Jean-Paul Sartre tinha o mérito duplo de ser um reverenciado herói
nacional e o objeto de inúmeros esquetes satíricos do grupo Monty Python. Numa
mescla quase perfeita de pensador comprometido e falastrão tedioso e hipócrita,
Sartre era um alvo fácil de piadas, mas alguém difícil de se ignorar. Em 1960,
quando ele ultrajou a sociedade burguesa da França incitando publicamente os soldados
franceses baseados na Argélia a desertarem, indagaram ao presidente Charles de
Gaulle por que ele não mandava jogar na prisão aquele agitador. “Não se manda
prender Voltaire”, De Gaulle respondeu – um sinal tão bom quanto qualquer outro
de quem Sartre ocupava um lugar de exclusivo destaque na sociedade francesa.
Sartre era filho de um oficial da marinha francesa, que morreu quando
ele ainda era bebê, e de uma alemã alsaciana, prima de Albert Schweitzer, o
grande médico e humanitarista. O estrabismo que o caracterizou foi o resultado
de um grave resfriado na infância, que o deixou quase cego do olho direito.
Sobrecarregado com o fardo da aparência feiosa e o consequente medo de
intimidade física, Sartre parecia destinado desde jovem a uma carreira em
filosofia.
Ele estudou em Sorbonne, onde conheceu a amante que o acompanhou por
toda sua vida, Simone de Beauvoir, uma mulher estranhamente atraída por ele
apesar da sua feiura, da baixa estatura e da revoltante falta de higiene. Ela
suportou até mesmo o seu esquisito hábito de escrever relatando em detalhes
suas aventuras eróticas com outras mulheres. Os dois permaneceram amantes –
embora dificilmente monógamos – pelo resto da vida dele.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Sartre trabalhou como meteorologista
no exército francês, mas foi capturado pelos alemães e levado a um campo de prisioneiros,
onde encontrou um ambiente estranhamente propício para escrever peças teatrais.
Conquistou sua liberdade depois de convencer as autoridades alemãs de que era
parcialmente cego, e partiu imediatamente para a Paris ocupada e para um
confortável cargo de professor que ficaria convenientemente disponível quando
um educador judeu foi – ahã – “transferido” para o leste. Se as circunstâncias
desse emprego atormentaram a consciência de Satre, ele jamais demostrou.
Na verdade, o filósofo, romancista e dramaturgo deu-se muito bem sob o
regime nazista. Bem estimulado, ele escreveu seu tratado existencialista O ser e o nada em 1943. Sua peça No exit (“Sem saída”) foi um sucesso em
1944. E embora Sartre se unisse à Resistência Francesa “da boca para fora”, ele
fez muito pouco, ou nada, para lutar contra a ocupação nazista. Depois da
libertação da França tudo foi perdoado e Sartre viu-se alçado ao posto de herói
nacional.
Seu sistema de crença existencialista, baseado na experiência do
desespero e na necessidade de extrair o significado de si mesmo por meio do
compromisso com o mundo que nos rodeia, tornou-se a última moda em seu país e
por toda a Europa. Politicamente, Sartre tendia para a esquerda, alinhando-se
com o Partido Comunista Francês e se tornado o porta-voz dos movimentos de
libertação do terceiro mundo.
Como se fosse para provar a antiga máxima de que o pessoal é o político,
ele também arranjou uma amante argelina, Arlette Elkaim, a quem adotou
secretamente em 1973. Seus últimos anos foram atormentados pela doença, em
grande parte causada pela sua dieta de álcool, tabaco e anfetaminas.
Conforme seu tempo na Terra ia se esgotando, Sartre começou a repensar
seu compromisso com o ateísmo, que durara a vida inteira. Em uma entrevista ao
seu bom amigo Benny Lévy, no início de 1980, ele confessou estar mudando de
opinião quando à existência de Deus. “Não sinto que sou o produto de acaso, de
um grão de poeira no universo”, Sartre admitiu, “mas alguém que foi esperado,
preparado, prefigurado. Em resumo, um ser a quem somente um Criador poderia ter
posto aqui; e essa idéia de uma mão criadora refere-se a Deus”.
Pode-se desculpar um homem moribundo por expressar tal esperança em seus
momentos finais, mas, numa revelação mais perturbadora, Sartre prosseguiu
renegando virtualmente toda a base da sua filosofia: “Falei sobre isso porque
estava sendo falado... Era um modismo... Jamais experimentei o desespero, nem o
considero uma qualidade que poderia ser minha”.
Temendo que as legiões de seguidores de Sartre se enfurecessem com essa
admissão do tipo “Desculpe, pessoal, eu só estava brincando”, Simone de
Beauvoir apressou-se em repudiar a surpreendente retratação do seu antigo
amante, chamando-a de “o ato senil de um vira-casaca”.
Com a casaca suficientemente virada, Sartre morreu durante o sono no dia
15 de abril de 1980, partido para ninguém sabe onde. Uma multidão de cinquenta
mil pessoas enfileirou-se nas ruas de Paris para ver a procissão do seu
funeral.
Lindo castor!
Sartre inventou um apelido incomum para Simone de Beauvoir. Ele a
chamava de le castor porque seu nome
soava como a palavra beaver que, em
inglês, significa castor.
Um brinde ao nada!
A imagem de um grupo de franceses intelectuais tagarelando em volta de
mesinhas nas calçadas dos cafés de Paris é um estereótipo que devemos
principalmente a Sartre. No auge da sua fama, ele era frequentemente visto
matando tempo com sua amante Simone de Beauvoir e outros integrantes do seu
círculo de existencialistas. Verdade seja dita, eles não eram farristas muito
bem comportados.
Sartre e sua turma, certa vez, estavam entornando garrafas e garrafas de
champanhe em um café de Paris. A cada vez que enchiam as taças, faziam um
brinde ao absurdo da existência. Os brindes começaram a ficar crescentemente barulhentos
e, não demorou muito, uma mulher apareceu numa janela e exigiu que eles
fizessem silêncio. Em resposta, Sartre e seus amigos passaram a fazer ainda
mais algazarra.
Furiosa, a mulher desapareceu dentro do apartamento e voltou logo
depois, com um balde cheio de fazes. Em seguida jogou o conteúdo pela janela,
tendo como alvo Sartre e companhia. Fosse por um erro de pontaria, ou por culpa
do vento que soprava no lado errado, ela errou o alvo e, em vez do pretendido,
acabou acertando um outro cliente que estava a caminho do café.
Convencido de que aquela era a prova da validade da sua filosofia, os
existencialistas embriagados recomeçaram imediatamente a brindar pelo absurdo
do universo.
Estranha “viagem”
“Psicodélico” e “Sartre” pode parecer uma combinação estranha, mas vamos
dar crédito ao autor por estar muito à frente do seu tempo. Sartre já estava
fazendo experiências com substâncias alucinógenas na década de 1930, muito
antes de Timothy Leary ter ajudado a transformá-las em moda na contracultura
dos anos 1960.
Determinado, como ele dizia, a “romper os ossos do crânio” e destravar a
imaginação, Sartre ingeriu mescalina pela primeira vez em 1935, sob a
supervisão de um médico estagiário com quem fizera amizade. No início, os
efeitos foram amenos. Mas, depois de alguns dias, Sartre passou a sofrer
alucinações cada vez mais desagradáveis. Numa delas, ele acreditava estar sendo
perseguido por uma lagosta gigante. Também relatou ter visto orangotangos, um
relógio com a cara de uma coruja e casas que encaravam as bocas.
As estranhas visões continuaram a assombrá-lo por quase um ano. Mais
tarde, Sartre escreveu sobre alguma das suas percepções psicodélicas em seu
romance A náusea, nas cenas em que o
protagonista, Roquentin, sente-se como se estivesse se “unindo” ao ambiente
natural que o cerca.
Baforadas
Quando não estavam experimentando drogas pesadas, Sartre se contentava
com a droga favorita de sempre: nicotina. Ele fumava dois maços de cigarros e
vários cachimbos cheios de tabaco por dia. Até mesmo na França, isso é muito,
além de ser uma imagem ruim para um ícone nacional.
Na verdade, quando a Biblioteca Nacional da França lançou um pôster
comemorativo no centésimo aniversário do nascimento de Sartre, os oficiais
foram forçados a retirar da foto o cigarro que ele tinha na mão, em cumprimento
das leis que proíbem a propaganda de cigarros.
Segure o caranguejo
Talvez tivesse alguma relação com suas visões induzidas pela droga de
uma lagosta gigantesca e ameaçadora, mas desde a infância Sartre tinha medo das
criaturas marinhas, especialmente os crustáceos. Ele ficava aterrorizado com a
idéia de ser apanhado pelas garras de um caranguejo, ou de que um polvo o
atacasse e o puxasse para o fundo do mar.
Meus companheiros de terror
A política radical de Sartre colocou-o em contato com alguns personagens
bem desagradáveis. Em 1960, ele viajou para Cuba para “levar um papo” sobre
revolução com Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara. Sartre ficou tão
impressionado que louvou o mortífero Che Guevara como sendo “o mais completo
ser humano da nossa época”.
Quando os terroristas palestinos mataram onze atletas israelenses nas
Olimpíadas de Munique em 1972, Sartre foi rápido na defesa deles, dizendo que o
terrorismo era uma “arma terrível”, mas os pobres e oprimidos não possuem
outras”. Ele também declarou que era “absolutamente escandaloso o fato de o
ataque de Munique ter sido julgado pela imprensa francesa e por uma parte da
opinião pública como sendo um escândalo intolerável”.
Em 1974, ele visitou Andreas Baader, líder do infame grupo Baader-Meinhof,
em sua cela na prisão Stammheim, em Stugart, Alemanha. Embora mais tarde
descartasse Baader como sendo “incrivelmente estúpido” e “um idiota”, logo após
o encontro Sartre foi à televisão alemã para defender a criação de um comitê
internacional para proteger os interesses dos “prisioneiros políticos”. (Os
crimes de Baader incluíam múltiplos assaltos a bancos e a explosão de uma loja
de departamentos em Frankfurt.)
O conquistador
Apesar da aparência desairosa, Sartre foi um mulherengo notório que
passava de uma amante para outra com a mesma avidez com que fumava seus muitos
cigarros Boyard. Ele até tentou conquistar uma bela e jovem jornalista enquanto
Simone de Beavoir estava no hospital, recuperando-se de uma febre tifoide.
Sartre justificava a sua infidelidade comparando-a com a masturbação e se
recusava a atingir o orgasmo juntamente com as parceiras – não para evitar a
gravidez, mas simplesmente para negar a elas uma desnecessária intimidade.
Proibido fumar
Talvez Sartre não tenha se esforçado muito para ajudar a Resistência
Francesa, mas em pelo menos um aspecto ele foi contra a ocupação nazista. A
escassez de cigarros durante a guerra atrapalhou seriamente o seu hábito de
fumar dois maços por dia. Indômito, o criativo filósofo frequentemente era
visto recolhendo “bitucas” de cigarros nos pisos de cafés, e depois enchia o
cachimbo com o tabaco que retirava delas.
O amor de Sartre pelo cigarro era tanto que ele até permitia que seus
alunos fumassem na classe. Abandonou o vício somente depois que os médicos
ameaçaram amputar suas pernas para curar os seus problemas circulatórios.
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