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quinta-feira, dezembro 24, 2015

A vida secreta de Franz Kafka (03/JUL/1883 – 03/JUN/1924)


Você sabe que é um grande escritor quando o seu sobrenome passa a ser usado como um adjetivo. Como iríamos descrever algo como “kafkiano” se não fosse por Kafka? Essa é uma pergunta que provavelmente jamais ocorreu a esse indefinível filho de um comerciante de Praga, que morreu sem saber com que perfeição os seus romances e contos apavorantes capturaram uma época, uma sociedade e um sentimento universalmente reconhecido de alienação e desespero.

O pai dominador de Kafka ajudou a fomentar esse sentimento, depreciando o filho desde a tenra infância como fisicamente fraco, que jamais equipararia o seu sucesso como fornecedor de bengalas sofisticadas. Deus sabe o quanto o pequeno Franz tentou. Foi um aluno exemplar, fez seu bar mitzvah e conquistou um diploma de advogado, mas desde muito jovem ele descobriu que seu único meio de libertação era por meio da leitura e da escrita – atividades que Herman Kafka considerava triviais e sem valor.

Um fiasco como advogado, Kafka tentou trabalhar com seguros. Aceitou um emprego como gerente de pagamentos no Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho da Boêmia, mas o horário de trabalho era cruel e as condições, absurdas: ele passava a maior parte do tempo redigindo formulários com descrições de dedos cortados, retalhados e mutilados para documentar aparelhamentos defeituosos e máquinas com mau funcionamento.

Como escreveu ao amigo e colega escritor Max Brod: “Você não faz idéia de como estou ocupado... As pessoas tropeçam em andaimes e por cima de máquinas como se estivessem bêbadas. Todas as pranchas tombam, todos os aterros desabam, todas as escadas escorregam, tudo o que é erguido cai, tudo o que é posto para baixo atira alguém para cima. E todas aquelas jovens em fábricas de porcelana que constantemente se arremessam por lances inteiros de escada carregando montanhas de louças provocam-me dores de cabeça”.

A vida pessoal de Kafka oferecia pouco refúgio para esse pesadelo. Ele era um patrocinador regular de diversos bordéis em Praga e divertia-se com uma aparentemente inesgotável sucessão de casos rápidos com balconistas de bares, garçonetes e vendedoras de lojas – se é que se pode chamar isso de diversão. Kafka enojava-se com o sexo e sofria de um considerável complexo de madona/prostituta. Achava que todas as mulheres que conhecia eram virgens ou prostitutas e, uma vez que estivesse fisicamente satisfeito, não queria ter mais nada com elas. A idéia de uma vida normal de casado lhe provocava asco. “O coito é o castigo pela felicidade de se estar junto”, ele escreveu em seu diário.

Apesar dessas deficiências e de uma inegável ausência de auto-estima, Kafka conseguiu manter uns poucos relacionamentos duradouros, embora ainda seja uma questão em aberto se ele realmente praticava sexo com alguma dessas mulheres. Em 1912 ele conheceu Felice Bauer durante uma estada na casa de Brod em Berlim. Kafka conquistou-a escrevendo longas cartas nas quais confidenciava seus sentimentos de inadequação física – sempre uma boa estratégia com as damas. Ela ajudou a inspirar algumas das suas grandes obras, incluindo O Processo e A Metamorfose

Talvez também o tenha inspirado a traí-la com sua melhor amiga, Grete Bloch, que, anos depois, afirmou que Kafka era o pai de seu filho ilegítimo, o que é atualmente debatido por muitos acadêmicos. O relacionamento com Felice terminou em julho de 1914 com uma briga feia no escritório de Kafka no Instituto de Seguros, durante a qual Felice leu em voz alta as cartas de amor que ele escrevera para Grete.

Kafka então manteve um caso por correspondência com Milena Jesenká-Pollak, esposa de seu amigo Ernest Pollak (imagine o tipo de conquistador que ele seria se tivesse vivido na era dos e-mails), mas o relacionamento terminou em 1923 por insistência dele. Mais tarde Kafka usou Milena como uma das personagens do seu romance O castelo.

Finalmente Kafka conheceu a professora de jardim-de-infância Dora Dymant num acampamento de crianças judias em 1923, quando já estava atacado pela tuberculose. Com a metade da idade de Kafka e vinda de uma família judia ortodoxa polonesa, Dora cuidou dele durante o seu último ano de vida. Eles estudavam o Talmude juntos e falavam sobre emigrar para a Palestina, onde sonhavam abrir um restaurante, com Dora na cozinha e Kafka atendendo as mesas. Ele até mesmo escreveu para um kibutz, pedindo informações sobre um emprego de contador, mas tais planos foram subitamente interrompidos pela morte dele em 1924.

Ninguém ficou muito surpreso por Kafka não ter vivido até uma idade avançada. Seus amigos sabiam que ele era um hipocondríaco consumado, que vivia se queixando de enxaqueca, insônia, constipação, falta de ar, reumatismo, furúnculo, manchas na pele, queda de cabelo, deficiência de visão, deformação leve no dedo do pé, extrema sensibilidade ao barulho, exaustão quase constante, coceiras e pruridos por todo o corpo e uma variedade de outras doenças, reais e imaginárias. Ele tentava rebater essas enfermidades com a prática diária de exercícios calistênicos e uma série de tratamentos naturopático, que incluíam laxantes naturais e uma dieta estritamente vegetariana.

Mas, no fim das contas, Kafka tinha bons motivos para se preocupar – contraiu tuberculose em 1917, provavelmente como resultado da ingestão de leite não-pasteurizado. Os últimos sete anos da sua vida foram uma busca incessante por curas milagrosas e pelo ar puro do qual precisava desesperadamente para aliviar os pulmões enfermos. Quando morreu, deixou um bilhete em sua mesa instruindo o amigo Brod a queimar todas as obras, com exceção de O Processo, Contemplação/O Foguista, A Metamorfose, O Veredicto/Na Colônia Penal e Um médico rural. Brond decidiu não cumprir a ordem. Em vez disso, preparou as obras O Processo, O Castelo e O Desaparecido ou Amerika para publicação e ajudou a assegurar ao amigo e a si mesmo um lugar na história literária.


Sr. Segurança

Kafka foi mesmo o inventor do capacete de segurança? O professor de gestão de negócios Peter Drucker afirma que sim em seu livro A administração na próxima sociedade, publicado em 2002. Drucker creditava a Kafka o desenvolvimento do primeiro capacete de segurança civil quando trabalhava como gerente de pagamentos no Instituto de Segurança de Acidentes de Trabalho de Boêmia, mas não está bem claro se ele inventou o protetor de cabeça ou se apenas determinou que seu uso fosse obrigatório. O certo é que Kafka foi premiado pelos seus esforços com a medalha de ouro da Sociedade Americana de Segurança, posto que ajudou a reduzir as fatalidades na indústria e nos forneceu um estereótipo duradouro dos trabalhadores de construções, no qual confiamos até os dias atuais.

Jens e Franz

Envergonhados do seu corpo magro e dos músculos fracos, Kafka sofria do que hoje chamamos de imagem corporal negativa. Muitas vezes ele escreveu em seus diários sobre o quanto desprezava sua própria aparência física – um tema que também apareceu repetidamente em sua ficção.

Muitos anos antes de Charles Atlas prometer aos banhistas magricelos que conseguiria esculpir seus corpos por meio do levantamento de peso, Kafka já praticava exercícios calistênicos sob uma janela aberta, seguindo as instruções do seu preparador físico dinamarquês Jens Peter Muller, um guru dos entusiastas por exercícios cujas “dicas” de saúde eram entremeadas de exortações racistas sobre a superioridade do corpo nórdico. Obviamente não era a pessoa mais indicada para dar lições de vida ao neurótico judeu da Boêmia.

Engula essa

Como resultado de sua baixa auto-estima, Kafka tornou-se um maníaco por planos de dieta malucas, e exóticas. Uma das que realmente conquistou a imaginação dele foi a chamada Fletcherismo, um absurdo regime de mastigação criado por um “novidadeiro” vitoriano e defensor da alimentação natural cognominado “o grande mastigador”.

Flecher argumentava que era preciso mastigar os alimentos na boca exatamente quarenta e cinco vezes antes de engolir. “A natureza irá castigar aqueles que não mastigam”, ele alertava, e Kafka levava a sério o aviso. De acordo com uma anotação em seu diário, o pai dele ficava tão enojado com o barulho constante da sua mastigação que se escondia por trás do jornal na mesa de jantar.

Carne é crime

Kafka era um vegetariano convicto, tanto por motivos relacionados à saúde como por motivos éticos. (Sendo neto de um açougueiro kosher, essa convicção reforçava a crença de seu pai de que o filho era um fracasso total e absoluto.) Certo dia, quando admirava os peixes em um aquário, Kafka declarou: “Agora posso admirá-los em paz. Eu não os como mais!” Um dos primeiros defensores da dieta de alimentos crus, Kafka também envolveu-se no movimento antivivissecção.

A verdade nua

Para um homem que escreveu tanto sobre espaço fechados, atulhados e escuros, Kafka certamente adorava ficar ao ar livre. Era conhecido por fazer longas caminhadas pelas ruas de Praga, sempre acompanhado do bom amigo Max Brod. Também foi adepto do nudismo, então muito em voga, passando temporadas em meio ás multidões despidas em um spa chamado A Fonte da Juventude.

Contudo, é pouco provável que Kafka tenha realmente tirado as calças, pois era extremamente retraído quando à nudez – a sua própria ou de qualquer outra pessoa. Os outros hóspedes do spa o chamavam de “o homem com o calção de banho”, e por mais de uma vez ele foi desagradavelmente surpreendido por outros residentes, que apreciam nus na frente dos seus aposentos ou que passavam por ele au naturel a caminho dos bosques nas proximidades.

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