Por Rubem Braga
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia,
consternado, a visita do zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o
senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua
própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação
verbal.
Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou
inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor
ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem
direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes,
passos e músicas no 1003.
Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se
agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos
a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros.
Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao
sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo
903 que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas
eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e funcionamos fora dos horários civis;
nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua.
Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em
diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa
(perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o
903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109
que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305.
Nossa vida, vizinho, está toda numerada, e reconheço que ela
só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o
respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e
prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro
mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três
horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra,
vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e
cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os
amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das
estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre
os humanos, e o amor e a paz.
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