Se solicitadas a relacionar algumas das características de Jack Kerouac,
poucas pessoas o identificariam como (a) franco-canadense; (b) político
conservador ou (c) estudante do curso preparatório. Mas o santificado autor de On the road – Pé na estrada foi todas essas coisas, sem mencionar um fanático
torcedor de beisebol que, talvez, tivesse sido mais feliz como rebatedor do Red
Sox do que como o pai da Geração Beat.
Nascido Jean-Louis Lebris de Kerouac em Lowell, Massachusetts, no ano de
1922, Kerouac era filho de um tipógrafo franco-canadense de Quebec. Ele não
falava sequer uma palavra em inglês até os cinco anos, e só foi dominar
completamente o idioma quando já era adolescente. Quando criança, divertia-se
escrevendo relatos físico de eventos esportivos. Frequentou a Horace Mann
School na cidade de Nova York, uma academia preparatória de elite, cujos
ex-alunos famosos incluem o advogado Roy Cohn, a estrela transexual do tênis
Renée Richards e o ex-governador de Nova York Eliot Spitzer.
A destreza de Kerouac no futebol lhe conquistou uma bolsa de estudos
para a Universidade de Colúmbia, onde ele certa vez se gabou de ter atingido o
recorde de faltas às aulas. Talvez tivesse permanecido um atleta burro se não
quebrasse a perna em seu segundo jogo, quando ainda era calouro. Em vez disso,
largou a faculdade e foi em busca de uma vida como escritor itinerante.
Os anos que passou viajando e anotando suas impressões em um diário
culminante, em abril de 1951, na lendária maratona de escrita na qual ele
produziu On the road – Pé na estrada.
Mas tarde Kerouac afirmou ter “batucado” na máquina o manuscrito de 175 mil
palavras em três semanas, transcrito em um enorme rolo de papel de telégrafo.
Muitos acadêmicos hoje concordam que o reverenciado “rolo de Kerouac”
incorpora material de vários anos de anotações dos seus diários. Qualquer que
tenha sido o processo, a lenda episódica de um “quadrado” do leste e seu
companheiro rebelde viajando através dos Estados Unidos e do México se tornou um
marco cultural instantâneo para a emergente Geração
Beat.
No espaço de um ano Kerouac já estava parecendo no The Steve Allen Show, lendo trechos da sua magnum opus com o acompanhamento do piano jazzístico de Steverino.
Infelizmente, esta foi uma das mais lúcidas aparições públicas de Kerouac
durante esse período. Com demasiada frequência ele se exibia embriagado ou
acabava descambando em arengas incoerentes sobre o budismo e sobre a verdadeira
natureza do gênio.
Conquistou alguns detratores ilustres, incluindo Truman Capote, que fez
um famoso comentário a respeito da obra de Kerouac: “Isso não é literatura. É
datilografia.” Deve-se salientar que, embora quase sempre seja associado à
composição automática e espontânea, Kerouac na verdade trabalhava assiduamente
para revisar seus manuscritos e torná-los mais vendáveis aos editores. E por
que não? Essa era a única forma de ganhar o dinheiro para a bebida.
Um alcoólatra vitalício, Kerouac passou a última década de sua vida
bebendo ao ponto do estupor. Sua produção literária reduziu-se a quase nada.
Ele mudou-se várias vezes, sempre acompanhado da mãe, e tornou-se cada vez mais
devoto do catolicismo. Morreu de hemorragia abdominal, com uma caneta e um
caderno nas mãos, no dia 21 de outubro de 1969.
Um pé na direita
Os beats mais radicais talvez
tivessem ficado mortificados ao descobrir que, em matéria de política, o pai do
seu movimento era um conservador. Católico devoto, Kerouac desprezava os
hippies e era a favor da Guerra do Vietnã. Quando alguém colocou uma bandeira
norte-americana sobre os ombros dele, numa festa no final dos anos 1960,
Kerouac fez questão de dobrá-la cuidadosamente e deixá-la de lado. Kerouac
também incluía William F. Buckley, fundador do National Review e “mestre” da direita, entre os seus melhores
amigos.
Qual é a palavra? Thunderbird!
Kerouac foi alcoólatra por toda a vida. Sua bebida preferida era o
Thunderbird, um vinho barato consumido por bêbados e indígenas de todas as
partes.
Diamante bruto
On the road – Pé na estrada pode ter sido o maior romance de Kerouac,
mas a sua maior criação certamente é a Ligia de Beisebol Fantasia. Muito antes
de as fantasias on-line e as ligas Rotisserie
se tornarem a mania nacional, o pai dos beats
já “mandava ver” com um conjunto de cartões e blocos de papel colorido. Ele
inventou a Liga quando criança, ainda em Lowell, Massachusetts, na década de
1930, e, já adulto, muitas vezes se referia a ela nas anotações em seu diário,
sugerindo que se tratava de um passatempo duradouro. Com seu uso de cartões e
estatísticas, o jogo era semelhante ao Strat-o-Matic,
que se tornou popular nos anos 1960.
No entanto, a versão de Kerouac era muito mais intricada e complexa.
Composta de seis times imaginários, sua liga possuía figuras da vida real, tais
como Pancho Villa e Lou Gehrig, e também jogadores imaginários como Home
Landry, Charley Custer e Luis Terceiro. Kerouac autoconsagrou-se o diretor de
um time conhecido como The Pittsburgh
Plymouths.
As “partidas” eram jogadas em tempo real, usando bolinhas de gude,
palitos de dentes e borrachas de apagar, que Kerouac lançava em alvos a doze
metros de distância. O “diretor” Kerouac mantinha registros detalhados do
desempenho de cada jogador. Ele criou cartões de pontos e até salários e dados
financeiros para o time.
Também criou um jornalzinho, o Jack
Lewis’s Baseball Chatter e publicou um boletim chamado The Daily Ball, no qual fornecia resumos dos jogos do dia,
substituições de última hora e listas dos líderes da liga. Algumas anotações
obsessivas aparecem em Atop an underwood,
uma coletânea dos primeiros textos de Kerouac. Outros, infelizmente, já
passaram para a história do beisebol.
Pé na estrada e mão na garrafa
Em 1958, no auge do seu triunfo literário, Kerouac mudou-se com a mãe
para uma casa em Northport, uma pequena cidade portuária na North Shore de Long
Island. Os habitantes locais ainda se lembram dele com carinho – como o “bebum”
da cidade. Kerouac era sempre visto perambulando pelas ruas descalço, ou usando
chinelos de quarto, completamente embriagado e puxando um carrinho de compra de
metal. A única coisa que ele comprava, no entanto, era bebida. Kerouac mantinha
uma garrafa de Canadian Club sempre escondida numa mala, para um caso de
emergência. De manhã, depois das bebedeiras, podia ser encontrado dormindo por
cima dos trilhos de bonde abandonados que cruzavam a cidade.
Outros refúgios que Kerouac frequentava assiduamente era o pub local e a
loja de bebida, onde já deixava uma cama dobrável para as siestas da tarde. Costumava também visitar a biblioteca pública,
mas se recusava a entrar, exigindo que as bibliotecárias lhe levassem os livros
enquanto ele esperava na calçada.
Tornou-se famoso por nunca ter cortado a grama do jardim e por pedir
carona sempre que precisava ir a algum lugar, o que raramente acontecia. Na
maior parte das noites ele ficava em casa, brincando com seus cartões de
beisebol ou ouvindo seleções de missas para réquiem em seu gravador.
De vez em quando os fãs empreendiam a viagem de uma hora desde Nova York
para encontrá-lo. Inseguro com a sua fama crescente, Kerouac gostava de
deixá-los embriagados e depois os levava em excursões “iradas” para as mansões
abandonadas de North Shore.
Kerouac trocou Northport por St. Petersburg, na Flórida, em 1964. Passou
a sua última noite na cidade bebendo, divertindo-se e cantando com os discos de
Mel Tormé. Depois foi encontrado dormindo num campo a vários quilômetros de
distância.
Não é almoço grátis
Kerouac e William Burroughs eram amigos de longa data, mas o
relacionamento começou a azedar na metade da década de 1950, devido ao hábito
constante de Kerouac de “filar bóia”. Quando Kerouac se hospedava na casa de
Burroughs nunca se oferecia para tirar a carteira do bolso e acabou abusando da
hospitalidade do autor de Almoço nu.
Em 1957, Burroughs rompeu a amizade. Os dois ícones da Geração Beat ficaram sem se falar por
mais de uma década. Encontraram-se apenas mais uma vez, em 1968, antes de uma
aparição de Kerouac no programa de entrevistas na tevê de seu velho amigo
William F. Buckley, Firing Line.
Kerouac estava bêbado e Burroughs alertou-o a não se apresentar, pois iria
passar por um vexame. Kerouac ignorou-o e, de fato, bancou o perfeito idiota em
rede nacional.
Com a bola toda
O milésimo fã de beisebol que passou pela catraca do estádio, num jogo
entre os Lowell Spinners e Williamsport Crosscutters da Classe A da New
York-Penn League, no dia 21 de agosto de 2003, recebeu um raro presente: um
boneco representando Jack Kerouac. Feito de plástico e resina, o boneco retrata
o jovem Kerouac com a aparência que ele deveria ter quando morou em Lowell.
Carregando uma mochila, com uma caneta e um caderno nas mãos, ele aparece numa
cópia de On the road – Pé na estrada.
O presente incomum gerou mais de dez mil dólares para o Fundo de Bolsas de
Estudo Jack Kerouac e recebeu extensa cobertura da mídia, incluindo artigos na Sports lllustrated e no New York Times. Foi também um substituto
secundário para o plano inicial do clube, que era estender no gramado o manuscrito
original de On the road – Pé na estrada.
O pedido do “rolo” para a realização de tal façanha foi negado pelo espólio de
Kerouac. O boneco-Kerouac atualmente se encontra em exibição no Baseball Hall
of Fame, em Cooperstown, Nova York.
Coisas de fã
Quem diria que Jack Sparrow era um fã tão ardoroso de Jack Kerouac? Em
1991 o ator Johnny Depp gastou mais de 50 mil dólares de compra de itens dos
executores do espólio de Kerouac. Suas compras incluíram quinze mil dólares
pela capa de chuva de Kerouac, dez mil pela sua pasta, cinco mil por uma das
suas velhas malas de viagem, dois mil por um suéter (espera-se que tenha sido
lavado nesse ínterim), três mil por um chapéu de chuva (não se pode ter a capa
sem o chapéu), dez mil por um casaco de tweed, cinco mil por uma carta de
Kerouac para Neal Cassidy e 350 dólares por um cheque “voador”, que foi
devolvido por uma loja de bebidas.
Gap de credibilidade
Em sua eterna busca por modelos “estilosos”, a rede de lojas de artigos
para vestuário The Gap lançou uma campanha publicitária baseada no tema Beat, nos anos 1990. Os anúncios impressos
exibiam uma foto de Kerouac usando calças cáqui e camiseta, e a frase “Kerouac
Usava Cáqui”. Muitos dos fãs mais radicais do escritor ficaram ultrajados com
essa apropriação póstuma da sua imagem. (A rede-irmã da The Gap, Banana
Republic, estava vendendo uma “Jaqueta Jack Kerouac” por 70 dólares, na mesma
época).
Como protesto, um grupo de poetas de Chicago criou uma paródia da
propaganda, com um anúncio que dizia “Hitler Usava Cáqui” e exibia a foto do
ditador nazista. Centenas de cópias foram então sub-repticiamente deixadas nas
lojas Gap de Chicago. Mesmo depois de tantos anos, ninguém podia “mexer” com os
beats.
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