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quinta-feira, dezembro 24, 2015

A vida secreta de James Joyce (02/FEV/1882 – 13/JAN/1941)


Enaltecido por um crítico como o mais raro dos autores que “escrevia somente obras-primas”, Joyce compartilhava com o mundo a elevada opinião sobre seu trabalho. Embora certa vez tivesse dito a W.B. Yeats que “você e eu logo seremos esquecidos”, em momentos menos dissimulados Joyce se considerava como um presente de Deus à ficção moderna. Mais de setenta anos depois de sua morte, poucas pessoas discordariam dessa afirmação. (E menos pessoas ainda conseguiram ler as suas duas últimas obras-primas do início ao fim, mas essa é uma outra história.)

Joyce nasceu em uma família irlandesa católica relativamente próspera, cujas condições financeiras acabaram sendo prejudicadas pelo pai alcoólatra e esbanjador. Indagado depois da morte de John Joyce como havia sido o seu pai, James respondeu: “Um falido”. Ainda assim, o salário que o velho Joyce recebia como coletor de impostos foi mais que suficiente para enviar o pequeno Jimmy a excelentes colégios internos e a encaminhá-lo muito bem no estudo da Medicina. Mas foi aí que o vírus da literatura o contaminou e todos os sonhos de pagar as dívidas acumuladas do pai voaram pela janela.

Em 1904 Joyce conheceu Nora Barnacle, a sensual camareira que acabou se tornando sua companheira por toda a vida. Quando soube que o filho havia fugido com uma mulher chamada Barnacle, John Joyce comentou com pena: “Ela jamais o deixará”. (Barnacle, para quem não sabe, é uma espécie de crustáceo que se gruda nos cascos de navios e, tudo bem, as piadas de John eram mais engraçadas.)

Modelo ideal para católicos relapsos de mundo inteiro, Joyce acabou dando as costas para todas as instituições que antes o acolhiam – sua família, seu país e sua religião. A frase “Non serviam” (Não servirei), dita pelo protagonista de Retrato do artista quando jovem, poderia ter sido também o lema de Joyce.

Sua coletânea de contos intitulada Dublinenses foi rejeitada por vinte e dois editores e queimada por um, que a declarou moralmente repugnantes e “não-patriótica em seu retrato de Dublin”. Ulisses foi banido nos Estados Unidos até 1933.

Em parte pela frustação com a ignorância daqueles que o cercavam, em parte pelo desejo de viver abertamente “em pecado” com Nora sem ter de se casar com ela, Joyce passou quase toda a vida na Europa, principalmente em Paris, Zurique e Trieste, onde escreveu e viveu sem ser perturbado, exceto pela ocasional deflagração da guerra mundial.

A saúde era a sua maior preocupação. A péssima visão o atormentou desde a infância. Seus óculos tinham lentes grossas como fundos de garrafa e passou por onze cirurgias para tratamento de miopia, glaucoma e catarata. Em determinado momento, o cristalino do seu olho esquerdo foi removido completamente.

Outro problema era a dor de dente. Em seus primeiros anos como jovem escritor, Joyce vivia à base de chocolate, mas não tinha meios para pagar os tratamentos dentários que deveriam acompanhar essa dieta tão açucarada; por conta disso, seus dentes apodreceram e foram literalmente caindo, levando a uma inflamação da íris que exarcebou ainda mais a fragilidade da sua visão. Quando dizia que havia escolhido as palavras certas para o Ulisses, mas que só precisaria colocá-las em perfeita ordem, talvez não estivesse brincando. Durante o último terço de sua vida ele estava quase totalmente cego.

No dia 10 de janeiro de 1941, Joyce contorceu-se com dores de estômago e foi levado para um hospital de Zurique. O diagnóstico foi úlcera duodenal rompida e ele logo entrou em coma, despertando apenas uma vez para proferir suas últimas palavras: “Será que ninguém entende?”. Um padre católico ofereceu-se para conduzir seu funeral, mas Nora objetou, dizendo: “Eu não poderia fazer isso a ele”. Joyce está enterrado sob uma simples lápide no Cemitério Fluntern, em Zurique.


Latidos e “bums”

Joyce tinha pavor mortal de suas coisas: cachorros e trovões. A primeira fobia era bem compreensível, porque quando criança ele havia sido mordido no queixo por um cão vira-lata enquanto brincava de jogar pedras na praia. Quando ao medo de trovões, Joyce poderia atribuí-lo á babá que teve na infância.

Católica devota, ela o ensinou que as tempestades de raios eram uma manifestação da fúria de Deus e insistia para que ele fizesse o sinal da cruz e rezasse sempre que visse o estouro de um relâmpago. Mesmo quando adulto, Joyce estremecia toda vez que ouvia o estrondo de um trovão. Quando alguém lhe perguntava o porquê desse medo, ele dizia simplesmente: “Você não foi criado na Irlanda católica”.

Retrato de artista quando velho e pervertido

Dizer que Joyce tinha uma imaginação sexual ativa seria uma declaração muito suave. “As duas partes do corpo que fazem sujeira são as mais adoráveis para mim”, ele escreveu em uma das inúmeras cartas eróticas que enviava à sua amante Nora Barnacle. “Gostaria que você me batesse ou até mesmo me açoitasse”, entusiasmou-se em outra carta. “Gostaria de ser açoitada por você, Nora, meu amor!”. E esses são apenas dois trechos mais brandos.

As cartas de amor de Joyce estão repletas de descrições explícitas de atos sexuais que ele compartilhou, ou gostaria de ter compartilhado, com ela. Em meio às referências anatômicas bastante gráficas que Joyce usava como auxílio masturbatório, estão os repetidos e devassos louvores aos “peitos cheios e grandes” de Nora e a sua “bunda repleta de peidos”.

De fato, Joyce parecia ter um lugar especial em seu, bem, coração para o aroma dos gases da mulher e pela visão das suas roupas íntimas sujas. Esquisito? Sim. Sensual? É discutível. Nora também participava dessas sessões de cheirar calcinhas? As cartas dela para ele parecem ser igualmente erótica e “sujas” – talvez ainda mais. “Você perece ter o poder de me transformar em animal”, Joyce escreveu em outra lasciva missiva. “Foi você mesma, menina malvada e desavergonhada, a primeira a guiar-me neste caminho”.

“Gosto de bumbuns e não vou negar”

Como o cantor Sir Mix-a-Lot, Joyce era atraido por uma parte especial do corpo feminino, acima de todas as outras. Quando lhe contaram uma história sobre um rei canibal que escolhia suas consortes reais baseado no tamanho dos seus traseiros, Joyce retrucou: “Espero sinceramente que quando bolchevismo finalmente varrer o mundo, possa poupar este esclarecido potentado”.

Sessão Kvetch

Às vezes um encontro entre duas lendas literárias não corresponde tão bem às nossas elevadas expectativas. O caso em questão foi o encontro de Joyce, em 1922, com o escritor francês Marcel Proust. Na época, os dois eram o mais aclamados romancistas no mundo. Quando compareceram a um mesmo jantar festivo em Paris, todos silenciaram. As pessoas presumiram que os dois gênios literários teriam muito em comum – e estavam certas.

Como dois velhotes num banco de jardim, Joyce e Proust imediatamente começaram a se queixar um ao outro das suas diversas enfermidades. “Tenho dores de cabeça todos os dias... Minha visão é horrível”, Joyce resmungou. “Meu pobre estômago está me matando... O que vou fazer?”, Proust contra-atacou. E depois de uma breve e constrangedora conversa sobre como gostava de comer trufas, ambos admitiram que não haviam lido as obras um do outro.

Sem mais nada sobre o que conversar, Proust, famoso pela sua timidez, escapou em direção da porta. Joyce o acompanhou no táxi até a casa dele, esperando continuar a conversa, mas, infelizmente, não era para ser. O autor de Em busca do tempo perdido desapareceu no interior do seu prédio de apartamento sem nem mesmo oferecer ao seu colega uma madeleine para comer no caminho.

Conflito de gerações

O encontro de Joyce com outro ícone literário – William Butler Yeats – foi quase tão desastroso quanto o anterior. O reverenciado poeta irlandês tentou com afinco fazer com que seu conterrâneo mais jovem gostasse dele, mas seus esforços foram em vão. Yeats até mesmo se ofereceu para ler algumas das terríveis poesias de Joyce, porém este, relutante, esgueirou-se com a arrogante réplica: “Eu o farei, desde que você me peça, mas não darei mais importância à sua opinião do que daria à de qualquer um que encontrasse na rua”.

Uma troca de opiniões generalizadas sobre literatura então se seguiu. Quando Yeats mencionou Honoré de Balzac, Joyce rui dele. “Quem lê Balzac hoje em dia?”, zombou. Finalmente a discussão voltou-se para o trabalho do próprio Yeats, que ele descreveu como estando numa fase mais experimental. “Ah”, Joyce comentou, “isso demonstra quão rapidamente você está deteriorando”. Quando a conversa se encerrou, Joyce foi sumariamente evasivo. “Nós nos conhecemos tarde demais”, disse a Yeats. “Você é velho demais para mim e eu não causo efeito algum em você”.

Por todo o transcorrer dessa sucessão de insultos, Yeats mordeu a língua. Mas tarde, porém, foi bem mais sincero quando escreveu a Joyce: “Tal colossal autopresunção, com um gênio literário tão liliputiano, eu jamais vi combinados em uma única pessoa”.

Fale com a mão

Algumas pessoas realmente compartilham da elevada opinião de Joyce sobre si mesmo. Certo dia em Zurique um jovem aproximou-se dele na rua. “Posso beijar a mão que escreveu Ulisses?”, ele perguntou. “Não”, Joyce respondeu. “Esta mão fez muitas outras coisas também”. Como Nora sem dúvida poderia atestar.

Eternamente “chato”

Joyce detestava monumentos. Uma vez, quando estava passando em um táxi pelo Arco do Triunfo, em Paris, um amigo perguntou-lhe por quanto tempo a eterna chama em seu interior iria arder. “Até o dia em que o Soldado Desconhecido se levantar enojado e a apagar com um sopro”, Joyce retrucou.

“Quark” as minhas palavras

No mundo da física de partículas, o quark é um dos blocos construtores fundamentais da matéria. É também o nome de um carro francês conceitual, de um personagem do Jornada nas estrelas: deep space nine e do cachorro da família Szalinski na comédia de ficção científica de 1989, Querida, encolhi as crianças. Todos esses usos se devem a James Joyce.

O físico norte-americano Murray Gell-Mann foi o primeiro a denominar as partículas subatômicas de “quarks” em uma referência aos brados de escárnio que as três aves marinhas enviam ao Rei Mark na página 383 do romance Finnegans Wake. (A frase complete é “Three quarks for Muster Mark!”. Ou “Três quarks para o Mestre Mark!”)

Surdez de Finnegan

E por falar em “The wake” (como é informalmente conhecido entre os admiradores de Joyce), o famoso e impenetrável último romance de Joyce se tornou um pouco mais incompreensível graças ao problema de audição de Samuel Beckett.

Joyce, que já estava quase cego quando escreveu o romance, estava ditando-o a Beckett, que então o redigia. Durante uma dessas sessões, alguém bateu à porta e Joyce disse: “Entre!”, mas Beckett, que estava com dificuldade para ouvir, não escutou a batida na porta, só a resposta de Joyce, e rapidamente a escreveu no manuscrito.

Mais tarde, quando Joyce fez com que o trecho fosse lido para ele, gostou da maneira como soava e decidiu manter o “Entre!” no livro finalizado.

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