Enaltecido por um
crítico como o mais raro dos autores que “escrevia somente obras-primas”, Joyce
compartilhava com o mundo a elevada opinião sobre seu trabalho. Embora certa vez
tivesse dito a W.B. Yeats que “você e eu logo seremos esquecidos”, em momentos
menos dissimulados Joyce se considerava como um presente de Deus à ficção
moderna. Mais de setenta anos depois de sua morte, poucas pessoas discordariam
dessa afirmação. (E menos pessoas ainda conseguiram ler as suas duas últimas
obras-primas do início ao fim, mas essa é uma outra história.)
Joyce nasceu em uma
família irlandesa católica relativamente próspera, cujas condições financeiras
acabaram sendo prejudicadas pelo pai alcoólatra e esbanjador. Indagado depois
da morte de John Joyce como havia sido o seu pai, James respondeu: “Um falido”.
Ainda assim, o salário que o velho Joyce recebia como coletor de impostos foi
mais que suficiente para enviar o pequeno Jimmy a excelentes colégios internos
e a encaminhá-lo muito bem no estudo da Medicina. Mas foi aí que o vírus da
literatura o contaminou e todos os sonhos de pagar as dívidas acumuladas do pai
voaram pela janela.
Em 1904 Joyce
conheceu Nora Barnacle, a sensual camareira que acabou se tornando sua
companheira por toda a vida. Quando soube que o filho havia fugido com uma
mulher chamada Barnacle, John Joyce comentou com pena: “Ela jamais o deixará”.
(Barnacle, para quem não sabe, é uma espécie de crustáceo que se gruda nos
cascos de navios e, tudo bem, as piadas de John eram mais engraçadas.)
Modelo ideal para
católicos relapsos de mundo inteiro, Joyce acabou dando as costas para todas as
instituições que antes o acolhiam – sua família, seu país e sua religião. A
frase “Non serviam” (Não servirei),
dita pelo protagonista de Retrato do
artista quando jovem, poderia ter sido também o lema de Joyce.
Sua coletânea de
contos intitulada Dublinenses foi
rejeitada por vinte e dois editores e queimada por um, que a declarou
moralmente repugnantes e “não-patriótica em seu retrato de Dublin”. Ulisses foi banido nos Estados Unidos
até 1933.
Em parte pela
frustação com a ignorância daqueles que o cercavam, em parte pelo desejo de
viver abertamente “em pecado” com Nora sem ter de se casar com ela, Joyce passou
quase toda a vida na Europa, principalmente em Paris, Zurique e Trieste, onde
escreveu e viveu sem ser perturbado, exceto pela ocasional deflagração da
guerra mundial.
A saúde era a sua
maior preocupação. A péssima visão o atormentou desde a infância. Seus óculos
tinham lentes grossas como fundos de garrafa e passou por onze cirurgias para
tratamento de miopia, glaucoma e catarata. Em determinado momento, o cristalino
do seu olho esquerdo foi removido completamente.
Outro problema era
a dor de dente. Em seus primeiros anos como jovem escritor, Joyce vivia à base
de chocolate, mas não tinha meios para pagar os tratamentos dentários que
deveriam acompanhar essa dieta tão açucarada; por conta disso, seus dentes
apodreceram e foram literalmente caindo, levando a uma inflamação da íris que
exarcebou ainda mais a fragilidade da sua visão. Quando dizia que havia
escolhido as palavras certas para o Ulisses,
mas que só precisaria colocá-las em perfeita ordem, talvez não estivesse
brincando. Durante o último terço de sua vida ele estava quase totalmente cego.
No dia 10 de
janeiro de 1941, Joyce contorceu-se com dores de estômago e foi levado para um
hospital de Zurique. O diagnóstico foi úlcera duodenal rompida e ele logo
entrou em coma, despertando apenas uma vez para proferir suas últimas palavras:
“Será que ninguém entende?”. Um padre católico ofereceu-se para conduzir seu
funeral, mas Nora objetou, dizendo: “Eu não poderia fazer isso a ele”. Joyce
está enterrado sob uma simples lápide no Cemitério Fluntern, em Zurique.
Latidos e “bums”
Joyce tinha pavor
mortal de suas coisas: cachorros e trovões. A primeira fobia era bem
compreensível, porque quando criança ele havia sido mordido no queixo por um
cão vira-lata enquanto brincava de jogar pedras na praia. Quando ao medo de
trovões, Joyce poderia atribuí-lo á babá que teve na infância.
Católica devota,
ela o ensinou que as tempestades de raios eram uma manifestação da fúria de
Deus e insistia para que ele fizesse o sinal da cruz e rezasse sempre que visse
o estouro de um relâmpago. Mesmo quando adulto, Joyce estremecia toda vez que
ouvia o estrondo de um trovão. Quando alguém lhe perguntava o porquê desse
medo, ele dizia simplesmente: “Você não foi criado na Irlanda católica”.
Retrato de artista quando velho e pervertido
Dizer que Joyce tinha
uma imaginação sexual ativa seria uma declaração muito suave. “As duas partes
do corpo que fazem sujeira são as mais adoráveis para mim”, ele escreveu em uma
das inúmeras cartas eróticas que enviava à sua amante Nora Barnacle. “Gostaria
que você me batesse ou até mesmo me açoitasse”, entusiasmou-se em outra carta.
“Gostaria de ser açoitada por você, Nora, meu amor!”. E esses são apenas dois
trechos mais brandos.
As cartas de amor
de Joyce estão repletas de descrições explícitas de atos sexuais que ele
compartilhou, ou gostaria de ter compartilhado, com ela. Em meio às referências
anatômicas bastante gráficas que Joyce usava como auxílio masturbatório, estão
os repetidos e devassos louvores aos “peitos cheios e grandes” de Nora e a sua
“bunda repleta de peidos”.
De fato, Joyce
parecia ter um lugar especial em seu, bem, coração para o aroma dos gases da
mulher e pela visão das suas roupas íntimas sujas. Esquisito? Sim. Sensual? É
discutível. Nora também participava dessas sessões de cheirar calcinhas? As
cartas dela para ele parecem ser igualmente erótica e “sujas” – talvez ainda
mais. “Você perece ter o poder de me transformar em animal”, Joyce escreveu em
outra lasciva missiva. “Foi você mesma, menina malvada e desavergonhada, a
primeira a guiar-me neste caminho”.
“Gosto de bumbuns e não vou negar”
Como o cantor Sir
Mix-a-Lot, Joyce era atraido por uma parte especial do corpo feminino, acima de
todas as outras. Quando lhe contaram uma história sobre um rei canibal que
escolhia suas consortes reais baseado no tamanho dos seus traseiros, Joyce
retrucou: “Espero sinceramente que quando bolchevismo finalmente varrer o
mundo, possa poupar este esclarecido potentado”.
Sessão Kvetch
Às vezes um
encontro entre duas lendas literárias não corresponde tão bem às nossas
elevadas expectativas. O caso em questão foi o encontro de Joyce, em 1922, com
o escritor francês Marcel Proust. Na época, os dois eram o mais aclamados
romancistas no mundo. Quando compareceram a um mesmo jantar festivo em Paris,
todos silenciaram. As pessoas presumiram que os dois gênios literários teriam
muito em comum – e estavam certas.
Como dois velhotes
num banco de jardim, Joyce e Proust imediatamente começaram a se queixar um ao
outro das suas diversas enfermidades. “Tenho dores de cabeça todos os dias...
Minha visão é horrível”, Joyce resmungou. “Meu pobre estômago está me matando...
O que vou fazer?”, Proust contra-atacou. E depois de uma breve e constrangedora
conversa sobre como gostava de comer trufas, ambos admitiram que não haviam
lido as obras um do outro.
Sem mais nada sobre
o que conversar, Proust, famoso pela sua timidez, escapou em direção da porta.
Joyce o acompanhou no táxi até a casa dele, esperando continuar a conversa,
mas, infelizmente, não era para ser. O autor de Em busca do tempo perdido desapareceu no interior do seu prédio de
apartamento sem nem mesmo oferecer ao seu colega uma madeleine para comer no caminho.
Conflito de gerações
O encontro de Joyce
com outro ícone literário – William Butler Yeats – foi quase tão desastroso
quanto o anterior. O reverenciado poeta irlandês tentou com afinco fazer com
que seu conterrâneo mais jovem gostasse dele, mas seus esforços foram em vão.
Yeats até mesmo se ofereceu para ler algumas das terríveis poesias de Joyce,
porém este, relutante, esgueirou-se com a arrogante réplica: “Eu o farei, desde
que você me peça, mas não darei mais importância à sua opinião do que daria à
de qualquer um que encontrasse na rua”.
Uma troca de
opiniões generalizadas sobre literatura então se seguiu. Quando Yeats mencionou
Honoré de Balzac, Joyce rui dele. “Quem lê Balzac hoje em dia?”, zombou.
Finalmente a discussão voltou-se para o trabalho do próprio Yeats, que ele
descreveu como estando numa fase mais experimental. “Ah”, Joyce comentou, “isso
demonstra quão rapidamente você está deteriorando”. Quando a conversa se
encerrou, Joyce foi sumariamente evasivo. “Nós nos conhecemos tarde demais”,
disse a Yeats. “Você é velho demais para mim e eu não causo efeito algum em
você”.
Por todo o
transcorrer dessa sucessão de insultos, Yeats mordeu a língua. Mas tarde,
porém, foi bem mais sincero quando escreveu a Joyce: “Tal colossal
autopresunção, com um gênio literário tão liliputiano, eu jamais vi combinados
em uma única pessoa”.
Fale com a mão
Algumas pessoas
realmente compartilham da elevada opinião de Joyce sobre si mesmo. Certo dia em
Zurique um jovem aproximou-se dele na rua. “Posso beijar a mão que escreveu Ulisses?”, ele perguntou. “Não”, Joyce
respondeu. “Esta mão fez muitas outras coisas também”. Como Nora sem dúvida
poderia atestar.
Eternamente “chato”
Joyce detestava
monumentos. Uma vez, quando estava passando em um táxi pelo Arco do Triunfo, em
Paris, um amigo perguntou-lhe por quanto tempo a eterna chama em seu interior
iria arder. “Até o dia em que o Soldado Desconhecido se levantar enojado e a
apagar com um sopro”, Joyce retrucou.
“Quark” as minhas palavras
No mundo da física
de partículas, o quark é um dos blocos construtores fundamentais da matéria. É
também o nome de um carro francês conceitual, de um personagem do Jornada nas estrelas: deep space nine e
do cachorro da família Szalinski na comédia de ficção científica de 1989, Querida, encolhi as crianças. Todos
esses usos se devem a James Joyce.
O físico
norte-americano Murray Gell-Mann foi o primeiro a denominar as partículas
subatômicas de “quarks” em uma referência aos brados de escárnio que as três
aves marinhas enviam ao Rei Mark na página 383 do romance Finnegans Wake. (A frase complete é “Three quarks for Muster Mark!”.
Ou “Três quarks para o Mestre Mark!”)
Surdez de Finnegan
E por falar em “The wake” (como é informalmente
conhecido entre os admiradores de Joyce), o famoso e impenetrável último
romance de Joyce se tornou um pouco mais incompreensível graças ao problema de
audição de Samuel Beckett.
Joyce, que já
estava quase cego quando escreveu o romance, estava ditando-o a Beckett, que
então o redigia. Durante uma dessas sessões, alguém bateu à porta e Joyce
disse: “Entre!”, mas Beckett, que estava com dificuldade para ouvir, não
escutou a batida na porta, só a resposta de Joyce, e rapidamente a escreveu no
manuscrito.
Mais tarde, quando
Joyce fez com que o trecho fosse lido para ele, gostou da maneira como soava e
decidiu manter o “Entre!” no livro finalizado.
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