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sexta-feira, dezembro 15, 2017

Manaus: como eu a vi ou sonhei (32)


Por Jefferson Peres

Muitos jovens da minha geração foram leitores insaciáveis. Menos, talvez, por pendores naturais do que por fatores circunstanciais. Ainda não havíamos ingressado na era da televisão e do automóvel particular. Quando não tínhamos alguma opção de lazer, o jeito era buscar refúgio na leitura. Líamos de tudo, muitas vezes a qualquer hora e em qualquer lugar. Havia até os fanáticos, que nunca se separavam dos livros, conduzindo sempre algum, seguro pela mão ou debaixo do braço, para ser lido nas salas de espera dos cinemas, nas mesas dos bares ou nos bancos das praças.

Nunca dediquei à leitura menos de seis horas por dia. Quando nada tinha para ler em casa, marchava para a Biblioteca Pública, onde passei muitas tardes da minha juventude e de onde saía, às vezes, ao anoitecer. Foi um hábito que adquiri na infância, com os contos de fadas de Andersen e Perraul e com revistas como O Tico-Tico, na qual eu me deleitava com as aventuras de Reco-Reco, Bolão e Azeitona.

Logo vieram os jornais e as revistas em quadrinhos de origem americana. Não perdia um número do Mirim, do Gibi, do Globo Juvenil e do Suplemento Juvenil. Lia com avidez as histórias daqueles heróis, que encantavam pela variedade de tipos, temas e ambientes, oferecidos para todos os gostos, desde trogloditas e dinossauros, com Brucutu, até foguetes espaciais, com Buck Rogers, passando por castelos medievais e cavaleiros andantes, como o Príncipe Valente.

Podia escolher entre uma aventura na selva da Índia, com o Fantasma Voador, e outra nas areias do Saara, com Abdul, o Árabe, ou, ainda, uma terceira, nas ruas de Nova York, com o Tocha Humana; entre um herói caipira, como Lil Abner (por que terão aportuguesado seu nome para Ferdinando?) e um sofisticado detetive urbano, como Nick Holmes. E tantos outros, como Brick Bradford, Príncipe Submarino, Mandrake e o nunca esquecido Flash Gordon, que me atraía não somente pela história, como também pelo traço elegante do desenho de Alex Raymond.

Junto com as histórias em quadrinhos, íamos devorando os livros de aventura. Li quase todos os livros de Tarzan, e a Edgar Rice Burroughs devo alguns dos melhores instantes de encantamento que a leitura me proporcionou naquela fase. E mais ainda, talvez a Karl May, o alemão autor de No Deserto e nas Selvas, Winnetou e tantas outras fascinantes histórias passadas nos mais diferentes lugares do mundo. Só muito mais tarde vim a saber, com grande surpresa, que esse novelista nunca saiu da Alemanha e escreveu muitas das suas obras na prisão.

Escusado dizer que li quase tudo de Júlio Verne, e o Capitão Nemo, com o seu Nautilus, me deliciou desde muito cedo. O mesmo aconteceu com a obra de Alexandre Dumas, que me deu muitas alegrias com as proezas de D’Artagnan e seus companheiros, ao enfrentarem o poder do Cardeal, e de Edmond Dantés, ao se vingar dos seus diabólicos inimigos. Houve muito mais, como Ivanhoé, de sir Walter Scott, a Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, para não falar nos policiais, com personagens como Sherlock Holmes, Arséne Lupin, Perry Mason, Nero Wolf e tantos outros.

Depois, ainda na adolescência, vieram as obras mais sérias, preferentemente de ficção. Dos autores nacionais, antigos e modernos, escaparam poucos. Manuel Antônio de Almeida, que seria, provavelmente, o maior romancista brasileiro do século XIX, se não tivesse morrido tão cedo, deixando apenas uma pequena obra-prima, Memórias de um Sargento de Milícias; José de Alencar, do qual li quase tudo; o meu querido Machado de Assis, principalmente o da segunda fase, cujo estilo sempre me encantou. E mais Aluísio de Azevedo e Raul Pompéia, sem contar os poetas, em particular Castro Alves, com sua poesia social que empolgava todos nós e cujos versos eram citações quase obrigatórias em nossos discursos.

Dentre os contemporâneos, devorei quase todos do ciclo nordestino, com preferência por Jorge Amado e Graciliano Ramos. Li, com entusiasmo, romances como Cacau, Jubiabá, Capitães de Areia e Terras do Sem Fim, embora me decepcionasse mais tarde com o caráter sectário de Os Subterrâneos da Liberdade. De Graciliano, li a obra toda, pois o velho Graça e Machado são minhas paixões na literatura brasileira.

Dos estrangeiros, sempre tive predileção pelos autores franceses e russos. Balzac, Flaubert, Stendhal, Maupassant e Victor Hugo logo se tornaram familiares a mim. Somente Proust vim a ler mais recentemente. Dos russos, também ficaram de fora muitos poucos. Li Tolstói, Turguniev, Gogol, Puchkin e, naturalmente, Dostoievski. Naquela fase da minha vida, os dois livros, de ficção e não-ficção, que mais me impressionaram foram, respectivamente, Crime e Castigo e Recordações da Casa dos Mortos.

Fascinante, como estudo psicológico, a história do intelectual que, friamente, sem motivo, decide matar a anciã, apenas para provar que poderia fazê-lo sem remorso. Concordo com Franklin de Oliveira, para quem um dos mais belos momentos da literatura universal é aquele em que Raskolnikov se ajoelha ante a prostituta Sônia e beija-lhe os pés, em homenagem a toda a humanidade sofredora.

Nenhum outro autor me causou tanto impacto, dentre de tantos que li. E não exagero se disser que, ao atingir a idade adulta, tinha lido pelo menos um livro de cada um dos autores considerados clássicos. Faço a observação sem nenhum laivo de vaidade, mas apenas para demonstrar a massa de leitura absorvida por muitos jovens do meu tempo. Sim, porque eu não constituía, de forma alguma, exceção.

Não deve causar admiração, portanto, que tenham surgido, bem ou mal, tantas vocações literárias. E que se proliferassem tanto as associações culturais. Porque foi um grupo Colméia, do qual já falei, que deu origem ao PTB local. Constituído informalmente, incluía entre seus membros o historiador Mário Ypiranga Monteiro, o único do grupo, talvez, que não se deixou seduzir inteiramente pela política.

Em seguida, nasceu a Sociedade Castro Alves, na qual se agregaram jovens que tinham em comum, além das veleidades intelectuais, a proximidade geográfica, pois quase todos moravam nas ruas adjacentes à Praça da Saudade. Recordo-me de três dos seus integrantes, Almino Affonso, Aloísio Nobre de Freitas e Paulo Monteiro de Lima. Este último foi, talvez, o maior talento poético daqueles anos. Infelizmente, boêmio e romântico, desperdiçou-o em grande parte e morreu muito jovem, sem editar um único livro. Popular, seus poemas de circunstâncias, satíricos, corriam de mão em mão e deliciavam a cidade. Mas também os poemas sérios que escreveu faziam muito sucesso.

Aliás, a poesia gozava de popularidade. Quando Rogaciano Leite, poeta cearense, esteve em Manaus, deu um recital no Teatro Amazonas, com casa cheia, e foi aplaudido como um astro de canção popular. Até os comerciais eram versificados, com as emissoras de rádio lançando ao ar, a todo instante, o jingle: “Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal” ou então “Pílulas da vida do Dr, Ross, fazem bem ao fígado de todos nós”.

Nessa época apareceu também o Grêmio Álvares de Azevedo, fundado por Moacyr Vilela, Platão Araújo, Aluísio Sampaio, José Cidade e Roberto Jansen, e no qual ingressei mais tarde. Funcionava no prédio da Escola de Serviço Social, cedido por André Araújo. Ao ser admitido no grêmio, o novel associado era obrigado a ler um trabalho inédito de sua autoria.

Uma passagem cômica teve como personagem Danilo da Silva (Du Silvan), admitido no Grêmio por proposta minha. Por disposição estatutária, todo novo sócio estava obrigado a pronunciar um discurso escrito na sessão da posse. Mas Danilo, para exibir seus dotes de orador, pediu e obteve permissão para falar de improviso. Seu discurso foi bombástico, cheio de imagens grandiloquentes, marcado por gestos teatrais e pronunciado com voz embargada.

Súbito, a catadupa estancou. Durante um longo e interminável minuto, ante o desconforto dos presentes, o orador, emudecido, passeava os olhos inquietos, de um lado para o outro, em busca da palavra salvadora. Até que, constrangido, numa confissão pública, admitiu que havia decorado o discurso e fora traído pela memória. A sessão solene terminou em gargalhadas.

Um dia, uma briga interna no Álvares de Azevedo criou um grupo dissidente, formado por Alencar e Silva, José Cidade e Roberto Jansen, que saíram para fundar a Sociedade Amazonense de Estudos Literários – SAEL. Suas reuniões eram feitas numa sala do Instituto de Educação do Amazonas, e entre seus membros se incluía Astrid Cabral, que mais tarde se projetaria como poeta e contista, no sul do país.

SAEL e Álvares de Azevedo mantinham forte rivalidade e desenvolviam intensa atividade, através de promoções culturais a divulgação de trabalhos nos jornais locais. A desavença culminou com um charivari no Yara Bar, um botequim situado na Rua Marquês de Santa Cruz, entre a Alfândega e o Trapiche Teixeira, frequentado pelos trabalhadores do porto.

Uma noite, os membros do grêmio, já divididos em dois grupos, se desentenderam de vez e partiram para o desforço físico, numa pancadaria que terminou quando Moacyr Villela puxou o revólver e deu um tiro para o alto. Ninguém saiu ferido, a não ser o próprio Álvares de Azevedo que, cindido ao meio, nunca mais voltou a ser o que fora.

A dividir com a SAEL o prestígio da entidade jovem mais discreta, havia ainda o Grêmio Gonçalves Dias, integrado por Francisco Queiroz, Danilo da Silva e Othon Mendes, que se reunia na residência do último, na Avenida Joaquim Nabuco. Pouco a pouco esses grêmios se tornaram démodés e desapareceram.

Foram úteis, na medida em que se despertavam ou robusteciam o interesse de muitos jovens por assuntos culturais. Mas nada acrescentaram em termos de renovação. Na verdade, eram miniacademias, que reproduziam a Academia de Letras na forma e no espírito, e se diferenciavam muito pouco do modelo em que se haviam inspirado.

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