Quando a SS de
Hitler estava preparando uma lista de cidadãos ingleses proeminentes que deveriam
ser imediatamente executados após a ocupação alemã na Inglaterra, o nome de H.
G. Wells estava bem perto do topo. Seu crime foi ser socialista, embora, se as
autoridades nazistas tivessem olhado mais de perto, iriam descobrir que ele era
também um anti-semita ferrenho. O autor, que ficou conhecido como “o homem que
inventou o amanhã”, foi um exemplo de contradições e sua vida privada, quase
tão bizarra quanto seu gosto pelos voos de ficção científica.
Filho de um jogador
de críquete profissional, Well teve uma infância repleta de dificuldades
financeiras, depois que um ferimento encerrou prematuramente a carreira de seu
pai. Mais tarde, tendo fracassado nos empregos de assistente de tapeceiro,
assistente de farmacêutico e assistente de professor, concluiu sabiamente que o
título de “assistente” não lhe caía bem.
Em 1891 casou-se
com sua prima Isabel Mary Wells, mas o casamento deu quase tão certo quanto os seus
diversos empregos e, passados três anos, Wells se divorciou para se casar com
Amy Catherine Robbins, uma de suas alunas, com quem teve três filhos. Ela se
manteve firme ao lado dele, apesar dos seus muitos casos extraconjugais.
Iniciando com A máquina do tempo, em 1895, Wells criou
dezenas de histórias e romances que ajudaram a definir as convenções do gênero
de ficção científica. Dentre suas inovações encontram-se as descrições
ficcionais da viagem no tempo, da guerra nuclear (foi ele quem cunhou o termo
“bomba atômica”) e da manipulação genética.
Sua eterna
fascinação pela eugenia representou o lado sombrio de sua visão futurística,
sempre tingida por um pouco mais que uma simples mancha de ódio pelos judeus.
Wells acreditava na relocação compulsória das minorias raciais e étnicas, na
punição dos “desviados” e no domínio de uma elite científica e tecnocrata. Era
também bastante hostil ao catolicismo romano.
Esses preconceitos
raramente eram demonstrados de maneira aberta em suas obras, muitas das quais
permanecem até hoje como clássicos do gênero especulativo. Embora desprezado
por alguns críticos da sua época – um deles notoriamente chamou A guerra dos mundos de “pesadelo
interminável” –, Wells conquistou os leitores em grande parte pela excepcional
exatidão de suas previsões.
Ele previu
corretamente o advento do ar-condicionado, da televisão comercial, das
gravações em vídeo-tape, dos aviões a hélice e do uso da força aérea em
combates. Também previu com sucesso a data do início da Segunda Guerra Mundial
e a chegada da revolução sexual – embora esta última talvez tivesse sido apenas
uma esperança; afinal, ele era bem conhecido por ser um conquistador inveterado.
Naturalmente, nem
todos seus prognósticos tiveram bom resultados. Ele não anteviu a viabilização
das aeronaves antes de 1950. Sustentava que “minha imaginação se recusa a ver
qualquer tipo de submarino fazendo qualquer outra coisa a não ser sufocar a sua
tripulação e resolver-se ao mar”. E a sua enigmática previsão durante um jantar
festivo de que a raça humana iria se destruir, perecer como espécie e retornar
ao estágio primordial num período de mil anos ainda está para ser aprovada. Mesmo
assim, Wells parecia estar se preparando para a sua última vingança quando
escolheu seu próprio epitáfio, que diz: “Fodam-se todos vocês, eu avisei”.
A máquina de sexo
“Nunca fui um
grande galanteador”, Wells certa vez comentou. Pois diga isso às incontáveis
mulheres que ele levou para a cama fora dos embaraços do casamento ou aos cinco
filhos que, segundo relatos, ele gerou ilegitimamente. Sim, esse intelectual
baixinho, gordo e meio careca, com mãos minúsculas e voz aguda era um “mulherengo” e
tanto, para usar um termo que ainda não existia em sua época, ou o “Don Juan da
Inteligentsia”, como ele gostava de se classificar.
Até mesmo os atuais
biógrafos de Wells o descrevem como “uma máquina de fazer sexo” e um
conquistador improvável com uma “atração fatal pelas mulheres erradas”. Sua
lista de amantes famosas incluía a celebrada autora francesa Odette Keun, a
escritora feminista Rebecca West, a defensora do controle da natalidade
Margaret Sanger, a venerável Condessa Constance Coolidge, expatriada de Boston
para Europa, e Martha Gelhorn, uma atrevida socialite e correspondente de
guerra que, mais tarde, se casou com Ernest Hemingway.
Então qual era o
segredo de Walls? Entre outras coisas, ele não tinha consciência. “Eu fiz o que
bem queria de modo que cada mínimo impulso sexual que havia dentro de mim pôde
se expressar”, ele escreveu em sua autobiografia. Um defensor ferrenho do “amor
livre”, Wells traiu suas duas esposas e afirmou, em determinado momento, que
tinha o “direito” de agir assim com impunidade. (Não fica claro se ele achava
que esse “direito” também se aplicava às esposas.) Essa descarada distribuição
de “chifres” não parecia assustar muito das amantes dele. Wells permaneceu
sendo um autêntico imã de garotas até perto dos seus setenta anos. Uma das
amantes atribuiu suas habilidades eróticas ao fato de que o corpo dele exalava
um irresistível aroma semelhante a mel.
Preso em âmbar
Um dos casos
amorosos mais sórdidos de Wells foi com Amber Reeeves, uma jovem
livre-pensadora de uma das famílias mais proeminentes de Londres. Os pais dela
eram amigos de Wells e, como ele, defensores ferozes da liberação sexual.
Depois de passar um fim de semana hospedada na casa de Wells e da sua esposa
Amy, a voluptuosa Amber começou a “dar em cima” do escritor de meia-idade. Os
rumores sobre o caso começaram a circular, e Wells nada fez para ocultá-los de
Amy. Em pouco tempo os dois amantes passaram a aparecer junto em público e fazia
planos de fugirem para a França. (Ainda não se sabe o que Wells planejava fazer
com a esposa.) Em suas memórias, Wells tece elogios à “imaginatividade sexual”
da sua jovem parceira, insinuando que a preferência dela por excentricidades
era uma vergonha à sua esposa.
Porém, o botão transformou-se
rapidamente em rosa, quando Amber engravidou e os amigos de Wells o alertaram
para o fato de que ele não conseguiria sobreviver ao escândalo de um segundo
divórcio em circunstância tão comprometedoras. Além disso, Amber passou a
demonstrar sinais de volatilidade emocional – sem dúvida, exacerbada pela
exigência de Wells de que ela o servisse e obedecesse, como se já fosse a sua
esposa. Nem mesmo o melhor sexo poderia salvar esse relacionamento fadado ao
fracasso.
Um abatido Wells
convenceu Amber a se casar com um jovem advogado que ambos conheciam, esperando
que, depois que o escândalo se arrefecesse, eles pudessem continuar se
encontrando. Durante algum tempo, com a aceitação tácita da esposa de Wells,
foi o que fizeram. Para acrescentar o insulto à injúria, Wells escreveu um
relato do seu caso de amor, apenas levemente velado, sob a forma do romance Ann Veronica que, recusado pelo editor
de Wells pela imoralidade, só foi publicado tempos depois. No dia 31 de
dezembro de 1909 Amber Reeves deu a luz Anna-Jane, filha de Wells, que somente
em 1928 ficou conhecendo a verdadeira identidade do pai.
O espião que o amava
Uma das amantes que
Wells teve em seus últimos anos de vida teria sido realmente uma espiã
soviética? Alguns historiadores chamam Moura Budberg, a baronesa nascida na
Ucrânia com quem Wells teve um caso no início dos anos 1930, de “Mata Hari da
Rússia”. Afirmam que ela trabalhou como agente secreta para os bolcheviques
usando seus dotes na cama como meio de abrir caminho para eles nas várias
capitais da Europa.
Sob o disfarce de
um tórrido caso de amor, a jovem de vinte e sete anos usou desavergonhadamente
um Wells já sessentão para obter acesso aos amigos dele com boas conexões
políticas. Ela até mesmo arranjou um encontro de Wells com o ditador soviético
Josef Stalin, depois do qual Wells descreveu o “tio Joe” como homem mais
“justo, cândido e honesto” que ele já conhecera.
Com o passar do
tempo Wells acabou despertando para a realidade de que estava sendo usado,
embora sua paixão pela altiva nobre o tenha deixado incapaz de romper o caso.
Ela engravidou dele e foi convencida a fazer um aborto – uma reviravolta
irônica, dada a firme crença de Wells no controle de natalidade.
Wells encontra Welles
Seus nomes estarão
ligados para sempre – e não apenas porque são parecidos. A dramatização que
Orson Welles fez pelo rádio de A guerra
dos mundos, em 1938, espalhou o pânico em nível nacional e colocou em cena
o então obscuro diretor teatral. Segundo relatos, H. G. Wells não ficou muito
contente com a adaptação nem com a controvérsia resultante, porém abrandou-se
consideravelmente quando conheceu Orson, dois anos depois, numa visita que fez
a San Antonio, Texas.
Quando estava a
caminho da cidade, parou o carro para pedir indicações a ninguém mais que o
próprio Orson Welles. Os dois passaram o dia juntos e, mas tarde, discutiram a
transmissão de A guerra dos mundos em
uma entrevista em conjunto pela rádio KTSA. A dupla improvável pareceu dar-se
muito bem, e se Orson ficou ofendido com a referência humilhante que H. G.
Wells fez a ele quando o chamou de “meu pequeno homônimo”, não chegou a
demonstrar.
Nem tão bon vivant assim
Wells era famoso
por ser um conversador animado, embora seja algo difícil de acreditar quando se
sabe de alguns “casos” relatados pelos seus companheiros de festas. O
romancista inglês C. P. Snow contou que os dois estavam bebendo e conversando
no bar de um hotel e, em certo momento, o assunto se encerrou. De repente,
ropendo o silêncio, Wells disparou a pergunta capaz de acabar de uma vez com
qualquer animação: “Você já pensou em suicídio, Snow?”. Snow refletiu por um
momento e respondeu: “Sim, já pensei”. “Eu também”, Wells retrucou, “mas só
depois que passei dos setenta”. (Ele tinha setenta anos na época.)
Em outra ocasião,
Wells quase fez o tempo parar quando anunciou, a propósito de nada: “Meu pai
era um jogador de críquete profissional”, numa tentativa de “quebrar o gelo”
com o escritor P. G. Wodehouse, autor de “Jeeves and Wooster”. “Se havia uma
boa resposta para isso, você me diga”, comentou Wodehouse mais tarde. “Pensei
em dizer que o meu tinha um bigode branco, mas finalmente me contentei em
assentir com a cabeça e ele passou a falar sobre outras coisas.”
Passe o chapéu
Quando não estava
deixando as pessoas boquiabertas com a sua conversa, Wells estava literalmente
roubando as peças de vestuário delas. Uma noite, depois de mais uma festa em
Cambridge, Wells voltou para casa com o chapéu de outro homem. Ele havia
gostado tanto do chapéu que decidiu levá-lo consigo e, depois, escrever ao seu
proprietário (cujo endereço estava anotado no interior da aba): “Eu roubei o
seu chapéu. Eu gosto do seu chapéu. Vou ficar com o seu chapéu. E sempre que
olhar dentro dele irei pensar em você... Eu tiro o seu chapéu pra você!”.
Vamos brincar?
Para um pacifista,
Wells certamente adorava uma guerra – de brincadeira, é claro. Por toda a sua
vida ele gostou de brincar com soldadinhos. Até escreveu dois livros sobre o
assunto, Floor games (1911) e Little wars (1913). Publicado no limiar
da Primeira Guerra Mundial, Little wars
é considerado o guia de regras definitivo para o primeiro jogo de guerra
recreativo do mundo; o primeiro sistema de jogo que permite que os jogadores
utilizem soldados de brinquedo comercialmente disponível como peças. Por essas
contribuições, Wells é reconhecido como o “pai dos jogos de guerra em
miniatura”.
Mas, então, como
Wells conciliava seu pacifismo convicto com sua paixão por brincar de guerra?
Ele afirmava que isso o tornava ainda mais pacifista porque, quando comparado
com generais de verdade, os achava bufões incompetentes. Estava bem claro que
Wells temia muito pelo futuro da Grã-Bretanha se o país tivesse de comandar
exércitos em batalhas reais. A primeira Guerra Mundial, na qual a Grã-Bretanha
perdeu mais de 900 mil homens, muito em breve provaria que ele estava certo.
Roube este livro
Em 1925 Wells
viu-se emaranhado em um processo de plágio. Uma obscura escritora canadense
chamada Florence Deeks afirmava que ele roubara o material de um dos seus
manuscritos não publicados. O problema começou em 1920, quando Deeks leu a
resenha do romance de Wells intitulado História
universal.
A obra em dois
volumes continha uma estranha semelhança com a história do mundo que a própria
Deeks escrevera, The web of the world’s
romance, que estivera juntado poeira por mais de um ano na pilha de
baboseiras da editora norte-americana MacMillan & Company, que publicava os
livros de Wells – por uma impressionante coincidência, durante o mesmo período
em que Wells estava escrevendo o livro dele.
Uma análise mais
apurada do manuscrito rejeitado revelou que este havia sido bastante manuseado
e que havia semelhanças organizacionais suficientes para levar Deeks a entrar
com o processo imediatamente. Ainda assim, ela relutou. Mas quando outros
editores começaram a rejeitar o manuscrito dela porque era semelhante demais ao
dele, Deeks, revoltada, levou Wells ao tribunal acusando-o de “piratas
literária”. A solteirona de Toronto, porém, tinha poucas chances de prevalecer ao
autor de fama mundial e acabou perdendo, mas sua incansável busca por justiça
fez dela uma inspiração para as escritoras do mundo inteiro que se sentiam
lesadas.
Você só precisa de Wells
A crença de Wells
no amor livre e na liberação feminina transformou-o em algo como o santo
padroeiro da geração “paz e amor”. Os Beatles até o honraram com um lugar na
capa do álbum Sgt. Pepper. Ele está na segunda fileira do alto, o terceiro no
lado direito, entre Karl Marx e o iogue indiano Sri Paramahansa Yogananda.
Tudo em família
Bisneto de Wells, o
cineasta Simon Wells dirigiu a refilmagem feita em 2002 de A máquina do tempo, baseada no romance do bisavô.
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