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quarta-feira, dezembro 30, 2015

A vida secreta de Jack Kerouac (12/MAR/1922 – 21/OUT/1969)


Se solicitadas a relacionar algumas das características de Jack Kerouac, poucas pessoas o identificariam como (a) franco-canadense; (b) político conservador ou (c) estudante do curso preparatório. Mas o santificado autor de On the road – Pé na estrada foi todas essas coisas, sem mencionar um fanático torcedor de beisebol que, talvez, tivesse sido mais feliz como rebatedor do Red Sox do que como o pai da Geração Beat.

Nascido Jean-Louis Lebris de Kerouac em Lowell, Massachusetts, no ano de 1922, Kerouac era filho de um tipógrafo franco-canadense de Quebec. Ele não falava sequer uma palavra em inglês até os cinco anos, e só foi dominar completamente o idioma quando já era adolescente. Quando criança, divertia-se escrevendo relatos físico de eventos esportivos. Frequentou a Horace Mann School na cidade de Nova York, uma academia preparatória de elite, cujos ex-alunos famosos incluem o advogado Roy Cohn, a estrela transexual do tênis Renée Richards e o ex-governador de Nova York Eliot Spitzer.

A destreza de Kerouac no futebol lhe conquistou uma bolsa de estudos para a Universidade de Colúmbia, onde ele certa vez se gabou de ter atingido o recorde de faltas às aulas. Talvez tivesse permanecido um atleta burro se não quebrasse a perna em seu segundo jogo, quando ainda era calouro. Em vez disso, largou a faculdade e foi em busca de uma vida como escritor itinerante.

Os anos que passou viajando e anotando suas impressões em um diário culminante, em abril de 1951, na lendária maratona de escrita na qual ele produziu On the road – Pé na estrada. Mas tarde Kerouac afirmou ter “batucado” na máquina o manuscrito de 175 mil palavras em três semanas, transcrito em um enorme rolo de papel de telégrafo.

Muitos acadêmicos hoje concordam que o reverenciado “rolo de Kerouac” incorpora material de vários anos de anotações dos seus diários. Qualquer que tenha sido o processo, a lenda episódica de um “quadrado” do leste e seu companheiro rebelde viajando através dos Estados Unidos e do México se tornou um marco cultural instantâneo para a emergente Geração Beat.

No espaço de um ano Kerouac já estava parecendo no The Steve Allen Show, lendo trechos da sua magnum opus com o acompanhamento do piano jazzístico de Steverino. Infelizmente, esta foi uma das mais lúcidas aparições públicas de Kerouac durante esse período. Com demasiada frequência ele se exibia embriagado ou acabava descambando em arengas incoerentes sobre o budismo e sobre a verdadeira natureza do gênio.

Conquistou alguns detratores ilustres, incluindo Truman Capote, que fez um famoso comentário a respeito da obra de Kerouac: “Isso não é literatura. É datilografia.” Deve-se salientar que, embora quase sempre seja associado à composição automática e espontânea, Kerouac na verdade trabalhava assiduamente para revisar seus manuscritos e torná-los mais vendáveis aos editores. E por que não? Essa era a única forma de ganhar o dinheiro para a bebida.

Um alcoólatra vitalício, Kerouac passou a última década de sua vida bebendo ao ponto do estupor. Sua produção literária reduziu-se a quase nada. Ele mudou-se várias vezes, sempre acompanhado da mãe, e tornou-se cada vez mais devoto do catolicismo. Morreu de hemorragia abdominal, com uma caneta e um caderno nas mãos, no dia 21 de outubro de 1969.

Um pé na direita


Os beats mais radicais talvez tivessem ficado mortificados ao descobrir que, em matéria de política, o pai do seu movimento era um conservador. Católico devoto, Kerouac desprezava os hippies e era a favor da Guerra do Vietnã. Quando alguém colocou uma bandeira norte-americana sobre os ombros dele, numa festa no final dos anos 1960, Kerouac fez questão de dobrá-la cuidadosamente e deixá-la de lado. Kerouac também incluía William F. Buckley, fundador do National Review e “mestre” da direita, entre os seus melhores amigos.

Qual é a palavra? Thunderbird!

Kerouac foi alcoólatra por toda a vida. Sua bebida preferida era o Thunderbird, um vinho barato consumido por bêbados e indígenas de todas as partes.

Diamante bruto

On the road – Pé na estrada pode ter sido o maior romance de Kerouac, mas a sua maior criação certamente é a Ligia de Beisebol Fantasia. Muito antes de as fantasias on-line e as ligas Rotisserie se tornarem a mania nacional, o pai dos beats já “mandava ver” com um conjunto de cartões e blocos de papel colorido. Ele inventou a Liga quando criança, ainda em Lowell, Massachusetts, na década de 1930, e, já adulto, muitas vezes se referia a ela nas anotações em seu diário, sugerindo que se tratava de um passatempo duradouro. Com seu uso de cartões e estatísticas, o jogo era semelhante ao Strat-o-Matic, que se tornou popular nos anos 1960.

No entanto, a versão de Kerouac era muito mais intricada e complexa. Composta de seis times imaginários, sua liga possuía figuras da vida real, tais como Pancho Villa e Lou Gehrig, e também jogadores imaginários como Home Landry, Charley Custer e Luis Terceiro. Kerouac autoconsagrou-se o diretor de um time conhecido como The Pittsburgh Plymouths.

As “partidas” eram jogadas em tempo real, usando bolinhas de gude, palitos de dentes e borrachas de apagar, que Kerouac lançava em alvos a doze metros de distância. O “diretor” Kerouac mantinha registros detalhados do desempenho de cada jogador. Ele criou cartões de pontos e até salários e dados financeiros para o time.

Também criou um jornalzinho, o Jack Lewis’s Baseball Chatter e publicou um boletim chamado The Daily Ball, no qual fornecia resumos dos jogos do dia, substituições de última hora e listas dos líderes da liga. Algumas anotações obsessivas aparecem em Atop an underwood, uma coletânea dos primeiros textos de Kerouac. Outros, infelizmente, já passaram para a história do beisebol.

Pé na estrada e mão na garrafa

Em 1958, no auge do seu triunfo literário, Kerouac mudou-se com a mãe para uma casa em Northport, uma pequena cidade portuária na North Shore de Long Island. Os habitantes locais ainda se lembram dele com carinho – como o “bebum” da cidade. Kerouac era sempre visto perambulando pelas ruas descalço, ou usando chinelos de quarto, completamente embriagado e puxando um carrinho de compra de metal. A única coisa que ele comprava, no entanto, era bebida. Kerouac mantinha uma garrafa de Canadian Club sempre escondida numa mala, para um caso de emergência. De manhã, depois das bebedeiras, podia ser encontrado dormindo por cima dos trilhos de bonde abandonados que cruzavam a cidade.

Outros refúgios que Kerouac frequentava assiduamente era o pub local e a loja de bebida, onde já deixava uma cama dobrável para as siestas da tarde. Costumava também visitar a biblioteca pública, mas se recusava a entrar, exigindo que as bibliotecárias lhe levassem os livros enquanto ele esperava na calçada.

Tornou-se famoso por nunca ter cortado a grama do jardim e por pedir carona sempre que precisava ir a algum lugar, o que raramente acontecia. Na maior parte das noites ele ficava em casa, brincando com seus cartões de beisebol ou ouvindo seleções de missas para réquiem em seu gravador.

De vez em quando os fãs empreendiam a viagem de uma hora desde Nova York para encontrá-lo. Inseguro com a sua fama crescente, Kerouac gostava de deixá-los embriagados e depois os levava em excursões “iradas” para as mansões abandonadas de North Shore.

Kerouac trocou Northport por St. Petersburg, na Flórida, em 1964. Passou a sua última noite na cidade bebendo, divertindo-se e cantando com os discos de Mel Tormé. Depois foi encontrado dormindo num campo a vários quilômetros de distância.

Não é almoço grátis

Kerouac e William Burroughs eram amigos de longa data, mas o relacionamento começou a azedar na metade da década de 1950, devido ao hábito constante de Kerouac de “filar bóia”. Quando Kerouac se hospedava na casa de Burroughs nunca se oferecia para tirar a carteira do bolso e acabou abusando da hospitalidade do autor de Almoço nu.

Em 1957, Burroughs rompeu a amizade. Os dois ícones da Geração Beat ficaram sem se falar por mais de uma década. Encontraram-se apenas mais uma vez, em 1968, antes de uma aparição de Kerouac no programa de entrevistas na tevê de seu velho amigo William F. Buckley, Firing Line. Kerouac estava bêbado e Burroughs alertou-o a não se apresentar, pois iria passar por um vexame. Kerouac ignorou-o e, de fato, bancou o perfeito idiota em rede nacional.

Com a bola toda

O milésimo fã de beisebol que passou pela catraca do estádio, num jogo entre os Lowell Spinners e Williamsport Crosscutters da Classe A da New York-Penn League, no dia 21 de agosto de 2003, recebeu um raro presente: um boneco representando Jack Kerouac. Feito de plástico e resina, o boneco retrata o jovem Kerouac com a aparência que ele deveria ter quando morou em Lowell. Carregando uma mochila, com uma caneta e um caderno nas mãos, ele aparece numa cópia de On the road – Pé na estrada.

O presente incomum gerou mais de dez mil dólares para o Fundo de Bolsas de Estudo Jack Kerouac e recebeu extensa cobertura da mídia, incluindo artigos na Sports lllustrated e no New York Times. Foi também um substituto secundário para o plano inicial do clube, que era estender no gramado o manuscrito original de On the road – Pé na estrada. O pedido do “rolo” para a realização de tal façanha foi negado pelo espólio de Kerouac. O boneco-Kerouac atualmente se encontra em exibição no Baseball Hall of Fame, em Cooperstown, Nova York.

Coisas de fã

Quem diria que Jack Sparrow era um fã tão ardoroso de Jack Kerouac? Em 1991 o ator Johnny Depp gastou mais de 50 mil dólares de compra de itens dos executores do espólio de Kerouac. Suas compras incluíram quinze mil dólares pela capa de chuva de Kerouac, dez mil pela sua pasta, cinco mil por uma das suas velhas malas de viagem, dois mil por um suéter (espera-se que tenha sido lavado nesse ínterim), três mil por um chapéu de chuva (não se pode ter a capa sem o chapéu), dez mil por um casaco de tweed, cinco mil por uma carta de Kerouac para Neal Cassidy e 350 dólares por um cheque “voador”, que foi devolvido por uma loja de bebidas.

Gap de credibilidade

Em sua eterna busca por modelos “estilosos”, a rede de lojas de artigos para vestuário The Gap lançou uma campanha publicitária baseada no tema Beat, nos anos 1990. Os anúncios impressos exibiam uma foto de Kerouac usando calças cáqui e camiseta, e a frase “Kerouac Usava Cáqui”. Muitos dos fãs mais radicais do escritor ficaram ultrajados com essa apropriação póstuma da sua imagem. (A rede-irmã da The Gap, Banana Republic, estava vendendo uma “Jaqueta Jack Kerouac” por 70 dólares, na mesma época).

Como protesto, um grupo de poetas de Chicago criou uma paródia da propaganda, com um anúncio que dizia “Hitler Usava Cáqui” e exibia a foto do ditador nazista. Centenas de cópias foram então sub-repticiamente deixadas nas lojas Gap de Chicago. Mesmo depois de tantos anos, ninguém podia “mexer” com os beats.

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