Ernest Hemingway passou mais de trinta anos sob os holofotes como a
principal celebridade literária dos Estados Unidos. Sobreviveu a cinco guerras,
quatro acidentes de automóveis e dois desastres de avião. Escreveu sobre si
mesmo, e sobre as próprias experiências, mais do que qualquer outro autor da
sua época. Ainda assim, os biógrafos continuam batalhando para entender este
homem sobre quem o escritor Morley Callaghan certa vez observou: “Nunca sabemos
com certeza se ele está falando a verdade ou se está sendo seduzido pela sua
imaginação a acreditar nas lendas que criou para si mesmo”.
Mas algumas coisas sabemos ao certo: ele nasceu em 1899, em Oak Park,
lllinois. Quando criança, rebelou-se contra a mãe neurótica – que o mandava
para aulas de dança e fez o possível para lhe tirar a masculinidade – adotando
uma fachada máscula que foi expressada durante toda sua vida através da paixão
pela caça, pesca e atividades físicas. Foi contaminado com o vírus da
literatura no colegial e desenvolveu seu estilo assertivo, que se tornou a sua
marca registrada, quando trabalhou como “foca” no jornal Kansas City Star.
Quando a guerra eclodiu na Europa, em 1914, Hemingway foi atraído pela
ação. Alistou-se no exército e tornou-se motorista de ambulância no front
italiano. Suas experiências dessa época formariam a base para o seu clássico
romance Adeus às armas. No dia 18 de
julho de 1918, o veículo que Hemingway dirigia foi atingido por uma pesada
artilharia de morteiro e ele ficou com estilhaços nas duas pernas. Ele
preencheu os vãos dos ferimentos com tocos de cigarros e conseguiu carregar um
dos seus companheiros soldados para um lugar seguro, um ato de bravura que lhe
rendeu uma medalha do governo italiano e um passe para fora da zona de combate.
Entre uma guerra e outra Hemingway provou o primeiro sabor da fama
literária. Instalou-se em Paris, tornando-se parte de um círculo de expatriados
que incluía Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald e Gertrude Stein. Em 1926, publicou
O sol também se levanta, um romace
entrecortado e dissonante sobre um veterano de guerra mutilado e impotente, sua
amante sexualmente voraz e seus amigos expatriados na – você adivinhou – Paris
da década de 1920. O romance e a subsequente coletânea de contos ajudaram a
catapultar Hemingway para as primeiras fileiras das celebridades literárias, uma
posição da qual ele desfrutou e cultivou pelo resto da vida.
A fama e a fortuna liberaram Hemingway – ou “Papa”, como na ocasião
gostava de ser chamado – para ir em busca de novas e violentas experiências,
onde quer que elas se encontrassem. Ele participou de touradas, foi a safáris
na África e fez a cobertura da Guerra Civil Espanhola para jornais,
transformando cada episódio em mais um clássico, fosse sob a forma de romance,
conto ou tratado autobiográfico.
Com o início da Segunda Guerra Mundial, Hemingway desafiou a idade que
já ia avançando – e também a um desconfiado J. Edgar Hoover, então diretor de
FBI – e foi à caça de submarinos alemães na costa de Cuba. Alguns afirmam que
essa aventura foi meramente uma desculpa para beber e pescar, da mesma maneira
que descartam suas tentativas posteriores de participar da liberação de Paris
como nada além de mais uma visita ao bar do Hotel Ritz. Fosse como fosse, o
fato é que Hemingway pôde dizer que esteve lá, no centro da ação, como sempre.
A produção literária de Hemingway decaiu nos anos pós-guerra, embora ele
continuasse sendo uma celebridade mundial. Ele não escreveu nenhum romance
significativo depois de Por quem os sinos
dobram, em 1940. A maior parte do seu tempo ele passava “polindo” a própria
fama ou ajustando contas antigas por meio de ataques aos seus colegas
escritores pela imprensa. Em particular, Hemingway enfurecia-se por nunca ter
sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura. Pode-se imaginar sua
felicidade quando seu romance O velho e o
mar, de 1952, lhe rendeu não somente aquele prêmio como também o Pulitez.
Talvez, no fim das contas, o velho “Papa” ainda tivesse algum óleo para
queimar.
Infelizmente nem mesmo esse reconhecimento tardio seria capaz de curar a
única aflição que o atormentou por toda a vida adulta: a depressão. Durante a
última década de sua vida, o humor naturalmente sombrio de Hemingway nublou-se
ainda mais graças a uma série de problemas de saúde. Ele sobreviveu a dois
acidentes de avião e, em cada um deles, emergiu com graves ferimentos internos.
Teve sérias queimaduras devido a um incêndio na mata, desenvolveu pressão alta
e problemas de fígados relacionados ao alcoolismo e foi submetido a uma terapia
de choque elétrica que deixou sequelas em suas memórias.
Em seus dias finais, era mantido quase constantemente sedado para evitar
que atentasse contra a própria vida. Sua esposa, Mary, chegou ao ponto de
trancar todas as armas dele no porão da casa em Ketchum, ldaho. Infelizmente um
desesperado Hemingway encontrou as chaves e, na manhã do dia 2 de julho de
1961, apontou o cano duplo de uma espingarda na própria cabeça e puxou o
gatilho. O escritor que certa vez observou que “um homem pode ser destruído,
mas não derrotado” teve sucesso em finalmente destruir-se.
Filhinho da mamãe
Quando adulto, Hemingway foi a personificação das virtudes masculinas. É
de surpreender, portanto, que ele tenha iniciado a vida como uma garotinha. A
excêntrica mãe de Hemingway desejava tanto uma companheira para a irmã mais
velha dele, Marceline, que vestia o pequeno Ernest com roupas de menina,
penteava os longos cabelos dele como os de uma menina e o apresentava aos
vizinhos como sendo a sua “filha” Ernestine.
Estranha dupla
Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald foram o Oscar e Felix da geração
perdida norte-americana. Nascidos com apenas três anos de diferença, eles
cultivaram uma das mais estranhas amizades da história literárias. Hemingway
era impetuoso, vociferante e autoconfiante. Fitzgerald era inseguro, educado e
um tantinho petulante. No entanto, foram inseparáveis por um breve período e
desde então associados na imaginação popular.
Ele se conheceram em 1925, no famoso Dingo Bar de Paris. Hemingway tinha
apenas vinte e quatro anos na época e era virtualmente desconhecido, enquanto
Fitzgerald, três anos mais velho, acabara de publicar O grande Gatsby e estava seguindo de vento em popa na direção da
fama literária. Ainda assim os dois se tornaram amigos rapidamente. Na verdade,
o relacionamento deles se tornou bastante íntimo.
Segundo relatos, quando Zelda, a esposa de Fitzgerald, fez um comentário
zombeteiro a respeito do tamanho da genitália do marido, Hemingway conduziu uma
improvisada inspeção no banheiro masculino para assegurar ao amigo que seus
dotes naturais eram perfeitamente adequados. “Você é completamente normal”,
disse o “Papa” a Fitzgerald. “Não há nada de errado com você”.
Apesar de momentos sentimentais como este, a amizade foi esfriando
consideravelmente depois de 1926. A separação foi devida, em parte, ao mero
ciúme. A estrela de Hemingway começava a brilhar, ao mesmo tempo que Fitzgerald
iniciava o longo, lento e árduo declínio artístico. Hemingway também
desenvolveu um hábito desagradável de zombar do velho amigo em suas obras. Ele
criou uma caricatura pouco lisonjeira e finamente velada de Fitzgerald em seu O sol também se levanta e deu-lhe um
golpe violento usando seu nome no conto As
neves do Kilimanjaro, incitando Fitzgerald a implorar para que não zombasse
dele novamente.
Por algum tempo, Hemingway acatou o pedido, mas não conseguiu resistir à
oportunidade de dar a última palavra. Muito tempo depois da morte de
Fitzgerald, Hemingway “detonou” pela última vez seu antigo mentor em suas
memórias publicadas postumamente, Paris é
uma festa, descrevendo o autor de O
grande Gatsby como um covarde fanfarrão e impotente.
Uma situação cabeluda
Hemingway não aceitava muito bem quaisquer insinuações a respeito da sua
masculinidade. Na verdade, quase teve um “chilique” quando o crítico Max
Eastman o depreciou em uma contundente resenha do seu tratado sobre touradas,
de 1932, Death in the Afternoon.
Eastman escreveu que Hemingway “falta a serena confiança de ser um homem
completo” e comparou o seu estilo ao de um homem que “usa pêlos falsos no
peito”.
Vários anos depois, Hemingway encontrou Eastman por acaso no escritório
do editor Maxwell Perkins. Depois de cumprimentar Eastman com um aperto de mão,
um sorridente Hemingway abriu com um puxão a camisa de Eastman e a sua própria
– revelando os pêlos luxuriantes que provavam que ele, Hemingway, era muito
mais peludo que o outro. “O que você pretendia, ao me acusar de impotente?”,
Hemingway indagou furioso. Depois, esfregou no rosto de Eastman uma cópia da
sua resenha e derrubou o atônito crítico no chão. Foi a última vez que Eastman
fez uma crítica negativa ao “Papa” – pelo menos em termos tão pessoais.
Nome aos bois
Hemingway jamais participou das corridas de touros em Pamplona, embora
muito o associem a esse espetáculo espanhol anual porque ele escreveu a
respeito em O sol também se levanta.
Na verdade, Hemingway nunca conseguiria participar de nenhum tipo de corrida
por causa dos ferimentos nas pernas que sofreu durante a Primeira Guerra
Mundial. Quanto a correr de touros em disparada, nem pensar – as ruas de pedras
de Pamplona certamente teriam sido demais para ele.
Só porque você é paranoico...
... não significa que “eles” não irão pegá-lo. Por muitos anos Hemingway
dizia a todos que quisessem ouvir que estava sendo seguindo pelo FBI. A maioria
das pessoas simplesmente descartava essa idéia como mais uma das teorias
malucas do “Papa”, mas, no fim das contas, ele realmente estava certo. Arquivos
revelados depois da morte de Hemingway confirmam que os agentes federais
estavam monitorando as atividades do escritor, desde a Segunda Mundial até a
sua morte. Ponto para os paranoicos do mundo todo!
Filho-problema
Se o filho mais novo de Hemingway, Gregory, tivesse vivido o bastante
para escrever sua autobiografia, talvez pudesse tê-la intitulado De caçador de elefantes a exibicionista.
Sempre o preferido do pai, Gregory compartilhava muito dos maneirismos
machistas do “Papa” e era um atirador exímio que certa vez abateu dezoito
elefantes durante um safári da África.
Mas ele também teve uma vida dupla como travesti (Hemingway certa vez o
apanhou experimentando as meias de náilon da mãe) e, com o tempo, optou por
fazer uma cirurgia para mudança de sexo. Depois de mudar também o seu nome para
Gloria, passou a sofrer de frequentes blackouts por ser maníaco-depressivo e
foi preso várias vezes por agressão a policiais.
A última altercação desse tipo ocorreu em setembro de 2001, quando Gregory/Gloria,
aparentemente embriagado, foi visto andando nu pelas ruas de Key Biscayne, na
Flórida. A polícia o prendeu por atentado ao pudor enquanto ele tentava
freneticamente cobrir os genitais com uma calcinha fio-dental. Seis dias depois
ele teve um ataque cardíaco e morreu em sua cela no Centro de Detenção Feminina
de Miami-Dade.
Poucas explicações foram oferecidas para essa outra lenda queda ao fundo
do abismo de um Hemingway. Como o próprio Gregory certa fez refletiu durante um
entrevista: “O que será isso que existe em um pai amoroso, dominador e
basicamente bem-intencionado que faz você acabar ficando louco?”. Talvez jamais
saberemos.
Mal de família
Será que existe uma maldição dos Hemingway? Como se a estranha saga de
Gregory Hemingway não bastasse como prova disso, há também o triste fim de
Margaux Hemingway, a neta do “Papa”. A escultural irmã mais velha da atriz
Mariel Hemingway foi certa vez uma das modelos mais famosas de Nova York. Então
a depressão, o uso de drogas e os distúrbios alimentares acabaram cobrando seu
preço.
Por volta da década de 1990 ela havia chegado ao fundo do poço, posando
nua para a Playboy, aparecendo em comerciais baratos e emprestando a voz a um
serviço de “0800” que oferecia conselhos mediúnicos de “celebridades”. (A
propaganda de serviço dizia: “Margaux Hemingway: o nome contém seu próprio
mistério”.)
No dia 2 de julho de 1996 – exatamente trinta e cinco anos depois que
seu avô tirou a própria vida – ela juntou-se a ele no rol de suicídios da
família, que incluía também o pai de Ernest, Clarence, a irmã dele, Ursula, e o
irmão Leicester. Com quarenta e um anos, Margaux ingeriu uma dose letal de
fenobarbitol em seu apartamento em Santa Monica, Califórnia.
A forma mais sincera de
homenagem
A cada ano o Harry’s Bar American Grill em Century City, Califórnia (uma
réplica norte-americana de um dos “botecos” italianos preferidos de Hemingway),
patrocina o Concurso Internacional de Imitação de Hemingway, mais conhecido
como o Concurso Bad Hemingway. Os competidores devem apresentar um texto
original de uma página parodiando o estilo inimitável do autor, com a
estipulação de que incluem uma referência elogiosa ao restaurante patrocinador.
Os títulos mais recentes, que foram reunidos e publicados em forma de
livro, incluíram A farewell to lunch
(adeus ao almoço), The snooze of
Kilimanjaro (a soneca do Kilimanjaro), The
old man and the seal (o velho e a foca), e o clássico que reúne Ernest
Hemingway com Monica Lewinsky Across the
Potomac and into her pants (cruzando o Potomac para dentro da sua
calcinha). O grande prêmio é uma viagem para duas pessoas, com tudo pago, para
o verdadeiro Harry’s em Florença, Itália. Em algum lugar o “Papa” deve estar
sorrindo.
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