa de letras, Torquato ainda manteve uma produtiva relação com os poetas concretistas, Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos. E trabalhou com o igualmente “antropófago” Hélio Oiticica, artista plástico e performático, que tirou a pintura e a escultura das molduras e pedestais para usá-las no próprio corpo, em seus famosos Parangolés.
O resultado de tudo isso está no conjunto da obra de Torquato. Uma obra digna de quem um dia definiu assim a vida: “É o risco; é estar sempre a perigo, sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela”.
Let’s play that
quando eu nasci
um anjo louco
muito louco
veio ler a
minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
eis que esse anjo
me disse
apertando a
minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
let’s play that
Até o fim
(Fonte: Opinião Socialista, 10/07/2005)
Um comentário:
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