Até experimentar uma conversão espiritual na meia-idade, Leon Tolstói,
nascido no dia 9 de setembro de 1828, teve a vida de um nobre russo comum,
embora tenha sido um nobre que também produziu dois dos mais duradouros
clássicos da literatura mundial. Em seu diário, ele narrou suas atividades do
dia-a-dia:
“Eu mandava homens para a morte na guerra, lutava em duetos para
assassinar outros, perdia em jogos de cartas; desperdicei meus recursos
extraídos do suor dos camponeses, castiguei-os cruelmente, desregrei-me com
mulheres perdidas e enganei os homens. Mentira, roubo, adultério de todos os
tipos, embriaguez, violência, assassinato... Não há um único crime que eu não
tenha cometido”.
Certamente isso soa como uma existência plena, rica e recompensadora,
mas para Tolstói era um peso esmagador na consciência. El buscava algo além de
apenas torturar os servos até a morte e obrigar suas viúvas a fazer sexo com
ele. E levou quase metade da vida para encontrar.
Nascido em uma família rica (seu primo em segundo grau era Alexander
Pushkin, o grande poeta russo), Tolstói era um aluno indiferente, a quem os
professores consideravam “incapaz e sem vontade de aprender”. Passou a maior
parte da vida jogando e contraindo doenças venéreas, embora bem cedo fosse
atingindo pela ânsia de escrever. Ainda na faixa dos vinte anos ele publicou
várias grandes obras e catalogou seus
defeitos no volumoso diário, que considerava uma autobiografia
confessional em progresso.
Seus cadernos revelam um homem obcecado com a morte. Veterano do sangrento
Sítio de Sebastopol, durante a Guerra da Criméia, Tolstói forneceu relatos detalhados
das atrocidades e execuções nos campos de batalhas. Ele tinha tanto medo da
“grande ceifadora” que às vezes começava a transpirar, em pânico, convencido de
que a morte iria de esgueirar por trás dele e dar-lhe um tapinha no ombro. O
falecimento do seu irmão Nicholas, em 1860, serviu como mais um lembrete da sua
própria mortalidade.
Embora ainda estivesse na faixa dos trinta anos, Tolstói se convenceu de
que já era velho e feio demais para se acomodar e desfrutar de uma vida
familiar normal. Ficou chocado quando a graciosa Sofia Andreyevna Behrs
(“Sonya”), a filha de um médico, concordou em se casar com ele, em 1862.
Seguiu-se, então, um período de relativa calma e estabilidade, durante o qual
Tolstói gerou treze filhos e escreveu as suas duas obras-primas, Guerra e Paz e Anna Karenina.
Apesar de esses romances terem lhe dado fama e uma riqueza adicional,
eles também aprofundaram a sua crença de que a vida que tinha não era virtuosa,
o que o levou a mergulhar em uma enfermidade espiritual que só fez agravar seus
problemas de saúde. Dizia-se que Tolstói tinha “músculos de aço e nervos de uma
dama fragilizada”. Ele sofria de reumatismo, enterite, dores de dente, ataques
de desmaio, malária e febre tifóide. Também sofreu uma série de pequenos
derrames.
Claramente, este era um homem pronto para uma crise de meia-idade, a
qual, para ele, representou uma transformação espiritual radical. Tolstói
renunciou ao sexo, à bebida, ao tabaco e à carne, e passou a se dedicar a uma
vida de “anarquismo cristão”. Ele comprometeu-se a viver sob os ensinamentos de
Jesus, mas sem reconhecer a autoridade da Igreja Ortodoxa Russa.
Como seria de se esperar, conquistou poucos amigos no quartel-general da
Igreja, sendo excomungado em 1901. Contudo, ganhou alguns admiradores entre
seus servos, a quem libertou e passou a doar sua imensa fortuna, apesar de a
“patroa” não ter ficado muito contente com esse altruísmo recém-descoberto.
Na verdade, apesar de todos os seus problemas, Tolstói acreditava que
sabia qual era a verdadeira causa do seu sofrimento mundano. “Minha enfermidade
é Sonya”, ele certa vez declarou, referindo-se à esposa. Embora ela tivesse
dado à luz e criado um pequeno exército de filhos e copiado Guerra e Paz à mão sete vezes, provou
ser uma irritação constante ao seu cada vez mais preocupado e espiritualizado
marido. Devotada ao cenário das festas em Moscou, Sonya foi trocada pelo
intenso espiritualismo do marido, ao qual se referia como “doença”. O desfile
constante de peregrinos na propriedade que tinham no campo só fez piorar a
situação.
Ela também ficou perturbada com a decisão de Tolstói de renunciar a
todos os direitos de propriedade, até mesmo à renda obtida com a venda dos
livros e com a herança da família, o que é compreensível. Quando ele começou a
doar seu dinheiro prodigamente, ela subiu pelas paredes. E quando um ardiloso
parasita chamado Chertkov convenceu o titubeante Tolstói a lhe doar toda a sua
riqueza, foi a gota d’água.
Farta daquilo, Sonya passou a exercer mais controle sobre o marido. Ela
o seguia por toda parte, espionando-o com um par de binóculos de ópera. Quando
ele sugeriu que se separassem, ela o ameaçou com o suicídio. Finalmente,
Tolstói descobriu que ela andara lendo seu diário às escondidas – e
aparentemente aquilo foi demais.
Ele saiu de casa no meio da noite, deixando um bilhete na qual agradecia
pelos 48 anos de casamento. “Estou fazendo o que as pessoas da minha idade
costumam fazer”, escreveu a lenda literária de 82 anos. “Estou desistindo do
mundo, a fim de passar meus últimos dias sozinho e em silêncio”.
Infelizmente para Tolstói, seus últimos momentos foram passados em uma
estação de trem gélido, onde ele teve um colapso, acometido de febre e
tremores. Delirante, com a longa barba branca congelada pela neve, ele morreu
no chão do escritório do chefe da estação no dia 20 de novembro de 1910.
O homem que alertou o mundo sobre os perigos do “Gêngis Khan com um
telefone” sabia exatamente sobre o que estava falando. Tolstói era descendente
direto do guerreiro mongol.
Prêmio bobo
Tolstói jamais
recebeu um Prêmio Nobel de Literatura. Embora fosse considerado forte
concorrente quando essa primeira honra foi agraciada em 1901, ele foi preterido
em favor de obscuro (e com um nome estranho) poeta francês Sully Prudhomme.
Nenhuma razão
oficial foi oferecida, mas talvez as idéias políticas de Tolstói não
combinassem com o comitê culturalmente conservador do Prêmio Nobel. Um dois
juízes citou a sua “tacanha hostilidade a todas as formas de civilização”, o
que quer isso signifique.
Pelo menos Tolstói
ficou em boa companhia. Henrik Ibsen e Émile Zola também foram excluídos por
motivos semelhantes.
Abertura total
Na noite de
núpcias, Tolstói, então com trinta e quatro anos, obrigou a sua esposa de
dezoito anos a ler os relatos dos seus diários que detalhavam suas aventuras
sexuais com outras mulheres, incluindo as criadas.
Aparentemente, esta
foi a sua idéia de demonstrar abertura e sinceridade, mas, no que se referia a
Sonya, foi um desastre total. No dia seguinte, ela escreveu em seu diário sobre
o asco que sentiu ao ser submetida a tal “imundície”.
Diga nyet
Em sua conversão
religiosa, Tolstói não deixava nada pela metade. Acreditando que eliminar a
carne da sua dieta seria a chave para dominar as paixões, ele se tornou estrito
vegetariano, subsistindo á base de mingau de aveia, pão e sopa de legumes. Ele
também desistiu das bebidas alcoólicas e do tabaco, e tentou convencer os
camponeses da sua propriedade a seguir seu exemplo.
Em seu ensaio Por que os homens se entorpecem?,
Tolstói faz uma execração dessas substâncias como drogas que as pessoas usam
para anestesiar a sua consciência inquieta. “A confusão e, acima de tudo, a
imbecilidade da nossa vida”, ele proclamou, “manifestam-se principalmente
devido ao estado de intoxicação no qual vive a maioria das pessoas”.
Torre de Babel
Além de praticar a
abstinência, o vegetarianismo e o anarquismo cristão, Tolstói era também um
grande defensor do esperanto, o idioma internacional artificialmente criado
para promover a paz mundial pela facilidade na comunicação. Ele afirmava que
aprendera o idioma em três ou quatro horas.
Como tudo aquilo
que Tolstói adotava, isso também se tornou quase uma causa santa. “Para aquele
que sabe qual é o objetivo do esperanto, é imoral não promovê-lo”, ele
escreveu.
Primeiro o programa, depois o irmão
Para um sujeito tão
espiritual, Tolstói podia ser positivamente frio. Ele deixou o próprio irmão
Dimitri definhar no leito de morte, recusando-se até mesmo a ir visitá-lo,
porque ele renunciara a Deus por uma vida de libertinagem. “Acredito
sinceramente que o que mais me incomodou sobre a morte dele”, Tolstói escreveu
mais tarde, “foi o fato de ter me impedido de comparecer a um espetáculo na
corte, para o qual eu havia sido convidado”. Uau.
Armas ao alvorecer!
Outro “amigo” que
aguentou o impacto da frieza e indiferença de Tolstói foi o escritor russo Ivan
Turgenev. Os dois foram grandes camaradas por um longo tempo, mas se
distanciaram graças, em parte, ao crescente comportamento antagônico de
Tolstói. Quando Turgenev se queixou da sua bronquite, um insensível Tolstói não
lhe deu atenção, chamando a doença dele de “imaginária”. “Estamos a polos de
distância um do outro”, o autor de Pais e
Filhos mais tarde observou. “Se eu gosto da sopa, tenho certeza de que
Tolstói irá detestá-la, e vice-versa.”
O golpe final
ocorreu durante um jantar na propriedade de um amigo. A conversa transcorria
muito bem até que Tolstói começou a criticar Turgenev pela maneira como ele
estava criando a filha (uma que nascera fora do casamento, de um caso de
Turgenev com uma de suas criadas). “Se fosse sua filha legítima, você a
educaria de maneira diferente”, Tolstói declarou. Um furioso Turgenev
levantou-se da cadeira e gritou: “Se você continuar falando assim eu o
esbofetearei!”.
O jantar terminou,
mas a rixa prosseguiu. Numa subsequente troca de bilhetes enfurecidos, Tolstói
desafiou Turgenev para um duelo: até mesmo enviou as pistolas. Embora os dois
gigantes literários não tenham realmente se enfrentado, eles decidiram nunca
mais falar um com o outro. “Temos de viver como se existíssemos em planetas
diferentes”, Turgenev concluiu.
E assim fizeram,
apesar da proximidade das suas casas, reconciliando-se apenas quando Tolstói
descobriu a religião e começou a fazer as pazes com todos aqueles a quem havia
ofendido (uma longa lista, ao que parece). Turgenev aceitou o seu pedido de
desculpas, mas os dois permaneceram distanciados.
Um livro sobre nada?
Desculpem-me, fãs
do Seinfeld, mas o título original de
Guerra e Paz não era Guerra: para que isso serve? como
informou Elaine Benes ao romancista russo Yuri Testikov num clássico episódio
da série dos anos 90. O verdadeiro título em questão era a frase de Shakespeare
Tudo está bem quando acaba bem.
Fã-clube
Tolstói foi um dos
primeiros escritores a atrair seguidores, dizem até que ele gerou um culto.
Perto do fim da sua vida, cerca de cem fãs acamparam em volta da sua
propriedade no campo, esperando uma chance de tocar no manto do grande
escritor.
A última palavra
Tolstói continuou
sendo um iconoclasta comprometido até o fim. Em seus instantes finais de vida,
os amigos o aconselharam a se reconciliar com a Igreja Ortodoxa Russa. Tolstói
se recusou. “Mesmo no vale das sombras da morte”, insistiu, “dois mais dois não
são seis”.
Essa declaração é
frequente, e erroneamente atribuída como sendo as suas últimas palavras. Na
verdade as últimas palavras de Tolstói foram bem mais enigmáticas, embora menos
profundas: “Mas os camponeses... Como morrem os camponeses?”.
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