Deonísio da Silva, em
entrevista para Gabi no GNT
Por Deonísio da Silva
Quero ter com a língua portuguesa uma relação amorosa, cheia
de toda ternura, de toques delicados, sem nenhuma agressão, de respeito mútuo e
tratos justos. Se uma palavra não quiser entrar em minha frase, depois de algum
olhar, convite ou sedução, não faz mal: vou namorar outra, até encontrar aquela
que me foi destinada. E sei que foram muitas. E se ainda assim eu não encontrar
quem me queira, inventarei a palavra apropriada. Foi assim que todas nasceram.
O texto não é o meu harém. As odaliscas que aqui dançam e
cantam são ubíquas e podem dançar e cantar onde bem quiserem, pois são livres
como eu. Quero viver na deliciosa companhia das efêmeras. Nenhuma delas precisa
me amar eternamente. Quero apenas o amor fugaz, o brilho rápido, sua carinhosa
atenção por poucos momentos: a vida é breve.
Não vou aprender as gramáticas dos séculos passados. Não me
interessa. Não estou vivendo nele. O passado é como um cemitério: só há mortos
e tristezas por lá. Flores, somente uma vez por ano. Sei que algumas
arqueologias e estudos são importantes para o conhecimento. Mas eu sou
jardineiro das palavras, não botânico.
Em vez dos cemitérios da língua, procuro as creches. Quero a
língua balbuciada no berço, entre os choros da boca, o leite dos seios, a
canção nos ouvidos e o caminho das mãos. A algazarra das creches me fascina
tanto quanto os sussurros dos amantes ou o cochicho dos fofoqueiros, esses
seres altruístas, tão modestos e solidários, a ponto de só se preocuparem com a
vida dos outros, esquecendo-se das suas, segundo conceito delicioso do poeta
Mário Quintana.
As canções populares me deixam todo arrepiado. Estou
interessado no que todos têm para me contar: de novos ou velhos, todas as
conversas me despertam para outros mundos, muitos dos quais eu nem sabia que
existiam.
Abro os livros. Cheiro suas páginas. Suas palavras e eu
tramamos uma sedução mútua e logo vamos para a cama. Lá é melhor de ler do que
nos bancos escolares.
Se vou escrever, miro-me nos espelhos dos que me
antecederam, sobretudo os clássicos. Mas quero ler também os escritores de
hoje, que cantam, mugem ou gemem no seu tempo, que é também o meu.
Se me sobrar tempo, estudarei gramática, irei a Portugal.
Tempo é o que não me falta, pois o prazer dispensa o tormento da pressa.
Parem a escola que eu quero descer. Não aguento mais tanta
necrofilia, arqueologia e gramática. Castro Alves morreu de gangrena no pé.
Cruz e Sousa foi conduzido doente num vagão de gado: ninguém o acompanhou ao
sanatório. Machado de Assis, filho de uma lavadeira, nasceu num morro e era
preto, pobre, órfão, epilético, gago, feio, casou com uma solteirona que tinha
comido a merenda antes do recreio e não teve filhos.
Adianta saber tudo isso quando não se lê o homem? Poesias,
contos e romances que todos eles escreveram, morrem abandonados todos os dias
nas escolas. São poucos os que acendem uma vela para a memória de Castro Alves
sobre os escravos e as paixões, de Cruz e Souza sobre as dores e os abraços, de
Machado sobre amizades e traições. Poucos são os que guardam na lembrança uma
boa frase ou um verso genial de qualquer dos escritores estudados. Entretanto,
financiado pelo CNPQ ou pelo que eu-não-sei-pra-quê, todo ano um mestre bobo
descobre qual deles tinha caspa, tuberculose ou unha encravada.
Eu amo línguas e literaturas, principalmente as que me são
mais próximas, como a brasileira e a portuguesa, por razões semelhantes àquelas
que me levam ao amor filial. Por isso, jamais as maltrato ou desprezo, fazendo
de conta que não existem. Não domino a língua portuguesa: mantenho com ela uma
relação de parceria. Não permito que, por ignorância minha, ela me leve a dizer
o que não quero ou a não poder dizer o que quero. Do contrário, de que me
servirá a liberdade de expressão?
Em língua portuguesa, expresso o que bem me apraz, olhando com
atenção para ver se é canela ou sassafrás. Aos dicionários, empresários das
palavras, com aquele enxame de vocábulos, dou uma atenção semelhante ao
livreiro que me vende romances. Estou interessado no mel das abelhas, não em
suas ferroadas ou no dono da colmeia.
Para ler por gosto, não é preciso dicionário. Não nos
aborreçam com aleivosias, olhares à sorrelfa e outras vericúndias, procurando
anástrofes e zeugmas, onde existem apenas metáforas. Discrepo sempre que alguém
tenta o domínio pelo verbo, que é insuficiente para dizer as coisas, desde o
princípio do mundo.
A língua é necessária, talvez seja a nossa melhor metade,
mas não é absoluta. Se o fosse, os namorados não se beijariam, os sentimentos
estariam sempre arrumados e não haveria literatura.
PS. O Português que todos devem aprender para uso próprio,
não para ensiná-lo, como fazemos nós, os professores. Esta crônica foi escrita
especialmente para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, por solicitação de
Augusto Nunes, então seu diretor de redação. Repercutia crônica de Luís
Fernando Veríssimo, intitulada O gigolô
das palavras, que deu título também a um livro da professora Maria da
Glória Bordini. Versões resumidas saíram também na revista Época e no Jornal do
Brasil.
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