Em dezembro de 2017, a revista americana “The Hollywood Reporter” publicou um textão da crítica de cinema Miriam Bale no qual ela conta,
orgulhosa, que nunca mais verá um filme de Woody Allen na vida. Esse tipo de
atitude jamais daria certo em outra área do jornalismo. “Sou torcedor do Corinthians
e não assisto mais jogo do Palmeiras, valeu, chefia?!” Demissão, né?
No entanto, no mundo festivo do jornalismo cultural, o
mimimi infantiloide da moça foi legitimado pela “The Hollywood Reporter” e
diversas outras revistas e jornais que reproduziram o chorume sem qualquer
ponderação.
No dia 4 de janeiro foi a vez do Washington Post publicar um
ensaio rasteiro de um tal Richard Morgan (who?), que revira arquivos do diretor
(projetos não filmados, anotações etc) para formular a tese de que toda obra de
Allen gira em torno da “mulher objetificada pelo homem”. A Ilustrada republicou
o texto.
“Zelig” não é isso. “A Rosa Púrpura do Cairo” não é isso.
“Crimes e Pecados”, “Memórias”, “Celebridades”, “Annie Hall”. Nada disso é
isso. Mas certamente Morgan, como Miriam Bale, não se deu ao trabalho de ir ao
cinema antes de batucar no teclado.
Woody Allen e Mia Farrow ficaram juntos por 12 anos. O fim
do relacionamento foi dramático. Allen se comportou como um dos seus
personagens inconsequentes e trocou Mia por Soon Yi-Previn, filha adotiva da
atriz com o ex-marido dela, André Previn. Foi só o começo da baixaria.
Moses Farrow, filho adotivo de Allen e Mia, ficou do lado do
pai. Ronan Farrow, filho legítimo do casal, ficou do lado da mãe. Ronan,
jornalista do “The New York Times”, tornou pública a denúncia de Dylan Farrow,
outra filha adotiva do casal, que afirma ter sido molestada por Allen quando
tinha 7 anos. O diretor argumenta que Dylan foi manipulada por Mia e Ronan para
inventar a história. O filho Moses concorda com ele. Mia Farrow, por sua vez,
também sugeriu que Ronan não é filho de Woody Allen, mas sim de Frank Sinatra,
com quem ela foi casada nos anos 1960 e sempre manteve relação próxima.
Alguns dos mais brilhantes filmes de Woody Allen e Mia
Farrow foram resultado da parceria entre eles. É uma pena que a relação dos
dois tenha virado uma novela vagabunda e esteja de novo na mídia, catapultada
pelas recentes denúncias de assédio sexual em Hollywood. É preciso lembrar, no
entanto, que o “Caso Woody Allen” é completamente diferente da história de
Harvey Weinstein, por exemplo. O produtor usava o poder para constranger
atrizes a fazer sexo com ele. Isso é criminoso. Já Allen, até onde se sabe,
nunca fez nada parecido. O repúdio a ele nasce das alegações de Mia Farrow por
conta da separação.
A atriz Mira Sorvino escreveu carta lamentando ter
trabalhado com o diretor em “Poderosa Afrodite”, que deu a ela o Oscar e o
Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante. Greta Gerwig (“Para Roma com amor”)
fez o mesmo e Rebecca Hall (“Vicky Cristina Barcelona”, indicada ao Globo de
Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante pelo filme) seguiu o exemplo. Muitas outras
foram atrás.
Em 26 de janeiro, o musical “Tiros na Broadway” foi
cancelado em Nova York. Em 28 de janeiro, o New York Times fez artigo
declarando que a carreira de Woody Allen está acabada. A Ilustrada reproduziu o
texto. Já não se trata mais de denúncia, isso já ficou para trás. O que existe
agora é uma campanha organizada para que o diretor nunca mais consiga filmar.
A crítica de cinema Miriam Bale, assim como o ensaísta
Richard Morgan, têm todo o direito de se comportarem como noveleiros e torcer
pelo personagem favorito deles na trama. O que não podem, penso, é destruir a
obra do diretor e serem aplaudidos por uma mídia que deveria ser mais
responsável.
Mas a verdade é o que “The Hollywood Reporter” nunca foi
responsável. A publicação praticamente iniciou o “macarthismo” em 1946, quando
listou 11 comunistas que deveriam ser expulsos de Hollywood. Entre os
denunciados estava o celebrado roteirista Dalton Trumbo. Foi essa lista que
incentivou o senador republicano Joseph McCarthy a iniciar uma “cruzada” para
banir os socialistas da indústria do cinema.
O movimento feminista #MeToo, que começou com os mais nobres
objetivos, evoluiu rapidamente para algo muito semelhante ao macarthismo. E não
sou eu quem está dizendo isso. Alec Baldwin e Liam Neeson já falaram a mesma
coisa. Catherine Deneuve e Brigite Bardot também.
Multidões de linchadores nunca estão com a razão. Jamais. Em
hipótese alguma. Isso é básico numa sociedade civilizada. Mas a mídia, que
deveria interditar a barbárie, é a primeira a fazer festinha pra ela. E depois
ninguém sabe porque revistas e jornais agonizam.
Eu, de minha parte, vou continuar vendo tudo o que Woody
Allen dirigir e escrever. Um dos maiores cineastas da história tem muito mais a
me dizer que a revista “The Hollywood Reporter”.
Na verdade, ele tem muito mais a dizer do que a maioria do
jornalismo cultural produzido no mundo (o mundo inclui o Brasil).
Um comentário:
Qual a diferença entre o que se está fazendo com Woody Allen, hoje, e o que se fez com Orson Welles no passado?
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