Por Fernando Gabeira
Parei algum tempo para pensar na história do deputado que
levava queijo provolone e biscoitos na cueca. Ele foi condenado a sete dias no
isolamento. O queijo provolone custa R$ 35, o quilo. Na cela de Cabral foram
encontrados queijos tipo Saint Paulin e Chavroux, ambos rondando os R$ 300, o
quilo. Nada aconteceu, exceto a retirada dos alimentos importados.
Na verdade, acho que ambos os casos são simples infrações
das regras do presídio. O do deputado Celso Jacob acabou resultando numa pena
quase que perpétua. Durante muitos anos, ele será conhecido como o deputado do
queijo na cueca. De um ponto vista social, é um ato inofensivo. Descoberto,
revela um ser humano numa situação patética, dessas que podem acontecer com
muitas pessoas ao longo da vida. São, ao mesmo tempo inofensivas mas
destruidoras, se divulgadas.
Minha conclusão sobre esse caso não é nada popular, a julgar
pelas reações das pessoas com quem comentei meu desconforto. Sinceramente, acho
que ele deveria sofrer algum tipo de punição por infringir a regra e que não
deveria exercer o mandato desde quando foi condenado. No entanto, o sistema
penitenciário poderia tratar o caso como a centenas de outros no presídio, sem
exposição pública.
Sei que a luta contra a corrupção é uma grande causa.
Exatamente por abraçar algumas grandes causas, tenho também um pouco de medo
delas. Às vezes, fazem com que gente ignore o outro e sua precária condição
humana, no embalo da defesa de nossas ideias.
A revolução cultural chinesa foi um impacto para mim. Estava
em Lisboa, rumo ao País de Gales, onde faria um curso de jornalismo. Aquelas
imagens de homens seminus com cartazes pendurados no peito me traziam
desconforto. Com o tempo, conheci melhor o que se passou na China, e cada vez
mais a ação daqueles jovens com o livro vermelho de Mao Tsé-Tung na mão,
prendendo e humilhando, pareceu-me uma maneira doentia de como uma sociedade
autoritária pune as pessoas.
Até num filme sobre julgamento de líderes nazistas,
lembro-me de uma cena, de um dos acusados mais velhos segurando a calça porque
estava sem cintos, em que senti também um desconforto.
Os tempos passam, e a sociedade renova sua maneira de punir.
Além da luta contra a corrupção, grandes temas como racismo, machismo,
homofobia são causas que mobilizam. Nos Estados Unidos, há um grande movimento
de denúncia de assédio sexual, derrubando um a um os acusados. No Brasil, o
eixo do confronto esquerda-direita acabou se deslocando para essa área de
costumes.
Sei que não posso evitar que toda essa energia emotiva se
extravase. Mas sei também que os tribunais se deslocaram para as redes e que aí
são feitos grandes julgamentos, de um modo geral aceitos de imediato pelas
empresas. As opiniões individuais ganham peso, no entanto trazem também a
responsabilidade de se informar melhor. O que nem sempre acontece.
Na rede, não existe um código pré-estabelecido, como na lei,
ponderando crime e castigo. Ela não sentencia ninguém à perda da liberdade, ou
qualquer tipo de multa. Ela trata da imagem e, às vezes, decreta o fim de uma
carreira pública.
E, nesses casos, a distinção entre esquerda e direita é
inócua. Recentemente, surgiu uma campanha afirmando que Caetano Veloso era
pedófilo, porque fez amor com uma garota de 14 anos que se tornou sua mulher e
mãe dos seus filhos.
O caso mais doloroso foi a saída de William Waack de seu
posto de trabalho. Ele disse uma frase condenável. Mas existe ponderação entre
a pena e a frase? Eu o conheci na Alemanha, éramos correspondentes, ele para o
“Estadão”, eu para a “Folha”. Convivemos na época, estivemos juntos quando os
sérvios invadiam a Croácia, no início dos grandes conflitos na região. Sempre o
achei um excepcional jornalista. E nós precisamos dele no Brasil, com sua
experiência e conhecimento do mundo.
Sou um dos responsáveis pela valorização desses temas no
Brasil. Influência dos anos de Europa. Também de lá, creio, muitas ideias se
transportaram para as universidades americanas. Respeitadas as diferenças
nacionais, é um mesmo movimento por direitos civis aqui e nos Estados Unidos. A
experiência americana é um dos temas que me preocupam. Trump ganhou as
eleições. É um equívoco pensar que não existem retrocessos. Como evitá-los
nesse contexto tão apaixonado?
Nesse domingo de manhã, a única pista que me ocorre é esta:
o conhecimento do outro, do que não concorda com suas ideias liberais. Entender
o apelo nostálgico a um passado mais ordeiro, a ansiedade com as transformações
muita rápidas, o medo de aniquilamento de seu universo cultural, da dissolução
da família.
Nada evitará que o debate seja intenso. Mas talvez possa ter
um nível de respeito e senso de justiça que permitam em certos momentos, a
todos, ultrapassarem sua luta identitária para a condição de brasileiro num
país arruinado.
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