Por Antônio Maria
Que dia maravilhoso haverá, aquele em que for possível
telefonar para os melhores amigos e dizer-lhes que houve um ligeiro engano, que
não teria sido preciso escrever coisa alguma? E que, dali em diante, nada mais
se escreverá, a não ser os nomes e os números necessários das pessoas e das
coisas.
Que boa impressão a de ser-se uma parte do coral, um grito
em meio às vozes que clamam o gol, um gemido noturno, entre os muitos e
repetidos gemidos, na imensa e fria sala do hospital de indigentes! E que
absurda e amiga paz a de saber-se que a lua e a flor, o rio e a queixa, nada
foi mais lua ou flor, mais rio ou mais queixa, por causa do que se disse. A
própria mulher foi sempre bela ou fêmea, antes e a salvo da minha poesia e das
minhas mãos!
Vivi entre o que viveu. Fui multidão e povo, um lugar
ocupado, uma rescendência de suor, uma voz que pediu licença, um olhar que
mendigou prazeres e uma parte milesimal dos pés que povoaram. Das minhas mãos,
prefiro não contar, a não ser na custosa confissão de que foram mãos vadias. De
bem, fizeram a bênção e o carinho... mas o carinho é vadio e, em toda vez que
se aparta de Deus, é proibido. Prevalece, portanto, o existente da multidão, o
corista, aquele que não foi o solista de beleza alguma e que, por isso, se
sente irresponsabilizado dos erros de maneira especial e destacada!
Sou o rosto fora de foco de uma fotografia em que dezenas de
pessoas aparecem em segundo plano. Posso ter ou não a barba crescida; posso
trazer ou não uma flor no peito; posso chorar até, e ninguém botará reparo. A
fotografia passará de mão em mão e todos os que comigo estiverem desfocados só
serão odiados quando não houver mais nada a odiar em primeiro plano.
Só assim é – se o homem real e constante – o que sente o
gosto e o cheiro da vida. A maioria se evade de sua condição real, para fazer
ou imitar o êxito. Entretanto, só o êxito casual é verdadeiro. Exemplo de êxito
casual: a beleza. Exemplo de beleza: a mulher bela. Uma mulher sentou-se à
minha frente. Tinha luz própria... E tanta, que um fanal de evidente claridade
iluminou minhas mãos, quando em gestos inúteis (as mãos) procuravam supor os
seus múltiplos encantos. Mas não me quero perder além do homem real e
constante, portanto, desenvolto.
Só farei, sem pudor e remorso, aquilo que fizer com
desenvoltura. Principalmente, a poesia e o amor. O amor ou é desacanhado,
destro, irrefletido... ou é suor. A poesia também. Por isso volta-se a
multidão, vivem-se as imunidades corais e espera-se a vinda casual da poesia e
do amor.
Sou o homem real, que sua, que mente, que disfarça, que
teme, que inveja e cobiça. Tive e tenho os meus momentos de suicida. Não gosto
que me conheçam aquém e além de um homem constantemente exposto ao erro e ao
crime. É dever do ser humano pressentir em seu semelhante um sem-número de
intimidades inconfessáveis. O grande e verdadeiro amor ao próximo é aquele que
ama os erros mostrados e pressupostos.
Além da verdade, só existe a multidão, que exime o homem das
proclamações e o ampara das consequências de sua coragem. Depois de cumprida a
Verdade, ter-se-á conquistado o silêncio. “O silêncio alcançado à custa de
sempre dizer a mesma coisa” (João Cabral de Melo Neto).
Só creio em dois estados de lucidez: o dos bêbados e dos
poetas. Ambos são negados. Mas essa negação ainda não é a definitiva. Lucidez
não é, por exemplo, comprar-se uma vitrola por cem dólares e se vendê-la por
vinte contos. Isto seria melhor chamado de “paciência”... ou “organização”...
ou ainda “paciência organizada”.
Lucidez não é ainda ir-se hoje para Brasília e voltar-se,
daqui a três anos, com cem milhões. A isto eu chamaria de “disciplina para
fazer o fácil”.
A grande lucidez dos poetas estaria, por exemplo, neste
verso de Fernando Pessoa: “Em tudo quanto olhei, fiquei em parte”. A lucidez
dos bêbados é difícil de defender, porque existem mil bêbados diferentes na
humanidade. Mil que partem de dois: o bom e o mau. Ambos são lúcidos e, se um
desagrada, é porque sua natureza repele o estado angelical e luzente da
bebedice.
O conhecimento incessante da verdade faz com que o homem
caminhe para o anjo. Chegarão primeiro os que mais depressa conheceram ao seu
semelhante, tanto quanto a si mesmo. Nunca foi impossível o exato conhecimento
próprio. É necessária, porém, a coragem bastante, para que cada qual se veja e
se pegue, se espie e se apalpe, em cada um dos seus mais íntimos espaços
físicos e morais.
Que as constantes feiúras a encontrar não nos retraia os
olhos (no caso, o sentir) e as mãos. Depois, será mais fácil conhecer-se o
próximo. E depois, então, mesmo que se minta, só se saberá da utilidade e do
consolo da verdade. Faltará ânimo para o fingimento e a fuga, quando
acreditarmos em que ninguém engana ninguém e em que somos capazes de conhecer o
próximo, desde o instante inicial do primeiro conhecimento.
A sintomatologia do mal é evidente e constante. O homem mau
ri errado. Por isso, deve-se viver em multidão. Falar e rir em coro, andar e
parar em batalhões. Viver entre os que, simplesmente, estiverem vivendo. A vida
coral nos alivia da obrigação do êxito, do êxito que é casual (e verdadeiro) ou
é fabricado e cínico. Desconfiai dos feitos que são repetidamente comemorados
com jantares e missas de ação de graças!
É esta uma simples canção de fim de ano. Escrevia, confessando-me
e comprometendo-me em cada uma das minhas pequenas descobertas. Se não atingi,
rondei mais das vezes a insolente verdade dos homens e das coisas. Em vez
disso, escreveria uma crônica de Natal... Mas, em tudo o que eu dissesse do
Nascimento de Cristo e fraternidade humana, correria o erro constante de
repetir: “Natal, Natal, bimbalham os sinos...”.
(14/12/1956)
Nenhum comentário:
Postar um comentário