Por Carlos Castelo
Como alguém vira humorista? Não sei como os outros
transformam-se nos bobos da corte da sociedade, mas posso lhes contar o meu
processo. Estávamos num ônibus de excursão indo, com colegas da quinta série,
para a nossa primeira viagem sem os pais. Rumávamos para a Caverna do Diabo, em
Registro, e eu levava 50 cruzeiros no bolso para gastar em comida. O futuro era
alvissareiro, o ônibus das meninas viajava na frente do nosso e não havia aula
de Educação, Moral e Cívica nas próximas horas.
Excitado, já comi, na ida, todos os sanduíches de carne fria
que minha mãe preparara na noite anterior. Ao chegar nas cavernas antes mesmo
de aprender o que eram estalagmites e estalagtites, eu já havia devorado o
lanche do Moby Dick, do Doriana e do Filé. Só o fato de eu ter nascido num
estado seco e miserável explicava aquela voracidade. Tanto que, na volta, usei
o dinheiro pra fechar os trabalhos com mais rango.
Na primeira parada, um posto de beira de estrada, ordenei um
saco de amendoins Novidades — totalmente murcho — e arrematei com um Chocomilk
quente duplo. A teoria Física do “o que vai, volta” foi glosada naquele fim de
tarde. 15 minutos após minha entrada no coletivo — quando os coleguinhas
cantavam canções feito marinheiros voltando ao seu país de origem — senti a
primeira pontada na passarinha. Depois veio aquela bola estranha, que eu não
sabia se sairia pela minha boca ou pelo meu esfíncter.
Aproveitei a cantoria para me recolher ao último banco e
tentar sossegar a carburação no bucho. A ideia seguinte, quando já estava
deitado, foi tentar soltar os gases aprisionados no intestino. Isso talvez
fizesse aquela esfera parar de se mover loucamente em minhas entranhas. Decidi
então liberar o dióxido de carbono aprisionado e, no instante seguinte, senti o
peso de minha decisão em minha bermuda. Eu tinha me dejetado da forma mais
espetacular que já vira em minha curta existência. Uma profusão de estalagmites
fecais.
Naquela época, minha timidez era proporcional à minha fome.
Por isso mantive-me num silêncio sepulcral lá no fundão. Passado um breve
tempo, o Doriana comentou com o Cássio: “Cagaram no mundo”.
Mais pragmático, o Cássio ponderou: “Que nada, esse cheiro
de carniça deve ter sido alguma vaca que morreu”.
Anoiteceu.
O guia do ônibus pegou uma lanterninha e foi iluminando cada
um dos moleques.
“Ronaldo, foi tu?”
“Eu não”.
Ruy?”
“Eu não!”
Quando chegou ao fundo, e me viu naquele estado, gritou ao
motorista: “Fonseca, encosta o carro que o Castelo Branco se borrou todo aqui
atrás!”
Saí pelo corredor aos berros de “Castelo de Bosta!” e outros
impropérios. Mas o pior de tudo foi passar na frente do ônibus das meninas num
estado tão deplorável.
O guia era um cearense atarracado. Entrou comigo no mato e
foi bem didático: “Castelo, tu pega a tua cuequinha, dobra ela bem dobradinha e
joga lá na pqp do mato. Entendeu?”
Eu não dizia nada. Ele repetia, nervoso: “Entendeu?
Entendeu? Entendeu?”
Quando o cearense parou seu tatibitate falei num fio de voz:
“Entendi. Mas eu não uso cueca”.
Ele chutou uma touceira de capim e desistiu: “Então, vai,
anda: volta cagado mesmo pro ônibus!”
Foi o Registro-São Paulo mais inusitado de todos os tempos.
Os caras fizeram o trajeto todo com o nariz para fora das janelas. Inclusive o
motorista.
Quando voltei à escola no dia seguinte, um professor metido
a engraçado me indagou após a chamada: “Então você é o Castelo de bosta que
todo mundo está falando?”
Respostei na lata: “Sou. E você é o professor de merda que a
escola inteira fala”.
Fui suspenso. Mas, nesse dia, virei humorista.
CARLOS CASTELO é um
dos criadores do grupo de humor musical Língua de Trapo. É autor de 10 livros
que vão de crônicas a aforismos, passando por um romance policial e um
infanto-juvenil. Também escreve crônicas e resenhas sobre livros na revista
Bravo! e Ponto (Sesi-SP).
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